Correção de curso
O estudo da política externa norte-americana é muito mais proveitoso para entender a guerra na Ucrânia do que acompanhar as bravatas de Putin.
Nove entre dez manchetes do conflito russo-ucraniano mencionam o nome de Vladimir Putin. Sucesso midiático desde sua estreia na política, em 1999, o então diretor do serviço de inteligência promovido a primeiro-ministro aprendeu rapidamente a valer-se da comunicação e da violência para atingir seus objetivos políticos. O primeiro deles foi continuar sua escalada de poder para tornar-se presidente da Federação Russa nas eleições de março de 2000.
Nos meses que antecederam o pleito, Putin construiu habilmente a imagem de um estadista forte e impiedoso através da mídia, promovendo a retomada da guerra contra os rebeldes muçulmanos do Cáucaso. Seus pronunciamentos contundentes na televisão após uma série de atentados terroristas em Moscou prometeram a aniquilação dos insurgentes[1] e foram acompanhados pelo bombardeio das cidades chechenas, o que possibilitou a Putin utilizar-se do exército para “surfar na onda” da insegurança dos anos 1990. A brutal resposta militar aplicada na Chechênia rendeu-lhe excelentes frutos: foi eleito em primeiro turno com 53% dos votos.
Desde então a fórmula vem sendo repetida com certa conivência do assim chamado Ocidente[2]. Em 2008, enquanto governante de fato (seu aliado Dimitri Medvedev era presidente, mas Putin seguiu no comando da estrutura política), Putin lançou-se em outra guerra contra a pequena Geórgia, sob o pretexto de que o novo governo pró-EUA de Mikhail Saakashvili havia permitido o trânsito de terroristas chechenos nas áreas de fronteira. A fim de preservar sua esfera de influência no Cáucaso e impedir a entrada de uma ex-república soviética na Otan, Putin arrogou para si duas porções do território vizinho, onde tropas russas permanecem estacionadas até hoje.
A eclosão de uma guerra convencional nos rincões da Europa surpreendeu a comunidade internacional durante a celebração das Olimpíadas de Pequim, momento simbólico de um mundo globalizado. Neste sentido, a guerra russo-georgiana, que culminou com a ocupação da Abcásia e da Ossétia do Sul, representou um verdadeiro anticlímax para os articuladores da Pax Americana. Não obstante, a agressão russa deixou de suscitar quaisquer reações significativas por parte dos Estados Unidos e da União Europeia, seja por meio de sanções econômicas ou de isolamento diplomático. Muito pelo contrário – poucos meses após o conflito, o recém-eleito Barack Obama decidiu estender a mão a Putin e oferecer-lhe uma espécie de “trégua” nas relações bilaterais, relegando a questão da Geórgia à condição de primeira de uma série de concessões que Washington viria fazer a Moscou.
Esta política de apaziguamento, conhecida como “recomeço” (reset policy), demonstrou-se desastrada desde o princípio[3], simbolizando o ápice de uma visão pretensiosa e ingênua das relações internacionais. Segundo esta perspectiva, seria possível moldar a Rússia à semelhança das democracias liberais europeias por meio da intensificação do comércio exterior e da aproximação diplomática. A iniciativa do russian reset pelo primeiro governo Obama diz muito sobre como a Rússia era enxergada pelo Ocidente até então – uma potência em pleno declínio, indigna de ser confrontada militarmente e passível de ser transformada em uma aliada.
Ironicamente, em dezembro de 2011, após duas décadas de tratativas, a Rússia finalmente concluiu as negociações para aderir à Organização Mundial do Comércio, mérito que a administração Obama reivindicou, mas não sem deixar de expressar sua desaprovação à prática da fraude eleitoral nas eleições legislativas ocorridas no mesmo mês. Os episódios paralelos evidenciam o fracasso das tentativas de ocidentalizar a Rússia por meio de sua inclusão em instituições internacionais. Mais ainda, denunciam a postura condescendente dos EUA com o autoritarismo de Putin, que já mostrava suas contradições desde cedo e viria a extrair um preço ainda maior.
Tendo em vista os ganhos auferidos na Geórgia, a resposta do Kremlin à crise na Ucrânia iniciada em janeiro de 2014 não deveria ter sido motivo de surpresa. O modus operandi da política externa russa, testado e retestado, não se alterou significativamente com a decisão de anexar ilegalmente a península da Crimeia e apoiar as insurgências de Luhansk e Donetsk. Ao perceber o perigo de acercamento da aliança militar norte-americana e a provável alienação de um parceiro comercial relevante[4], Putin agiu como de costume, usando do aparato militar russo em franca modernização para atingir objetivos estratégicos, e de quebra recuperar sua popularidade.
A conhecida fórmula funcionou novamente e o grau de aprovação do governo russo saltou de 62% em janeiro de 2013, durante os protestos contra o terceiro mandato de Putin, para 86% em maio de 2014, logo após a anexação da Crimeia. Isto porque a crise ucraniana abriu as portas para a criação de uma narrativa pela qual Putin, além de defensor das minorias russas no espaço ex-soviético, havia se tornado uma força de resistência à hegemonia liberal norte-americana. Neste sentido, os protestos pró-União Europeia da Praça Maidan, em Kiev, inauguraram uma crise existencial dentro do mundo russo, para cuja saída apenas um dos lados – Ocidente ou sua negação – poderia se sagrar vitorioso. Daí, de novo, o recurso à guerra.
O que tornou a crise ucraniana um divisor de águas não foi o desafio à ordem internacional promovido por Putin, cujo roteiro já era bem conhecido por todos, mas a reação enérgica sustentada pelo Ocidente. Com a erupção do conflito civil no Donbass e a constatação de que soldados russos operavam na região em segredo, líderes europeus e norte-americanos redefiniram suas prioridades estratégicas em torno da integridade territorial ucraniana, alterando fundamentalmente a rota das relações com o gigante russo.
Em primeiro lugar porque, com a intensificação do apoio militar ao lado ucraniano (leia-se, ao governo de Kiev), o Ocidente passou a interferir abertamente na esfera de influência russa no Leste Europeu, o que até então era feito de maneira tímida e velada. Tornaram-se frequentes os exercícios militares entre Otan e Ucrânia, o último dos quais, Rapid Trident 21, ocorreu em território ucraniano em setembro de 2021, fazendo do país nada menos do que um membro não oficial da aliança; paralelamente, provocações militares também se intensificaram em torno das fronteiras russas, a exemplo do sobrevoo de aviões americanos B-52 ao redor de Kaliningrado em setembro de 2020. Em sintonia com estes esforços, desde 2014, o governo estadunidense passou a oferecer assistência militar a Kiev, que desde então totalizou mais de US$ 3 bilhões em armas e equipamentos diversos, inclusive letais, a partir do governo Trump[5]. Estes armamentos vêm sendo usados no leste da Ucrânia contra os grupos separatistas e forças russas, caracterizando a guerra russo-ucraniana como conflito proxy entre Estados Unidos e Rússia, à semelhança do que ocorreu no Vietnã entre 1954 e 1964[6].
Em segundo lugar, a lógica ocidental vis a vis a Rússia alterou-se também no sentido teórico e de estratégia política (grand strategy). As pesadas sanções econômicas impostas ao regime russo a partir de 2014 e radicalizadas em fevereiro de 2022, demonstram o fim de qualquer pretensão de que a Rússia seja um partícipe no sistema financeiro global dominado pelo dólar e, por consequência, que venha realizar reformas democráticas pretensamente decorrentes da abertura econômica. É o prego no caixão da doutrina neoliberal de expansão democrática (democratic enlargement) esposada por democratas e republicanos desde o governo de Bill Clinton, segundo a qual a instauração de uma economia de mercado precede o surgimento de uma democracia[7]. Ora, se o Ocidente pretende ostracizar a 11ª maior economia do mundo com bloqueios econômicos sem precedentes, então está disposto a cortar na própria carne e arriscar o status de suas moedas como reserva de valor, colocando em xeque a própria arquitetura financeira erigida no pós-guerra.
Estes desenvolvimentos dizem muito mais sobre a política externa estadunidense e, em grande medida, europeia em relação à Rússia, do que sobre a velha racionalidade estratégica do Kremlin. Embora seja menos interessante falar sobre Biden, Johnson e Scholz do que sobre Putin e os oligarcas, certo é que a intensificação da guerra na Ucrânia a partir da invasão russa de 24 de fevereiro de 2022 se deve muito mais à postura assertiva dos aliados da Otan do que à doutrina russa de intervenção em seu entorno estratégico.
Com efeito, o fato de que os aliados ocidentais reagiram à invasão de 2014 por meio do fomento a uma guerra proxy demonstra que: (i) a Rússia é considerada um player importante e hostil no sistema internacional, e portanto, seu peso deve ser contrabalanceado por meio de amplo dispêndio de recursos e posturas militares assertivas; (ii) a Otan não é capaz de confrontar a Rússia no nível nuclear-estratégico e, assim, a política de contenção do estado russo deve operar-se no ambiente militar convencional (sem o uso de armas nucleares), mas também no nível econômico, diplomático, cultural e digital; (iii) uma guerra proxy destas dimensões só poderia ocorrer no espaço pós-soviético, onde a Rússia é efetivamente capaz de projetar seu poderio militar e, em contrapartida, de onde seus recursos podem ser drenados em uma guerra difícil e custosa para Moscou.
A nova política de contenção da Rússia (neocontainment) representa uma continuidade com o segundo mandato de Barack Obama e os eventos de 2014. É, portanto, emblemático que a atual crise venha a ocorrer no governo de Joe Biden, o líder ocidental que atualmente possui a maior relação com o tema da Ucrânia e expansão da Otan. Como vice-presidente de Obama, Biden foi encarregado de conduzir as relações com o governo do aliado Petro Poroshenko, o qual assumiu controversamente após os protestos da Euromaidan. Com a instalação de um governo pró-EUA, o prestígio político de Biden na Ucrânia tornou-se enorme, sendo tema notório da política norte-americana que seu filho, Hunter Biden, assumiu o posto de diretor na empresa de energia ucraniana Burisma entre 2014 e 2019. Em um episódio igualmente notório, Biden exigiu a demissão do procurador-geral ucraniano Viktor Shokin em 2016, demonstrando sua influência sobre a política local.
O envolvimento inicial de Joe Biden com a questão ucraniana se deveu à sua atuação prolongada com temas de política externa no Senado americano desde os anos 1970, e em especial no âmbito da Comissão de Relações Exteriores a partir dos anos 1990. Um dos projetos de sua autoria, de 1999, autorizava o uso de tropas americanas no conflito do Kosovo, um dos pontos mais baixos na relação entre EUA e Rússia, tendo sido escrito em colaboração com o republicano e futuro rival político John McCain. Ao longo de seu histórico de votações e projetos, demonstrou ser um hawk (“falcão”) em política externa, havendo apoiado as intervenções dos Estados Unidos na Iugoslávia e no Iraque, além de contribuir ativamente com a projeção da Otan rumo ao Leste Europeu.
Após duas décadas de divisões profundas entre os aliados da Otan, é um triunfo para o governo Biden ter logrado “reviver” sua principal aliança militar. Estados Unidos e Europa haviam entrado em franco desacordo a partir da invasão estadunidense do Iraque, em março de 2003, movimento que Obama não conseguiu reverter, pois as longas crises na Líbia e na Síria alienaram ainda mais os aliados europeus. Donald Trump, por sua vez, radicalizou a cisão, colocando em xeque a própria existência da Otan, ao retirar tropas da Europa e ameaçar a saída da Otan caso os demais países-membro não viessem a investir o mínimo de 2% de seu PIB em seus exércitos. Assim, o reavivamento da crise na Ucrânia também serviu aos interesses estratégicos do establishment democrata no que toca à correção de curso nas relações interatlânticas e a reafirmação da Europa (e em especial, do Mediterrâneo) como zona de influência estadunidense, sem que este esforço seja custeado unicamente pelos Estados Unidos.
A partir destas considerações, fica claro que análises da guerra russo-ucraniana focadas em uma suposta oposição de valores (democracia/autoritarismo; liberdade/opressão; diplomacia/guerra) apenas obscurecem o debate, dificultando a compreensão dos interesses envolvidos. Sem dúvidas, a biografia de Putin e o sistema político por ele construído ajudam a explicar a tragédia que neste momento atinge a vida de milhares no Leste Europeu. Contudo, a eclosão do atual conflito é uma decorrência direta de décadas de planejamento, empenho de recursos e produção de narrativas, e não um acontecimento fortuito decorrente do arbítrio de um autocrata.
Por debaixo do horror diário da guerra e da mistificação que se constrói em torno dela, é necessário reconhecer que, em determinados momentos históricos, a escalada da violência se traduz em ganhos de popularidade, em lucros e em oportunidades. Infelizmente, tanto Putin quanto Biden entendem que a guerra é um excelente negócio.
Felipe Minhoni Della Posta, advogado e mestre em Segurança Internacional pela Universidade de Tel Aviv.
[1] Em uma declaração à televisão que se tornaria notória, no dia 24 de setembro de 1999, Putin afirmou: “Vamos perseguir os terroristas em todos os lugares. Se eles estiverem no aeroporto, nós os perseguiremos no aeroporto. E se nós os capturarmos no banheiro, então os mataremos no banheiro… A questão foi resolvida de uma vez por todas.” (trad. livre).
[2] Reconhecendo a problemática em torno da utilização do termo “Ocidente”, para cuja compreensão a obra de Edward Said é fundamental, passarei a utilizar a palavra como sinônimo de países aliados aos Estados Unidos, sobretudo integrantes da OTAN e da União Europeia.
[3] Em março de 2009, a Secretária de Estado Hillary Clinton ofertou um botão de “recomeço” ao chanceler russo, porém a palavra escrita em russo fora traduzida de forma errada: https://m.folha.uol.com.br/mundo/2009/03/530612-traducao-errada-faz-hillary-presentear-chanceler-russo-com-botao-de-sobrecarga.shtml
[4] Em 2011, a Ucrânia foi o 4º maior destino das exportações russas, adquirindo bens e serviços no montante de 30 bilhões de dólares. Já em 2019, ocupava o 15º lugar, com apenas 6 bilhões de dólares importados do país vizinho. https://oec.world/en/visualize/tree_map/hs92/export/rus/ukr/show/2011/
[5] Em dezembro de 2017, a administração de Donald Trump reverteu o posicionamento até então adotado pelo governo estadunidense de não enviar armas letais para a Ucrânia. Para mais informações acerca da cooperação militar com a Ucrânia, vide: https://www.state.gov/u-s-security-cooperation-with-ukraine/
[6] Neste período inicial do conflito, os Estados Unidos ainda não haviam se envolvido diretamente, mas apenas com apoio financeiro e militar ao governo de Saigon.
[7] Uma análise escrita para o think tank conservador Brookings Institutions previu ingenuamente em 2001 que: “A convicção de Putin e da maioria da elite russa de que somente uma economia de mercado e laços mais estreitos com o Ocidente proporcionarão uma base para a prosperidade e estatura internacional dá aos Estados Unidos uma influência substancial sobre como a situação política fluida na Rússia se desenvolve.” https://www.brookings.edu/research/russian-democracy-and-american-foreign-policy/