Contrarreforma e “corte” de benefícios: o lucro com a miséria
O que acontecerá com os segurados que tiveram seus benefícios “cortados”? Serão reaproveitados nas empresas de origem? O mais provável é que os quase 200 mil trabalhadores fiquem desempregados, sejam privados do atendimento de suas necessidades e elevem os percentuais de miséria
Tem sido notícia frequente o corte de benefícios do INSS por incapacidade e assistenciais administrados pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), além do Bolsa Família. Em geral, as notícias trazem o montante de benefícios “cortados” acompanhado das justificativas de “economia” aos cofres públicos. Mas não se faz relação entre os “cortes” e a contrarreforma (redução de direitos) da seguridade social. Também não se fala sobre possíveis impactos na vida das pessoas que têm os benefícios “cortados” nem sobre os reais objetivos dos “cortes”. Não é dito que estes aprofundam a miséria e que há quem ganhe com ela. É disso que trata este artigo.
O movimento de contrarreforma da seguridade social em contexto de crise
A Constituição Federal de 1988 foi elaborada em uma conjuntura de lutas por reformas (ampliação de direitos), favorecendo conquistas como a instituição do sistema de seguridade social referente aos direitos de saúde, previdência e assistência social. Os objetivos do sistema apontam para a universalidade de cobertura, equidade de participação no custeio e gestão democrática. A previdência social agregou direitos como o valor mensal dos benefícios não inferior ao salário mínimo e a irredutibilidade desses valores, vinculados ao último salário. A assistência trouxe o Benefício de Prestação Continuada (BPC), no valor de um salário mínimo, para os idosos e as pessoas com deficiência cuja família tenha renda familiar per capita inferior a um quarto do salário mínimo. A saúde assumiu a forma de direito de todos, dever do Estado.
O sistema possui um orçamento único constituído por receitas de fontes de base diversificadas (contribuições de empregados, empregadores, importadores de bens ou serviços do exterior, contribuições sobre a receita de jogos de loterias, orçamentos públicos das três esferas e outras), o que possibilita balanços superavitários, como têm mostrado grupos de estudos e pesquisas de universidades e instituições especializadas, como a Fundação Anfip. Mas o desenho da seguridade social não agradou ao capital, que vê saúde e previdência como mercadorias lucrativas. Assim, ele nem chegou a ser todo colocado em prática e tornou-se alvo de um movimento de contrarreforma, ora agressivo e com reação social, ora sutil, a depender da correlação de forças, dos instrumentos usados para viabilizá-lo e do grau de comprometimento dos governos com o capital.
Esse movimento é a conjugação de medidas restritivas de direitos de seguridade social que compõem a política de austeridade fiscal que sustenta a disputa do fundo público, em favor dos capitais. É um movimento que força a redução da previdência e da saúde públicas para dar lugar à expansão da previdência e saúde privadas. As medidas que mais chamam atenção são as viabilizadas por mudanças na Constituição Federal. Contudo, a contrarreforma também ocorre por leis complementares, medidas provisórias, leis ordinárias, decretos ou decisões gerenciais sob a forma de resoluções, entre outros. Assim, desde os anos 1990 ocorre no Brasil um movimento de contrarreforma da seguridade social. Aqui, a ênfase é a da assistência e previdência social pela extinção, dificuldade de acesso e/ou redução dos valores e do tempo de usufruto dos benefícios e serviços, além do desfinanciamento da seguridade social pelas renúncias tributárias e desvios de recursos. A revisão de benefícios por incapacidade tornou-se regra desde 1999. Porém, “os cortes” de benefícios se acentuam em tempos agudos de contrarreforma.
No entanto, quais são os determinantes estruturais desse movimento de contrarreforma? Em quais argumentos ele se sustenta? Quais são seus reais propósitos?
A crise manifesta no início de 1970, com aprofundamento a partir de 2008, é uma típica crise estrutural do capital e traz sérias consequências para a humanidade. Em seu curso, uma das características do capitalismo é a centralidade do capital financeiro nas relações econômicas e sociais, associado a grupos industriais. Isso ocorreu porque a dívida dos Estados-nação forçou a liberalização dos mercados e as políticas para atrair créditos, estimulando a expansão do mercado financeiro. Assim, seu poder beneficiou-se da dívida pública, da política de juros altos e da supervalorização do mercado de ações.
Entre as instituições constitutivas do capital financeiro, além dos bancos, os investidores institucionais (fundos de pensão, fundos coletivos de aplicação, sociedades de seguros, entre outros) expandiram-se. Segundo o professor emérito da Universidade de Torino Luciano Galindo, em Finanzcapitalismo (2016), esses fundos de investimentos alcançaram em 2017 quase um terço do PIB mundial, cerca de US$ 17,5 trilhões. Destes, US$ 8,5 trilhões correspondiam a contratos previdenciários geridos por companhias de seguros, bancos e outros entes financeiros. Isso mostra a força dos fundos e explica a pressão para a privatização da previdência e saúde públicas.
Em geral, os argumentos a favor da contrarreforma são: o envelhecimento populacional e a insustentabilidade da seguridade social pelo regime de repartição simples; o elevado custo do trabalho; e a expansão da dívida pública pelo investimento em políticas sociais. Tais argumentos são capciosos. Os balanços orçamentários da seguridade têm sido superavitários. Este ano, a Anfip fez circular na mídia o saldo da seguridade social em 2015, de R$ 11,2 bilhões, apesar do desvio de R$ 63 bilhões para formar superávit primário pela incidência da Desvinculação de Receitas da União (DRU), enquanto o governo falava em déficit da previdência. Quanto ao custo da produção, as empresas são beneficiadas por renúncias tributárias. Além disso, são os serviços da dívida que corroem o orçamento, e não as políticas sociais. Segundo a equipe da Auditoria Cidadã da Dívida, em 2016 43,94% do orçamento destinaram-se aos juros e às amortizações da dívida, e 22,54%, à previdência social.1 Isso mostra a falácia do argumento. A contrarreforma atende à pressão do capital sobre o Estado para direcionar o fundo público a seu favor, suprimir ou limitar as aposentadorias, pensões e assistência à saúde pela seguridade, para forçar as famílias, com renda, a procurá-las no mercado.
Na década de 1990, o governo Fernando Henrique, diante da dívida e do baixo crescimento econômico, cedeu às pressões do FMI e do Banco Mundial, comprometendo-se com o projeto neoliberal e a política de austeridade fiscal. Reduziu direitos, privatizou estatais e iniciou o movimento de contrarreforma da seguridade social. A Emenda Constitucional n. 20, de 1998, retirou direitos previdenciários.
O governo Lula se iniciou sob expectativa popular e condições econômicas adversas, porém já comprometido com o grande capital. A Carta ao Povo Brasileiro, de 2002, apontou para um mercado de consumo de massa e para a “reforma” da previdência e do trabalho. Dito e feito. Melhorou o desempenho da economia, os indicadores do trabalho, valorizou o salário mínimo e reduziu os índices de pobreza, mas sua política macroeconômica não fugiu à perspectiva neoliberal. Prosseguiu a contrarreforma da previdência, atingindo, sobretudo, os regimes dos servidores públicos pelas emendas constitucionais n. 41 e 42, de 2003, e n. 47, de 2005. Em 2008, com o agravamento da crise, usou os benefícios previdenciários e do Bolsa Família para estimular o consumo, deixando aposentados e pensionistas endividados, sob controle do capital financeiro.
O governo Dilma seguiu a trilha. Em 2012, criou a Fundação de Previdência Complementar dos Servidores Públicos Federais. No contexto de agravamento da crise e da expansão da dívida, cedeu a novas pressões e, em 2014, as medidas provisórias n. 664 e 665, convertidas em leis em junho de 2015, dificultaram o acesso à pensão por morte, ao auxílio-doença, à aposentadoria por invalidez, ao seguro-desemprego e outros. Em 2015, as renúncias tributárias atingiram R$ 276 bilhões, reduzindo o financiamento da seguridade social, como diz a Anfip, na Análise da Seguridade Social 2015. Naquele ano, criou o Fórum de Debates sobre Políticas de Emprego, Trabalho e Renda e de Previdência Social, para propor mudanças. Com o impeachment da presidenta, o relatório do fórum serviu ao governo Temer na PEC n. 287/2016 – a mais agressiva proposta de contrarreforma da seguridade.
Assim, o movimento de contrarreforma, iniciado em 1998, segue, sob as pressões do capital, na disputa pelo fundo público. A dívida pública é seu determinante estrutural. Ao se tornar fonte de poder dos fundos de investimento, pressiona por austeridade fiscal, incluindo o desinvestimento em políticas sociais e as privatizações.
Conivente com o grande capital, o governo Temer leva ao extremo a política de austeridade fiscal. Para reduzir investimentos em políticas públicas, formar superávit primário e garantir os serviços da dívida, instituiu o novo regime fiscal pela Emenda Constitucional n. 95, de 2016, que congela os limites constitucionais para as despesas primárias da administração pública federal por vinte anos e deixa passível de aumentos os investimentos financeiros. Essa medida é central para a contrarreforma da seguridade social, associada à extinção do Ministério da Previdência Social e Trabalho e à transferência dos órgãos estratégicos da previdência social e a competência em matéria de previdência para a Fazenda. São medidas com fins políticos, econômicos e ideológicos, que reforçam a Fazenda para conduzir a contrarreforma e favorecem a influência do capital.
Os “cortes” de benefícios: o lucro com a miséria
Outro lado da moeda é o “corte” de benefícios ativos da seguridade social. Pela Medida Provisória n. 739 foi criado o bônus de R$ 60 para os médicos peritos do INSS por cada revisão de auxílio-doença com mais de dois anos ou de aposentadoria por invalidez. Em agosto de 2016, os dados oficiais registravam 28,181 milhões de benefícios previdenciários. Destes, 1,659 milhão eram auxílios-doença e 3,22 milhões eram aposentadorias por invalidez. Seriam revisados cerca de 530 mil auxílios-doença e 1,2 milhão de aposentadorias por invalidez. Em novembro, essa medida provisória perdeu a validade. O governo divulgou que em sua vigência foram revisados 20,964 milhões de auxílios-doença; 16,782 milhões (80,5%) foram cortados.2
As revisões foram retomadas em janeiro de 2017 por força da Medida Provisória n. 767, transformada em lei em junho, contendo as mesmas regras, inclusive o bônus-perito. O governo pretende “economizar” com as revisões. Os médicos peritos são servidores do INSS, e essa atividade compõe suas atribuições. Por que estão sendo duplamente pagos para realizá-la? Qual seria o propósito? Multiplicando-se o número de perícias pelo valor do bônus-perito, nota-se que, na primeira fase da revisão, o governo gastou R$ 1.257.840 em bônus. Em agosto de 2017, o governo divulgou que até 14 de julho foram realizadas 199.981 perícias e 180.268 benefícios foram “cortados”. O percentual acima de 80% de “corte” foi mantido e o gasto com bônus pulou para R$ 11.998.860. Como a meta é revisar cerca de 1,7 milhão de benefícios, o gasto com bônus-perito será de R$ 102,2 milhões. O governo divulgou que quer “economizar” R$ 10 bilhões ao ano em auxílio-doença e aposentadorias por invalidez.3 Que tipo de proteção é essa, cujo controle visa apenas alcançar uma meta econômica? A capacidade laboral das pessoas não conta? E por que os médicos peritos do INSS estão sendo tão privilegiados em um contexto de restrição de direitos, congelamento de salários e demissões? A Portaria n. 291, de 12 de setembro de 2017, orienta os cargos e entidades do serviço público civil federal quanto ao programa de demissão voluntária e impede os peritos do INSS de aderir ao programa. Por que será? A categoria é estratégica para a proteção social, é verdade, mas os dados e fatos nas revisões sugerem o oposto. Sua atuação parece voltar-se mais a reforçar a meta governista de reduzir investimentos em proteção social. O “corte” de mais de 80% dos benefícios revisados inquieta os conhecedores dos altos níveis de adoecimento dos trabalhadores nesta conjuntura de crise. Será que algo extraordinário teria acontecido a esses segurados para torná-los capazes para o trabalho, em um passe de mágica? Ou será que os mais de 80% “cortados” estariam com benefícios “indevidos”? Mas como isso poderia acontecer se os médicos peritos que efetuam os “cortes” são os mesmos que reconheceram as incapacidades para conceder grande parte dos benefícios? É dito que o elevado percentual de “cortes” se deve à concessão judicial de parte dos benefícios. Teriam os médicos peritos da justiça e do INSS errado tanto em suas avaliações? Dados e fatos até agora são obscuros para a sociedade.
No dia 13 de setembro, circulou nas redes sociais uma minuta de regimento interno do INSS que valoriza a posição dos médicos peritos na estrutura organizacional e retira o serviço social desta. O artigo 88 da Lei n. 8.213, de julho de 1991, diz que compete ao serviço social esclarecer aos beneficiários seus direitos sociais e os meios de exercê-los e buscar com eles a solução dos problemas decorrentes de sua relação com a previdência social. Ou seja, a atuação desse serviço deve voltar-se para ampliar o acesso aos direitos – o oposto da lógica perversa de “cortes” de benefícios para economizar com o investimento em políticas sociais e direcionar os recursos para o capital por meio dos juros e amortização da dívida pública. Isso explica a valorização da perícia e a fragilização do serviço social. É a força do lucro esmagando os direitos.
E o que acontecerá com os segurados que tiveram seus benefícios “cortados”? Serão reaproveitados nas empresas de origem? O mais provável é que os quase 200 mil trabalhadores fiquem desempregados, sejam privados do atendimento de suas necessidades e elevem os percentuais de miséria. Espera-se que suas capacidades laborais estejam restabelecidas. Para esses desempregados, com o acesso ao seguro-desemprego e o retorno ao auxílio-doença dificultados pelas novas regras que aumentaram as carências para esses benefícios, o cenário é complexo. É a lógica do lucro com a miséria se impondo.
O “corte” de benefícios não se limitou à previdência. Ao final de 2016, o governo divulgou parciais da revisão do Programa Bolsa Família – “corte” de 469 mil benefícios e plano para revisar benefícios de 1,4 milhão de famílias.4 De junho a agosto de 2017, os benefícios de mais 543 mil famílias foram cortados, restando, em julho, 12,7 milhões de benefícios.5 O “corte” de mais de 1 milhão de auxílios é o maior da história do programa. Mais fome à vista.
Em novembro de 2016, a Portaria Interministerial n. 2 determinou a revisão do BPC destinado às pessoas idosas e àquelas com deficiência. Em agosto de 2016, os dados oficiais mostravam 4.361.829 de BPC ativos. Todos com mais de dois anos serão revisados, sob controle ferrenho, como indica a minuta de regimento interno do INSS, cujo inciso II, do artigo 178, atribui à Divisão de Gerenciamento de Benefícios Assistenciais “supervisionar as ações que fortaleçam a revisão do BPC”. Leia-se cortes?
Na sequência dos “cortes”, uma surpresa: o Conselho Nacional de Assistência Social sugeriu incluir na Lei Orçamentária Anual de 2018 R$ 59 bilhões para a assistência social; destes, R$ 2,7 bilhões para os serviços (Resolução CNAS 12/2017). Porém, em 6 de setembro, ele foi surpreendido com a destinação de apenas R$ 78 milhões. O que pretende o governo? Acabar com os serviços de assistência social? Além da redução do BPC, é o que as medidas sugerem. Serão mais quantos milhões de pessoas sem proteção social? Enquanto isso, a dívida ativa dos quinhentos maiores devedores da União atinge quase R$ 1 trilhão – R$ 422 bilhões são de dívida previdenciária.6 E os devedores, poupados. Esta é a lógica perversa da contrarreforma refletida no “corte” de benefícios e serviços: ônus para os trabalhadores, bônus para os “cortadores” e lucro para o capital.
As propostas de contrarreforma não findam aqui. A PEC 287, cujo substitutivo (com alterações) aguarda votação na Câmara dos Deputados, é muito restritiva. As exigências de 65 anos de idade e 25 anos de contribuição para fins de aposentadoria para homens e mulheres, e a elevação da idade de 65 para 70 anos para fins de acesso ao BPC pelos idosos podem ser um adeus à aposentadoria e ao BPC para muitas pessoas. Se essa PEC for aprovada, ou seu substitutivo, a restrição de direitos imporá fraturas irrecuperáveis à seguridade social, deixando as camadas mais pobres sem proteção, direcionando os recursos para os serviços da dívida e empurrando os que têm renda para a previdência complementar. É a fome de alguns tornando-se o lucro de outros. Somente uma forte reação da classe trabalhadora inibirá esta “miséria lucrativa”.
*Maria Lucia Lopes da Silva é assistente social, doutora em Política Social e professora da graduação em Serviço Social e do mestrado e doutorado em Política Social da Universidade de Brasília.