Ação desastrosa da Prefeitura empareda moradias na região da Luz
Ao invés de propor soluções às demandas habitacionais da população no centro de São Paulo, intervenções públicas removem pessoas, inflam a necessidade por auxílio aluguel, agravam a situação das famílias mais vulneráveis e aumentam a demanda por moradia. A ação desastrosa é um triste exemplo de como a ação direta do poder público tem feito crescer o déficit habitacional da cidade.
Jaqueline saiu por volta das 7 horas para levar, à pé, o filho à escola – localizada na região da Luz. Quando voltou, às 7:30, seu imóvel estava lacrado com tudo dentro: roupas, móveis e todos os produtos do seu pequeno comércio que fica no térreo do mesmo prédio.
Jaqueline mora com seu filhos, marido e sogra no centro de São Paulo, na rua Helvétia, na região dos Campos Elíseos. Ela e mais dezenas de moradores e moradoras do bairro foram surpreendidos por uma ação conjunta da Subprefeitura da Sé e da Polícia Militar, no dia 22 de agosto. Um dia depois do Dia Nacional da Habitação, diversas famílias foram retiradas de suas casas pelo poder público logo de manhã e assistiram ao emparedamento dos imóveis onde residem.

A intervenção que, supostamente, visava fechar e selar edifícios comerciais sem alvará (e que também foi noticiada como uma ação policial contra o tráfico) acabou afetando inúmeras famílias, sobretudo as que vivem nas pensões da região, já que muitos estabelecimentos comerciais também são a moradia dessas centenas de pessoas.
É importante lembrar que a área está em uma Zona Especial de Interesse Social (ZEIS), de acordo com o Plano Diretor de São Paulo. Isso significa que existe um Conselho Gestor para discutir e aprovar as intervenções locais, incluindo o cadastramento das famílias que têm o direito de receber atendimento habitacional adequado, tendo em vista o projeto proposto pela Prefeitura de remover os moradores da área. Entretanto, a ação sequer foi acompanhada pela Secretaria Municipal de Habitação (SEHAB), o que demonstra absoluta falta de coordenação das ações do poder público. “A população das quadras está pedindo socorro. A polícia está tirando as pessoas das suas casas para a rua.” (mensagem enviada no grupo de WhatsApp dos conselheiros da sociedade civil)

Apesar do cadastramento feito pela SEHAB, muitas das famílias que vivem na chamada Quadra 37 (Al. Dino Bueno, Rua Helvétia, Al. Barão de Piracicaba e Lgo. Coração de Jesus) e que aguardam o atendimento habitacional, não tiveram tempo de reagir ou se explicar para os agentes públicos que executavam a remoção e o emparedamento dos imóveis. Não fosse a rápida intervenção de conselheiros e conselheiras, e de entidades que puderam enviar representantes para argumentar e demonstrar que os agentes públicos estavam removendo ilegalmente pessoas de suas casas, como a OAB, Craco Resiste e a Defensoria Pública, essas famílias estariam emparedadas para fora de suas moradias. No fim da manhã, algumas pensões já estavam sendo reabertas: funcionários e moradores fizeram aberturas nas paredes recém erguidas para desimpedir o acesso às suas residências.
Não é de hoje que a Prefeitura tem atuado na região de forma arbitrária e violenta. A justificativa de que as forças de segurança estão agindo para combater o crime organizado tem legitimado ações como esta, porém os efeitos práticos têm sido a violação dos direitos das pessoas que vivem naquela área, conhecida como Cracolândia. Em 2017, o Executivo Municipal chegou a demolir um imóvel com pessoas dentro e, em 2018, uma ação da Regional da Sé, muito semelhante à de hoje, emparedou famílias dentro de suas residências alegando estar fechando imóveis irregulares, demonstrando absoluto desconhecimento (ou dissimulação) sobre a realidade da região.

As violações se somam à desinformação e à falta de transparência, visto que o Executivo Municipal, que propõe intervir na área através da Parceria Público-Privada Habitacional desde 2017, ainda não esclareceu ou deu garantias de que aquelas famílias, atingidas diretamente pelo projeto, serão atendidas pela SEHAB de forma adequada. Em vez disso, somam-se episódios como o de hoje em que a condição de extrema vulnerabilidade é agravada pela truculência, deixando o direito à moradia dessas famílias em segundo plano.
Ao invés de propor soluções às demandas habitacionais da população no centro de São Paulo, intervenções públicas como as de hoje removem pessoas, inflam a necessidade por auxílio aluguel, agravam a situação das famílias mais vulneráveis e aumentam a demanda por moradia. A ação desastrosa desta quinta-feira é um triste exemplo de como a ação direta do poder público tem feito crescer o déficit habitacional da cidade.
Felipe Moreira e Vitor Nisida são arquitetos, urbanistas e conselheiros da Quadra 36, 37 e 38 pelo Instituto Pólis.