Atrás do tempo perdido: o retorno da diplomacia?
O contraste entre as performances de Lula e de Jair Bolsonaro na seara externa não poderia ser maior. Delegada à chamada área ideológica durante boa parte do mandato de Jair Bolsonaro, a chefia do Ministério das Relações Exteriores propôs-se a desconstruir os pilares fundamentais da diplomacia brasileira
Com a vitória da oposição nas eleições presidenciais, os próximos anos prometem reverter um ciclo de progressivo isolamento brasileiro no cenário global. Isso porque, por um lado, a atual série de alta das commodities traz consigo o potencial de aumento do investimento estrangeiro no Brasil e da inserção de nossos produtos em novos mercados. Por outro lado, as relações internacionais do novo governo merecem especial relevo no presente contexto, uma vez que as candidaturas que se enfrentaram em outubro passado esposam visões completamente distintas, não apenas no domínio interno, mas também no que tange ao papel do país na política externa.
De fato, o contraste entre as performances de Lula e de Jair Bolsonaro na seara externa não poderia ser maior. Delegada à chamada área ideológica durante boa parte do mandato de Jair Bolsonaro, a chefia do Ministério das Relações Exteriores propôs-se a desconstruir os pilares fundamentais da diplomacia brasileira, dentre os quais a autonomia frente às grandes potências (Estados Unidos, União Europeia e China) e a liderança do processo de regionalização sul-americana.
Com bravatas e acusações direcionadas à China e a importantes líderes europeus como Angela Merkel e Emmanuel Macron, Bolsonaro e Ernesto Araújo trataram de constranger a posição brasileira frente à quase totalidade de nossos maiores parceiros comerciais. Os posicionamentos hostis às eleições de Alberto Fernandez, na Argentina, e de Joe Biden, nos Estados Unidos, terminaram por rebaixar o prestígio da presidência brasileira em face de outros dois importantes aliados. Ao mesmo tempo, desmedidos esforços foram empreendidos no sentido de atender aos interesses particulares da base eleitoral bolsonarista, aproximando o Brasil de líderes direitistas mundo afora, a exemplo do premiê israelense Benjamin Netanyahu, do húngaro Viktor Orbán e, mais destacadamente, do ex-presidente estadunidense Donald Trump, sem, contudo, restar claro quais ganhos resultaram deste processo.
Desse alinhamento automático à ideologia populista de direita, desacoplado de maiores considerações dos interesses nacionais, surtiu uma preocupante rejeição do Brasil enquanto interlocutor internacional. Potências estrangeiras passaram a olhar para o país com desconfiança enquanto líder do Sul global, revertendo o paradigma de governança democrática e de preservação ambiental anteriormente conquistado. Isso se refletiu na estagnação de importantes negociações, como a do acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia, evidenciando o preterimento de uma diplomacia pragmática em favor de ganhos políticos – ou narrativos – internos.
Nessa conjuntura, Lula inicia seu terceiro mandato sobre uma espécie de terra arrasada da posição brasileira no mundo. Se, por um lado, a equipe de Lula carrega consigo um considerável cabedal político e prestígio em fóruns internacionais, por outro, persiste o desafio de desfazer prejuízos reputacionais na tentativa de retomar o status quo ante.
Em 2011, quando deixou a presidência, o legado de Lula nas relações exteriores consistiu em consolidar a posição brasileira como líder regional dentro de organizações como o Mercosul e a Unasul, assumir a vanguarda da agenda ambiental, bem como diversificar as parcerias diplomáticas, expandindo a atuação de empresas brasileiras pelas Américas, África e Europa. Em poucas palavras, o país soube aproveitar-se de um contexto internacional favorável para impor-se como ator relevante, quiçá indispensável.
Contudo, o mundo em janeiro de 2023 já não será mais o mesmo de 2003. O maior desafio da próxima gestão será adequar as fórmulas da política externa de Lula às diversas mudanças da conjuntura global. Exerçamos, pois, um sucinto retrospecto.

Quando Lula iniciou seu primeiro mandato, a Pax Americana encontrava-se em seu apogeu. Nosso vizinho ao norte correspondia, então, a 30% da economia global[1], dominando o mundo, confortavelmente, em termos militares, diplomáticos e financeiros. Hoje, aquele país tangencia os 23% da produção mundial, delineando-se cada vez mais blocos de oposição ao seu poderio em importantes regiões, notadamente no Leste Europeu (Rússia e Belarus), no Oriente Médio (Irã e Síria), e na Ásia Oriental (China e Coreia do Norte). Em particular, a China, cujo PIB cresceu aproximadamente dez vezes entre 2003 e 2021, desponta como principal desafio à hegemonia estadunidense. Em duas décadas, os chineses ultrapassaram os norte-americanos enquanto principais parceiros comerciais do Sul global, contrapondo-se a Washington em uma série de fóruns diplomáticos e conflitos armados.
Já a América Latina, neste mesmo ínterim, nada ganhou de espaço na economia global. A região saltou de 5.2% do PIB mundial em 2003[2], para 8% em 2013, apenas para voltar ao patamar dos 5% em 2021. Essa estagnação se explica tanto pela queda no preço das commodities a partir de 2014, quanto pelos efeitos da pandemia de COVID-19, que afetou desproporcionalmente a região, seja em número de mortes, ou em termos de deterioração dos índices socioeconômicos. Tamanhas dificuldades internas e intrarregionais fazem da reinserção do Brasil enquanto potência autônoma um desafio ainda maior do que em 2003, porquanto não apenas o cenário global apresenta uma polarização crescente entre Estados Unidos e China, mas também devido à nossa posição de barganha encontrar-se diminuída.
Ainda que o contexto atual tenha suas particularidades e reveses inerentes, não há que se falar em uma complexidade estritamente inédita. Isso porque, conflitos militares, guerras comerciais e polarizações axiológicas são eventos frequentes na realidade global e a diplomacia brasileira possui um firme histórico no enfrentamento e, sobretudo, no aproveitamento de situações análogas às presentes. Prevalece, em especial, um senso de praticidade e sensatez na Chancelaria pátria, do qual o novo presidente poderá se valer nos anos vindouros. Façamos, então, um breve resgate do arcabouço institucional à disposição do futuro mandatário.
De maneira geral, é possível notar a consagrada habilidade do Itamaraty em se distanciar de atuações vinculadas a um purismo ideológico, logrando priorizar os interesses nacionais – tanto no viés político, quanto no econômico. Em outras palavras, verifica-se que, em conjunturas penosas como a da atualidade, a Política Externa Brasileira ostenta a tradição de evitar alinhamentos automáticos e acirramentos discursivos, optando por adotar postura sóbria e objetiva que favorece a obtenção de vantagens.
Nesse sentido, lembre-se, por exemplo, do chamado “Americanismo Pragmático” desenvolvido pelo Barão do Rio Branco no quadro do Corolário Roosevelt e na véspera da Grande Guerra; ou também da “Equidistância Pragmática” praticada no bojo do Estado Novo de Vargas e no âmbito da 2ª Guerra Mundial. Igualmente, rememore-se o “Pragmatismo Responsável e Ecumênico” de Azeredo da Silveira sob o governo Geisel, que foi aplicado durante o hiato entre os dois Choques do Petróleo e no período de descolonização afro-asiática; ou, ainda, a Política Externa “Ativa e Altiva” desempenhada por Celso Amorim ao longo da presidência de Lula e na ocasião da Guerra ao Terror, posterior ao atentado de 11 de setembro de 2001.
Veja-se que as circunstâncias possuíam, cada qual, suas dificuldades (e oportunidades) específicas. Mas a intenção da diplomacia nacional se mostrou quase uniforme: buscou-se extrair benefícios condizentes com os desígnios pátrios, bem como a projeção do país na arena global, seja como moderador ou como agente protagonista. Paralela e genericamente, conservaram-se os princípios de não intervenção; igualdade entre os Estados; autodeterminação dos povos; e solução pacífica de conflitos, hoje insculpidos no art. 4º da nossa Carta Magna, junto de outras previsões legais igualmente basilares.
Diante desse histórico, parece razoável prever que a Chancelaria Brasileira sob o futuro governo Lula saberá bem compreender o cenário global da atualidade, identificando suas singularidades e os novos espaços a serem ocupados. Afinal, é notória a pretensão nacional em preservar a multipolaridade do quadro internacional, sobre o qual se sustenta a condição pátria de um “global player“. Em vez de priorizar um dos polos em ascensão e disputa, é provável que o Brasil opte, mais uma vez, por si mesmo, o que se traduz na defesa dos interesses característicos aos países emergentes e em desenvolvimento e na restauração de sua habilidade de barganha. A palavra-chave é pragmatismo!
Nessa toada, é possível fazer um breve exercício de futurologia, sem intuito de esgotamento ou de absoluta precisão. Primeiramente, espera-se que o Itamaraty priorize a estabilidade e a previsibilidade, no sentido de recuperar a credibilidade do Brasil no sistema internacional, superando seu atual isolamento relativo e retomando papel de protagonismo. Com tal postura, auxiliada pelo carisma do próximo mandatário, vislumbra-se o aumento do potencial atrativo do Brasil nos mais variados aspectos, dentre os quais se destacam: atração de investimento, cooperação comercial, combate à fome e à pobreza, desenvolvimento técnico e científico, intercâmbio cultural, turismo, educação e infraestrutura.
As disrupções logísticas e as crises produtivas causadas pela pandemia de Covid-19 e aprofundadas pelo conflito entre Rússia e Ucrânia demonstram a necessidade premente de reindustrialização do país, que poderá se valer de financiamento externo por parte de nações parceiras e economicamente complementares, dando ênfase a setores estratégicos como o de telecomunicações, energia renovável e infraestrutura. Similarmente, o Brasil pode aproveitar a perturbação dos mercados energéticos e alimentares, aprofundando sua capacidade exportadora de commodities e reforçando a coordenação com os países do G-20 Comercial, de maneira a aumentar a pressão pela reforma da OMC, mediante a reativação do seu órgão de apelação e a maior a liberalização no domínio agrícola.
Além disso, a ocasião exige o engajamento de atores empenhados na manutenção de uma real multipolaridade. Demandas por maior representatividade e eficiência da ONU encontram terreno fértil em momentos de instabilidade como o presente, que se mostra oportuno para a ampliação da campanha pela reforma do Conselho de Segurança, por exemplo. A coordenação política entre os BRICS e o alargamento de suas trocas comerciais também prospera, pavimentando a hipótese de entrada de novos membros. Há, ainda, uma tendência de realocação do Brasil como agente decisivo, de forma a ocupar, com renovada liderança, espaços como o FMI e as missões de paz da ONU, além de continuar o processo de adesão à OCDE.
No que tange a temática ambiental, a conjuntura é bastante propícia. A diplomacia brasileira deve aproveitar a COP-27 para sinalizar o reavivamento de seus esforços e a mudança de postura governamental, demonstrando a exequibilidade e o arrojo de sua agenda verde. É momento de barganhar e de atrair mais investimentos para si, pressionando os países desenvolvidos por um maior financiamento – o Brasil precisa se disponibilizar e gozar do anseio (quase unânime) pela sustentabilidade. A efetiva inserção brasileira no mercado de carbono também parece ser um caminho a ser percorrido, onde serão impulsionadas novas frentes negociais, de renda e empregatícias.
No contexto regional, há perspectiva de ganhos advindos da “nova onda rosa”, o que permitiria a revitalização e desburocratização do Mercosul, inclusive com a revisão dos termos do Acordo de Associação firmado entre o bloco e a União Europeia, para sua efetiva entrada em vigor. Ademais, é viável o eventual reingresso brasileiro na Unasul e na CELAC, instâncias em que poderia voltar a desempenhar papel de liderança, visando ao resgate de diálogo propositivo e, especialmente, inclusivo com as demais nações latino e sul-americanas – sem que disso resulte uma necessária saída do Prosul. Maior integração fronteiriça, cooperação política multissetorial e intensificação e diversificação comercial são indispensáveis para uma política externa que se pretende eficaz.
Como se vê, muitas são as possibilidades de auferir benefícios – ou ao menos avanços – a partir da conjuntura mundial posta. Os trajetos são inúmeros, as metodologias diversas e os parceiros plurais, mas há uma certeza basilar: a Política Externa nacional precisa atuar como catalisadora do processo de recuperação socioeconômica diante dos retrocessos da última década. De fato, há um eloquente vazio de liderança sul-americana que suplica pelo retorno do Brasil à arena global, em sua configuração propositiva, autônoma e moderada. O país deve aproveitar essa chance ímpar de voltar a ser uma nação conciliadora, presente e estimada.
Para tal, coordenação e cooperação internacionais são imperativos, e o resgate das boas relações, pautadas, especialmente, pelo pragmatismo, deverá nortear as ações brasileiras no próximo quadriênio, mantendo-se a tradição da respeitada e ilustre diplomacia pátria.
Nina Nobrega Martins Rodrigues é mestre em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP) e advogada; Felipe Minhoni Della Posta é mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Tel Aviv e advogado.
[1] Banco Mundial. Produto Interno Bruto por país (em dólar). https://data.worldbank.org/indicator/NY.GDP.MKTP.CD. Acesso em: 05 nov. 2022.
[2] Banco Mundial. Produto Interno Bruto por região (em dólar). https://data.worldbank.org/indicator/NY.GDP.MKTP.CD?locations=ZJ. Acesso em: 05 nov. 2022.