A Travessia: refugiadas no Brasil
Inseguranças e incertezas passam a ser parte da vida das pessoas refugiadas, que enfrentam um caminho longo e burocrático para chegarem ao seu destino. Para as mulheres, já vulneráveis socialmente, o refúgio é mais uma situação em que precisam ser resilientes
Através de céus, fronteiras ou oceanos e mares. De lá pra cá ou daqui pra lá, o fluxo de migração não é nenhuma novidade do século XXI. Com o passar dos anos e a evolução dos meios de transporte, a movimentação ficou ainda mais intensa. Os motivos são inúmeros: algumas buscam se aventurar, outras, melhores condições de vida. Há as que deixam seus países em razão das mudanças climáticas e desastres ambientais, e ainda aquelas que fogem de conflitos, perseguições e violações dos direitos humanos. Essas, que como opção só tem a vida ou a morte, fogem para sobreviver e se tornam refugiadas em outro país.
Segundo o relatório Global Trends 2017 publicado pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), o fluxo migratório atual é o maior desde o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945. A partir da criação do ACNUR, em 1951, foram registradas 68,5 milhões de pessoas deslocadas em todo o mundo e estima-se que 16,2 milhões correspondem apenas ao ano de 2017.
O marco mais recente do aumento do fluxo migratório mundial se deu a partir de 2011, com a onda de protestos e revoluções que aconteceram no Oriente Médio e no norte da África e ficaram conhecidas como Primavera Árabe. Nesse período, as regiões foram assoladas por ditaduras e guerras civis. O estopim foi a partir do ato de Mohamed Bouazizi, comerciante tunisiano que teve seus produtos confiscados quando se recusou a pagar propina para o governo. Revoltado com a situação, ele ateou fogo no próprio corpo em praça pública. O ato de desespero do vendedor despertou o desejo da população de sair às ruas e demonstrar seu descontentamento com o governo. Outros países, influenciados pelos acontecimentos na Tunísia, também iniciaram protestos contra seus governos.
Desde então, o aumento nos níveis de deslocamento dos países atingidos gerou uma onda de refugiados pelo mundo. Por uma razão geográfica, buscaram se estabelecer na Europa, já que os continentes são separados apenas pelo Mar Mediterrâneo. Os confrontos armados internos cresceram exponencialmente desde a Primavera Árabe e alguns países, como Síria, Líbia e Iêmen encontram-se em guerras civis que duram até hoje.
Mundo e Refúgio
O termo refugiado foi definido em 1951 pela Convenção das Nações Unidas, evento que teve o objetivo de resolver a situação dos migrantes na Europa após a Segunda Guerra Mundial. Como produto da Convenção, foi criado o Estatuto do Refugiado, um tratado global que definiu quem poderia ser considerado refugiado e esclareceu os direitos deles a nível internacional. Até então, o estatuto só era válido para eventos ocorridos antes de 1° de janeiro de 1951. Com o surgimento de novos conflitos e perseguições, houve a necessidade de colocar os novos fluxos de migrantes forçados sob proteção. Por esse motivo, entrou em vigor em 1967 um Protocolo relativo ao Estatuto dos Refugiados que estendeu as definições do documento sem limitar a data e o espaço geográfico dos acontecimentos.
Gabriela Cunha Ferraz, advogada, mestre em Direitos Humanos e realizadora do projeto Vidas Refugiadas, explica que “toda convenção internacional, para ser válida dentro de um país, precisa ser aprovada pelo Parlamento e integrada em seu ordenamento jurídico”. É por isso que alguns países, como os Estados Unidos, possuem leis restritivas de refugiados. O presidente Donald Trump limitou a 30 mil a admissão de refugiados em 2019. Além disso, já restringiu a entrada de cidadãos de países com maioria muçulmana: Irã, Líbia, Síria, Iêmen e Somália. Outras nacionalidades também foram vetadas posteriormente.
Apesar das restrições e da visão negativa estabelecida por alguns países, o refúgio deve ser tratado como uma questão de direitos humanos. A população vulnerável torna-se ainda mais vulnerável nessas condições. De acordo com dados do Global Trends, em 2017 aproximadamente metade dos refugiados no mundo eram do sexo feminino e 52% eram crianças menores de 18 anos. Para as mulheres, os conflitos armados representam um grande risco, uma vez que o estupro tem sido utilizado como arma de guerra.
Além disso, existem outras motivações de gênero que fazem com que elas deixem seus países. Algumas discordam de códigos sociais rígidos e se recusam a casar com um homem escolhido pela família ou vestir roupas tradicionais, por exemplo. Nesses casos, se houver discriminação grave ou perseguição, o ACNUR reconhece que essas mulheres podem se tornar refugiadas.
Canadá, Estados Unidos e França reconheceram oficialmente que as mutilações genitais representam uma forma de perseguição e que mulheres com receio de passarem por essa situação em seus países, possuem motivos válidos para solicitar refúgio. O ACNUR encoraja outras nações a adotarem a mesma postura.
De portas abertas
A questão do refúgio no Brasil ainda é bastante recente. Foi só em 1997, que o então presidente Fernando Henrique Cardoso assinou a Lei de Refúgio, nº 9.474, referente à implementação das diretrizes definidas no Estatuto do Refugiado, de 1951. Assim, foi criado o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare) como órgão do Ministério da Justiça. Sobre as competências do comitê, ficou estabelecido:
Art. 12. Compete ao Conare, em consonância com a Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951, com o Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados de 1967 e com as demais fontes de direito internacional dos refugiados:
I – analisar o pedido e declarar o reconhecimento, em primeira instância, da condição de refugiado;
II – decidir a cessação, em primeira instância, ex officio ou mediante requerimento das autoridades competentes, da condição de refugiado;
III – determinar a perda, em primeira instância, da condição de refugiado;
IV – orientar e coordenar as ações necessárias à eficácia da proteção, assistência e apoio jurídico aos refugiados;
V – aprovar instruções normativas esclarecedoras à execução desta Lei.
Antes disso, não existia uma lei específica sobre refúgio. O antigo Estatuto do Estrangeiro, de 1980, fazia apenas uma menção aos refugiados e dava à eles o direito de solicitarem um passaporte no Brasil. O Estatuto foi revogado em 2017, quando o ex-presidente Michel Temer assinou a Lei de Migração, nº 13.445. Apesar da extrema importância no que diz respeito à atualização de direitos e deveres de migrantes, essa lei não substitui e não interfere na Lei de Refúgio de 1997, já que os refugiados são considerados um caso especial de migração.
No Brasil, o órgão responsável por analisar os pedidos de refúgio é o Conare. A Polícia Federal tem como papel disponibilizar e orientar o preenchimento do formulário de solicitação de refúgio, que é enviado para a análise do órgão. O defensor público da Defensoria Pública da União de São Paulo, João Chaves, explica que “no exato momento em que a pessoa entrega esse formulário, recebe um documento provisório que garante à ela direitos no Brasil, especialmente saúde e educação. […] A partir do momento em que a solicitação é recebida pelo Conare será agendada uma entrevista”.
A rejeição do pedido pelo Conare só ocorre em situações que não se enquadram como refúgio ou quando a história do migrante não fica muito clara. Nesses casos, o solicitante tem a chance de entrar com um recurso, mas Chaves comenta que “pela nossa prática, percebemos que esses recursos não são julgados. Eles ficam pendentes e enquanto isso a pessoa permanece regular no Brasil e renova anualmente o documento provisório de Registro Nacional Migratório, que é popularmente conhecido como protocolo. O documento é usado para obter uma carteira de trabalho e se matricular em cursos, para viver no Brasil enquanto aguarda essa decisão. Isso acontece porque o CONARE tem um passivo de processos muito grande”.
O mesmo documento vale para todas as nacionalidades e grupos sociais. Dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) revelam que nos anos de 2013 e 2014, o perfil dos refugiados no Brasil foi alterado em decorrência da entrada expressiva de pessoas fugindo dos conflitos da Primavera Árabe, principalmente de nacionalidade síria e libanesa. De acordo com o Ipea, o perfil predominante é do sexo masculino, entre 18 e 59 anos. As mulheres são registradas majoritariamente como acompanhantes.
A escolha de um lugar para recomeçar a vida – que nunca é fácil – se torna ainda mais difícil quando não é bem uma escolha. Em muitos casos, o Brasil foi o único país que abriu as portas para esses refugiados. Em outros, a necessidade de sobrevivência era tão urgente, que não houve tempo para pensar antes de fugir para o país vizinho. No caso das mulheres, além de conflitos e guerras, muitas questões ligadas à violência de gênero fazem parte dos motivos para buscar refúgio.
É o que diz Gabriela Cunha Ferraz: “As mulheres da América Central, acabam pedindo muito refúgio por conta da violência doméstica, é uma realidade nas Américas, que já não é uma realidade da mulher africana. No geral, a africana não vem por motivos relacionados à gênero, vem por conta do fluxo de guerras. Porém, quando você investiga os casos, percebe que durante a guerra ela foi vítima de violência sexual”, comenta a advogada.
No entanto, apesar de disposto a receber essas pessoas, o Brasil não é um país acolhedor para as mulheres, nem mesmo para as brasileiras. Ainda sobre o assunto, Gabriela questiona, “entre as latino-americanas o motivo principal do refúgio é a violência doméstica, o que é muito contraditório, já que o Brasil é o 5º país com maior índice de feminicídio no mundo. Então até que ponto o Brasil é capaz de oferecer segurança para essa mulher?”
As leis existentes no Brasil para refugiados não fazem distinção de gênero, sendo válidas para homens e mulheres. Mas, tendo em vista que o país é signatário da Lei Maria da Penha, Alanna Alessia, acadêmica em Direito e pesquisadora do tema Direito Internacional e Direitos Humanos, esclarece que “há a possibilidade de aplicação por analogia deste dispositivo na proteção da mulher refugiada no Brasil.” Sobre as mulheres que chegam grávidas, Alanna afirma que deveriam receber maior proteção por conta do estado vulnerável em que se encontram, inclusive com prioridade nos trâmites jurídicos necessários mas, na prática, não há assistência específica.
Em 2017, apenas 21% dos refugiados reconhecidos pelo Conare eram mulheres. Forçadas a se deslocarem, muitas vezes separadas de seus maridos, várias chegam acompanhadas apenas dos filhos e enfrentam dificuldades financeiras para recomeçarem. Das seis mulheres entrevistadas para esta série de reportagens, apenas uma não é mãe, conforme pode ser visto nos perfis. De forma brutal, essas mulheres encaram o peso de serem vítimas mais de uma vez, pela condição de mulheres e de refugiadas. Além de levarem consigo a responsabilidade da maternidade em um país diferente daquele em que cresceram e foram filhas.
Um passo para trás
A proposta de governo do atual presidente Jair Bolsonaro (PSL) não contempla nenhuma ação voltada para refugiados. No ano de 2018, ele sugeriu durante uma cerimônia militar no Rio de Janeiro a criação de campos de refugiados para atender aos venezuelanos que vieram para o Brasil, ao fugir da crise humanitária instaurada no país. Gustavo Huppes, assessor do Programa Fortalecimento do Espaço Democrático da Conectas, afirma que a criação de um campo de refugiados acaba isolando essa população, quando na verdade o ideal é que eles sejam integrados à comunidade e às políticas públicas, tendo direito de livre circulação no território, acesso à educação, saúde, trabalho e idioma.
Saída do Pacto Global
Em novembro de 2018, o governo Michel Temer (MDB) assinou o Pacto Global para Migração Segura, Ordenada e Regular, acordo mundial com o objetivo de tornar as migrações mais seguras e dignas para todos. O Pacto Global surge para reconhecer que a migração é um tema que só pode ser resolvido no plano internacional e que deve ser objeto de diálogo entre os países. Assim, como o mundo hoje traz a característica da circulação de informações, de bens e de serviços, é natural que haja também a circulação de pessoas.
Pode-se entender o acordo como princípios coletivos entre os países para que a migração seja: (1) segura, sem ameaçar a vida ou saúde dos indivíduos; (2) ordenada, ou seja, buscar um padrão normativo justo e correto para a gestão das migrações, que inclui o direito dos países estabelecerem suas próprias políticas mais abertas ou mais restritas de acordo com seus interesses; (3) regular, evitando o tráfico de pessoas, estabelecendo padrões claros de controle migratório nas fronteiras, além de critérios justos de reconhecimento da condição de migração ou de refúgio.
Porém, com a posse do governo Bolsonaro, em janeiro de 2019, o Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, optou por seguir o comportamento dos Estados Unidos e retirou a assinatura do Brasil do pacto. Em sua conta no Twitter, afirmou que o acordo é “um instrumento inadequado para lidar com o problema. A imigração não deve ser tratada como questão global, mas sim de acordo com a realidade e soberania de cada país”.
Vale lembrar que o pacto não é um tratado, ou seja, não gera obrigações para o Brasil. É, na verdade, um acordo entre as nações, que combinam entre si de respeitar algumas diretrizes fundamentais baseadas em valores. A retirada da assinatura do Brasil demonstra uma rejeição do governo a esses princípios estabelecidos, acreditando que o acordo seja prejudicial aos interesses nacionais e à soberania do Brasil.
No cenário atual em que 3% da população brasileira vive no exterior, a decisão torna-se questionável. O defensor público João Chaves explica que “o Brasil precisaria adotar, estar presente e dialogar no Pacto Global, porque para nós é muito importante haver uma política mundial favorável à imigração, já que existem mais brasileiros no exterior do que imigrantes no Brasil. Para que possamos defender os interesses das comunidades brasileiras que estão no exterior, seria muito importante que o Brasil sinalizasse positivamente quanto à sua visão sobre imigração”.
Á procura de possibilidades
Entre os refugiados que permanecem residentes no Brasil, 52% estão no estado de São Paulo, segundo dados do Conare. O principal motivo é pela facilidade que o local oferece em diversos âmbitos. Além da maioria dos refugiados que chegam por avião, desembarcarem no Aeroporto Internacional de Guarulhos, a capital paulista é uma das grandes referências para a recepção e integração dessas pessoas.
Por ser o estado com o maior polo econômico do Brasil, São Paulo é a primeira escolha de muitos migrantes que já chegam com uma ideia do que encontrar. No caso dos refugiados, muitos são enviados para a capital do estado ao chegarem em um local sem estrutura para recebê-los. Ao obterem as instruções necessárias, acabam se estabelecendo e fortalecendo a comunidade já notável de migrantes e refugiados no local.
Dados do Sistema Nacional de Cadastros e Registros de Estrangeiros (Sincre) mostram que entre 2000 e 2016, quase 30% dos refugiados residentes em São Paulo eram mulheres. Durante esses 16 anos, a nacionalidade que mais se estabilizou no estado foram os sírios, sendo um total de 1.004 pessoas, seguidos pelos congoleses e colombianos.
Além de São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília também contam com órgãos oficiais para prestar assistência à essa população. Em São Paulo e no Rio de Janeiro, a Cáritas trabalha no acolhimento desde a ditadura militar. Em Brasília, o Instituto de Migração e Direitos Humanos (IMDH) é o responsável por esse trabalho. Com o aumento da visibilidade do tema e do número de refugiados no país, surgiram outras ONGs e instituições nos estados.
Para saber mais acesse: www.projetovia.com.br