Análise do voto evangélico ou a fortaleza bolsonarista
Agregação de pesquisas, feita pelo Cebrap, confirma a hipótese de que, diferente da tradição histórica do Brasil, há, sim, um voto confessional. Ao contrário das eleições anteriores, a presença de Lula não desativa essas posições conservadoras. Por quê? Qual caminho o ex-presidente deve seguir?
No Brasil, via de regra, entende-se que não há voto confessional, no sentido de que a religião de um candidato seja o fator determinante para o voto dos fiéis, pois existem vários critérios – econômicos, sociais, regionais, entre outros – para a decisão do eleitor. No máximo haveria a lógica do irmão vota em irmão, mas somente para o legislativo, e não para o executivo. É o que explica, por exemplo, o pesquisador Vinícius Valle (USP), que se dedica ao tema há anos.
De fato. O cientista político Jairo Nicolau (FGV) lembra que Anthony Garotinho, presbiteriano, concorreu pelo PSB nas eleições de 2002 e fez um apelo especial aos evangélicos, sem sucesso – parte expressiva das lideranças apoiou Lula. Marina Silva, fiel assembleiana, não conseguiu o apoio das principais denominações evangélicas para suas campanhas em 2010 e 2014. Pastor Everaldo, em 2014, obteve apenas 2,6% dos votos válidos.
Mas estima-se que cerca de 70% dos votos válidos dos evangélicos tenham ido para Bolsonaro em 2018, tendo sido a mobilização desses religiosos “um dos fatores determinantes” para sua vitória, como argumenta Nicolau. Assim, autores como o especialista em estudos da religião na América Latina, José Perez Guadalupe, supõem que a eleição de Bolsonaro em 2018 tenha sido uma exceção à tradição de que não há voto confessional no Brasil.
Vários fatores explicam a vitória de Bolsonaro. Mas, em relação ao público evangélico, há questões específicas, já bastante conhecidas. Bolsonaro, desde meados de 2010, fez uma guinada em sua carreira, passando a liderar temas caros ao evangelismo. Protagonizou a luta contra o “kit gay” – termo que ele mesmo inaugurou – e tornou-se o mais vocal representante da defesa de uma agenda paleoconservadora, que tem a direita cristã como ator central, como descrevi em artigo recente.
Além disso, há a crise econômica desde 2011, com consequências sentidas, de maneira crescente, entre as classes populares. A rede de proteção oferecida por igrejas é tanto mais relevante quanto mais escassas são as políticas estatais ou difíceis são as condições sociais e econômicas, e talvez, em tais contextos de crise, a confiança dos fieis em seus pastores seja aumentada. Pode-se supor também que a ausência de esperança em melhores condições de vida tenha sido compensada nos argumentos morais e de autoridade, em grande parte capitaneados por religiões de matriz pentecostal.
Outra explicação certamente reside nos fenômenos que levaram à prisão de Lula e a seu impedimento de disputar as eleições. Existe, como aponta o cientista político André Singer (USP), uma predisposição de longo prazo, entre as classes populares, de adesão à direita no Brasil. Essa tendência teria sido desativada com as gestões de Lula e seu perfil conciliador. Mas, com a retirada de cena do petista, a campanha de Bolsonaro teria semeado em terreno fértil.
Esse raciocínio – de que Lula desmotivava as disposições conservadoras – foi confirmado pelas pesquisas de intenção de voto. Sobre as eleições de 2018, o último levantamento do Datafolha com Lula entre os candidatos foi realizado em 22 de agosto. Entre os evangélicos, ele tinha 30% de intenções de votos, e Bolsonaro tinha 24%. Existia um viés pró-Bolsonaro no segmento, uma vez que na média geral o petista tinha 39% e o candidato do PSL, 19%.
Mas não só Lula ganhava entre os fiéis, como o percentual se distanciava muito da estimativa de cerca de 60% dos votos evangélicos (70% dos votos válidos) que Bolsonaro viria a conquistar dois meses depois. O próprio Lula tem essa opinião, valorizando seu perfil agregador: “Eu tenho certeza que aquilo de mamadeira não pegaria em mim”, em referência àquela fake news que impactou negativamente a campanha de Fernando Haddad.
Em 2021, com a retomada dos direitos políticos de Lula, ele e Bolsonaro passaram a oscilar praticamente empatados entre o eleitorado evangélico, na casa dos 35%, estando Bolsonaro muito longe da adesão que tinha desse público na campanha. Com esses números, era de se supor – considerando a regra, mencionada acima, de que não há voto confessional para o Executivo – que a má gestão da pandemia, a crise social e econômica e as acusações de corrupção contra o governo levariam os evangélicos a, gradualmente, voltar à adesão que conferiam a Lula antes da retirada dos seus direitos políticos.
Mas, quebrando essa expectativa, a volta do líder petista às eleições não retomou, entre os evangélicos, o status quo anterior ao seu impedimento.
Ainda em 2021, em todas as desagregações do eleitorado (por religião, gênero, idade, escolaridade e religião), a avaliação negativa de Bolsonaro superava, em muito, a positiva. A única variável que apresentava equilíbrio de opinião, entre positivas, negativas e regulares, era entre os evangélicos. Quase um ano depois, em julho de 2022, o cenário se mantinha o mesmo.
E a particularidade evangélica se aprofundou. Desde o começo de 2022, Bolsonaro passou a readquirir grande vantagem sobre Lula nas pesquisas eleitorais nesse grupo, em tendência consistente e em ampliação – ao contrário da média da população em geral, na qual Lula lidera. Vejamos a agregação de pesquisas eleitorais do Cebrap, organizada pelos pesquisadores André Gerardi e Ronaldo Almeida contemplando já as enquetes realizadas na última semana. O primeiro gráfico se refere ao eleitorado em geral, e o segundo ao eleitorado evangélico.
É verdade que, no eleitorado em geral, Bolsonaro recuperou, discretamente, sua adesão desde março de 2022, devido a uma série de fatores, como o fim da fase mais sensível da pandemia, a saída de Sérgio Moro da disputa presidencial e benefícios econômicos que foram sendo conferidos aos cidadãos. Mas, em oposição ao gráfico da população em geral, no gráfico específico do voto evangélico, Bolsonaro é franco favorito.
No processo eleitoral de 2022, as campanhas de Lula e de outros candidatos de esquerda vêm enfatizando que o evangelismo não é exclusivamente bolsonarista ou de direita, fato que os números comprovam: nunca houve unanimidade no grupo; o teto de Bolsonaro entre esses religiosos provavelmente foi aquele em torno de 60% nas eleições de 2018. Aliás, parte do evangelismo inclusive é consolidadamente de esquerda.
Pesquisadores, como Ana Carolina Evangelista (ISER), a partir de estudos empíricos, salientam que o voto evangélico é heterogêneo e fragmentado: são inúmeras igrejas, práticas litúrgicas e mentalidades; parcela significativa dos evangélicos no Brasil é formada pelos chamados “sem denominação”; e ninguém é apenas evangélico, “assim como não é apenas católico, tampouco apenas mãe, apenas mulher, apenas trabalhador”.
Mas Bolsonaro – apesar da tragédia que foi e tem sido seu governo – mantém uma cidadela, uma fortaleza, composta de um grupo com identificação religiosa. Trata-se de um dos poucos recortes populacionais em que Bolsonaro vence, considerando 32 desagregações de pesquisa realizada pelo Ipec na semana passada.
Comentando esses resultados, o professor André Singer, em conversa recente, aventou a hipótese de que, “a persistir o atual quadro, poderá ser a primeira vez que o eleitorado evangélico tome uma posição conservadora de maneira mais isolada’”, na contramão da tendência nacional.
Se, em 2018, houve quem considerasse o voto em Bolsonaro um voto confessional, como Perez Guadalupe citado acima, essa característica se acentuaria em 2022, na contramão do que a literatura especializada aponta para a história nacional.
Quais as explicações para isso?
Algumas delas são muito evidentes, como os incontáveis acenos que Bolsonaro fez aos evangélicos em sua gestão, incluindo discursos, participação em eventos e cultos, adoção de conceitos religiosos em programas de governo, nomeação de ministros pastores (inclusive no STF), favorecimento do setor em políticas, oposição à possibilidade de prefeitos e governadores proibirem cultos durante a pandemia etc.
É sabido, também, que em todo seu mandato Bolsonaro manteve como pilar o elemento-chave da agenda evangélica, a saber: a defesa da família tradicional – tratada por ele, no seu discurso na abertura da Assembleia-Geral da ONU, em 2019, como “célula mater de qualquer sociedade saudável”, em 2020, como “base” do país, “conservador e cristão”, e, em 2021, como “fundamento da civilização”. É a vitória do discurso e da prática paleoconservadoras: o projeto para uma boa sociedade não são políticas públicas ou medidas distributivas, mas sim o fortalecimento da família como fonte de provimento de seus membros.
Além dessas explicações mais nítidas, há outras que podem ser exploradas. A autora norte-americana Wendy Brown argumenta que evangélicos naquele país se identificariam profundamente com Trump pela experiência compartilhada de serem desprezados pelas elites culturais e atacados por forças mundanas, particularmente por aquelas vindas da academia. A lógica, em tese, pode ser aplicada ao Brasil. E pode explicar as falas de Bolsonaro, nas aberturas da Assembleia Geral da ONU em 2019 e em 2020, sobre perseguição de cristãos e até sobre uma suposta “cristofobia”.
E esse raciocínio talvez explique algo mais sutil que está na base do voto confessional evangélico.
Depois de décadas da construção, por líderes religiosos, de agência coletiva – que passa pela radicalização em temas de costumes – com pretensões de reconhecimento, influência e poder político, a candidatura, eleição e gestão de Bolsonaro colocam no centro da agenda pública e do exercício do poder uma fonte de legitimidade que não é a de matriz iluminista, fundada na laicidade e no racionalismo. É uma fonte de legitimidade de matriz divina, mas ao mesmo tempo mais palpável (sobretudo considerando a crescente desigualdade social) que o léxico da igualdade abstrata de direitos originada no liberalismo.
A performance dos Bolsonaro vem a confirmar essa hipótese. Não só o presidente já disse, em discurso, que o Estado não é laico, e sim cristão, como os discursos recentes da primeira-dama Michelle remetem diretamente a uma linguagem mística: “promessa de Deus”, a “nação pertence ao Senhor”, “portas do inferno” etc.
Diante desse cenário, identifico três tipos de conselho vêm sendo oferecidos à campanha de Lula. Um deles, seria de que Lula deveria, de alguma forma, aderir a um discurso religioso – não bastaria o discurso econômico para atrair os evangélicos. Outro, de que Lula deveria focar na proteção de idosos e crianças – papel atribuído à família tradicional no discurso cristão. O terceiro, oposto ao primeiro (mas não ao segundo), de que Lula deveria focar na pauta econômica: “os evangélicos são o segmento religioso com maior proporção de famílias de baixa renda”, diz o pesquisador Vinícius Valle.
Eu ficaria com a segunda e com a terceira posições. Tentar aderir a uma linguagem propriamente evangélica demostra inautenticidade – como quando Dilma discursou “Feliz é a Nação cujo Deus é o Senhor”, e, em algum limite, pode desgastar Lula com parte do seu eleitorado cativo. O segundo e o terceiro estão dentro da lógica de proteção social e de realização de políticas públicas. Lula oscila entre as estratégias, mas em entrevista dada no último dia 16 ele seguiu esse caminho último: não governarei para religiões, mas para todo o povo brasileiro.
Demostrar respeito e até reverência pelas religiões é uma postura esperada dos políticos. Mas as crenças são plurais e devem conviver em uma esfera pública comum – a Constituição é expressa em determinar isso como direito fundamental (art. 5º, VI e VIII). O contrário é o risco da intolerância mais nítida, aproximada do racismo religioso, com a qual a campanha de Bolsonaro já vem flertando. Um aprofundamento, ainda mais grave, da lógica do inimigo que foi essencial à sua ascensão e manutenção no poder.
Marina Basso Lacerda é doutora em Ciência Política, pesquisadora do CENEDIC/FFLCH/USP e autora, entre outros trabalhos, do livro O novo conservadorismo brasileiro: de Reagan a Bolsonaro (Zouk, 2019).