A Guerra dos Seis Dias: 1967, o início da ocupação
Segundo artigo da série “Limpeza Étnica” traz um panorama do que foi a Guerra dos Seis Dias e porque ela é um acontecimento chave para entender as mudanças cartográficas ocorridas na Palestina
A Guerra dos Seis Dias, ocorrida em 1967, mostrou-se um importante evento para o surgimento de novas configurações cartográficas na Palestina e da limpeza étnica ainda em curso. Como aponta Denise Jardim, no Conselho de Segurança da ONU, a chamada, até então, “Questão da Palestina” foi renomeada em 1967 para “Situação no Oriente Médio”. A forma de tratamento revela os condicionantes históricos, um determinado momento político dos conflitos no Oriente Médio, bem como a centralidade do território palestino nessas disputas, ainda que a palavra “Palestina” tenha sido subtraída.
Assim, para entender os desdobramentos desse evento, ainda presentes nos dias atuais, devemos lançar mão de uma breve contextualização histórica. O Estado de Israel consegue expandir suas fronteiras cartográficas além do que foi definido na resolução 181 de 29 de novembro de 1947, em função de um plano orquestrado pela França, Inglaterra e o Estado sionista, visando a retomada do controle do Canal de Suez ainda em 1957. O canal encontra-se no Egito, na região da Península do Sinai e é considerado uma das principais rotas comerciais marítimas no mundo, sendo estratégica, uma vez que está localizado na rota entre o continente africano e asiático, além de sua proximidade com a Europa. Sendo um canal “artificial”, foi apresentado ao mundo em 1869, servindo de importante ponto estratégico para a expansão dos interesses econômicos das potências europeias à época. Estando em território egípcio, fora nacionalizado pelo governo de Abdel Nasser no ano de 1956, feito que desagradou as potências imperialistas europeias, servindo de escusa para uma intervenção militar que, também, servira aos interesses israelenses no que diz respeito à expansão de seus controles territoriais.
Assim, em 1957, um ano após a nacionalização do canal, segundo o plano francês, o Estado israelense invadiria o Egito, protagonizando o início das operações militares na região. Como explica Leonardo Schiocchet, a chamada “Crise do Canal de Suez” acarretou em dois resultados imediatos: uma profunda crise de legitimidade da ação frente aos próprios britânicos [participantes do plano] e a comunidade internacional; e a intensificação do conflito entre o mundo árabe de um lado, e Israel e as potências europeias de outro.
Na outra mão, os países árabes que participaram da guerra foram a Jordânia, a Síria, o Iraque, o Líbano e o Egito. Com o acirramento das tensões entre o Estado israelense e o governo nasserista (no qual uma das principais bandeiras era a “libertação da Palestina”), acontece, em 1967, o que veio a ser conhecida como a “Guerra dos Seis Dias”.
Importante notar que uma das motivações iniciais para o começo dos conflitos armados teria sido a expulsão das tropas da ONU que se encontravam na Península do Sinai (uma das margens do canal de Suez), o que justificava, segundo o governo israelense, uma invasão. Neste momento, o Estado de Israel via-se mais forte militar e politicamente do que os países árabes vizinhos. No entanto, frente a uma ameaça destes países, o Estado sionista pretendeu, antes, “mostrar sua força”. Isso poderia levar a um acordo mais estável do que o que pudera conseguir [com as potências ocidentais], mas por trás disso havia a esperança de conquistar o resto da Palestina e terminar a guerra inacabada de 1948[1].
Guerra de Seis Dias
Em 14 de junho de 1967, o Estado israelense ataca o Egito e, nos dias seguintes, domina o Canal de Suez, ocupando militarmente o Sinai no Egito e, na Palestina, Jerusalém, Cisjordânia e Faixa de Gaza, além das Colinas de Golan (território sírio, também conhecidas por Jawlan). Assim, como aponta Hourani, o que resultou de maneira mais significativa a longo prazo foi a ocupação israelense da Palestina: Jerusalém, Gaza e parte ocidental da Jordânia (mais especificamente a marge oeste do Rio Jordão, também referida como “margem ocidental”, ou, Cisjordânia). De maneira similar aos eventos ocorridos em 1948 (a Nakbah), os palestinos se referem à Guerra de Seis Dias como Al Naksa, que pode ser traduzido para o português como “revés” – ou “recaída / reincidência”.
Assim, durante e após a referida guerra, mais palestinos se tornaram refugiados, e mais caíram sob o domínio israelense. Como afirma Arlene Clemecha, na ocasião, aproximadamente 240 mil palestinos foram forçados a deixar suas terras. Com isso, alguns se tornaram refugiados pela segunda vez, e passaram a ser denominados, junto com seus descendentes, de “deslocados de 1967”. A partir da Guerra dos Seis Dias, então, tem-se início a ocupação dos chamados Territórios Palestinos Ocupados (TPO). O termo “ocupação”, neste sentido, pode ser usado para referência à presença militar e administrativa da Cisjordânia, Colinas de Golan e Faixa de Gaza (até 2005), a partir do reconhecimento formal da Comunidade Internacional, através de instituições como a ONU ou a Anistia Internacional, e da condenação constante emitida por estas.
Este termo, no entanto, pode ser expresso de maneiras divergentes àquelas estipuladas pelas diretrizes das instituições acima referidas. Grosso modo, o termo “ocupação”, enquanto uma categoria nativa possível, é também expresso de forma situacional e localizada, variando a construção de sentidos de acordo com espaços distintos. Em outras palavras, dentre as expressões locais, na Palestina, esta categoria pode se referir também à “48”, enquanto espaço.
Aqui, note-se, o termo local “48” – cotidianamente utilizado nos jargões populares – não faz referência ao ano de 1948, mas sim ao espaço da Palestina onde foram estabelecidas as fronteiras geográficas reconhecidas pela Comunidade Internacional como pertencente ao Estado de Israel. Neste sentido, a Palestina, em termos locais, é composta por quatro espaços distintos, a Faixa de Gaza, Cisjordânia, Jerusalém e 48. De todo modo, embora seja observável o uso cotidiano do termo “ocupação” em referência também ao espaço 48, neste artigo fazemos referência à ocupação da Cisjordânia, Jerusalém e Faixa de Gaza (além das colinas de Golã), em acordo com o reconhecimento da existência desta pela Comunidade Internacional.
Assim, como afirma Denise Jardim, em 1967, a ocupação da Cisjordânia, do Sinai, Gaza, Golã e do leste de Jerusalém expandiu a legislação israelense a estes territórios, voltando a utilizar um governo de administração militar nestes territórios. Nesta via, sobre o início da ocupação, segundo Rosemary Sayegh, pouco depois da conquista de 1967, o comandante militar e líder político Yigal Allon formulou o “Plano Allon”, que previa a tomada por Israel de cerca de um terço da Cisjordânia além do controle de toda a região. A recusa israelense de uma retirada total do Sinai, em fevereiro de 1971, em troca de um tratado de paz oferecido pelo Egito, levou à guerra de outubro de 1973 [também conhecida como guerra de Yom Kippur]. Com isto, os parâmetros básicos da política israelense com relação aos territórios palestinos foram estabelecidos no fim da década de 1960, na proposta de Yigal Allon, um importante membro trabalhista do governo.
O “Plano Allon”, propunha a anexação por Israel de até metade da Cisjordânia, confinando os palestinos a dois cantões separados no norte e no sul da outra metade[2]. Ainda, como demonstra Hourani: “Os israelenses começaram a administrar as terras conquistadas praticamente como partes de Israel. O Conselho das Nações Unidas finalmente conseguiu, em novembro, chegar a um acordo sobre a Resolução 242, por cujos termos haveria paz dentro de fronteiras seguras e reconhecidas, Israel se retiraria dos territórios que tinha conquistado e cuidaria dos refugiados. Mas houve desacordo sobre o modo como isso devia ser interpretado; se os palestinos deviam ser encarados como uma nação ou uma massa de refugiados individuais. Os chefes de estados árabes adotaram sua própria resolução numa conferência realizada em Cartum, em setembro de 1967, nenhum reconhecimento das conquistas israelenses e nenhuma negociação.”
Deslocamentos forçados
A partir dos eventos de 1967, por volta de 450 mil palestinos foram deslocados, em função das novas políticas israelenses. Dentre estas, destaca-se a demolição de casas (aos moldes do colonialismo britânico), a construção de muros e instalação de diversos assentamentos visando popular os espaços ocupados. Além disso, Israel mantém políticas de deportação da população palestina. Ainda, como coloca Arlene Clemecha, o número exato das denominadas “Pessoas Internamente Deslocadas”, como são chamados os desenraizados de dentro das fronteiras dos territórios ocupados, é desconhecido devido à ausência de um sistema centralizado de registros.
A Guerra dos Seis Dias, assim, é um marco importante para a compreensão da atual conjuntura política, social e econômica da Palestina, uma vez que o evento deu início à ocupação militar da Cisjordânia, tendo sido implementadas políticas de controle de mobilidade, controle de recursos naturais, controle de distribuição indireta de energia elétrica, instalação de checkpoints por todo o território, instalação de assentamentos ilegais que abrigam colonos israelenses, distribuição de armas de grosso calibre para colonos, controle de fronteiras e alfandegário e demais políticas em curso ainda nos dias atuais.
Camp David e os primeiros acordos
O fim pontual da Guerra dos Seis Dias se dá em 17 de setembro de 1978, quando é assinado o primeiro “acordo de Camp David”, entre os governos israelense e egípcio. Este firmava um “acordo de paz”, que previa a retirada israelense do Sinai e sua posterior devolução ao Egito. Ainda, pretendia lançar luz às questões relacionadas à Palestina, no que tange a ocupação israelense dos territórios ocupados a partir de 1967. Fora assinado por Anwar Sadat, presidente egípcio à época, e pelo então Primeiro Ministro israelense Menahem Begin, tendo sido mediado por Jimmy Carter, presidente dos Estados Unidos. Em função deste acordo, a conferência da Cúpula Árabe, realizada entre 5 e 7 de novembro de 1978, em Bagdá, votou várias sanções contra o Egito[3], por entender que este protagonizou acordos sem consulta alguma aos países árabes e, muito menos, à população palestina. Ou seja, o descontentamento da cúpula se deu pelo entendimento de que Sadat firmou os acordos de forma secreta com o governo israelense. Tais medidas deixaram o Egito em uma posição de isolamento, com relação aos países árabes da região. Na mesma via, reitera-se que, ainda que os acordos de Camp David fossem também referentes às questões da Palestina, os palestinos, novamente, não protagonizaram qualquer participação. Com isso, a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) também se posicionou fortemente contrária ao acordo, não apenas por se tratar de uma “paz em separado”, mas sobretudo por considerar que os acordos eram “um novo passo no processo de eliminação da causa palestina” (ibid). Ademais, a OLP, em seu pronunciamento, referiu-se a uma “divisão” dos palestinos, constitutiva dos termos do acordo. Como explica Salem: “O povo palestino é [em função do acordo] dividido em três diferentes categorias: os habitantes da margem ocidental (Cisjordânia) e Gaza; aqueles que foram desalojados desses dois territórios em 1967; e finalmente, de maneira genérica, os refugiados. Os acordos não mencionam, por exemplo, aqueles que foram desalojados depois de 1967 de Gaza e Cisjordânia, nem os que saíram em 1948, mas que não se registraram no UNRWA [Agência da ONU para refugiados palestinos].”
Dentre as objeções feitas pela OLP, uma referia-se diretamente a uma das propostas do acordo, a saber, a que acarretaria a retirada da presença militar israelense dos territórios ocupados em 1967 e a posterior instauração de um governo palestino autônomo. No entanto, nas resoluções do acordo, a composição deste futuro governo seria definida, inicialmente, não pelos palestinos, mas pelos governos egípcio e israelense. Nesta via, a participação palestina nos processos seria subjugada não apenas às decisões do governo egípcio, mas também aos interesses israelenses. O plano, assim, previa a saída dos israelenses dos territórios ocupados em 5 anos, no entanto, até mesmo os processos eleitorais nas regiões da Faixa de Gaza e Cisjordânia aconteceriam sob comando do governo militar israelense[4]. Enfim, como parte do cumprimento do acordo firmado, o Sinai fora devolvido ao Egito, onde o prazo para a retirada total das forças israelenses seria o dia 25 de abril de 1982. O cumprimento israelense, no entanto, jamais acontecera, fazendo com que o Estado de Israel permanecesse com a ocupação militar da Cisjordânia, que se mantém até os dias atuais.
Sobre a Faixa de Gaza, vislumbrou-se a retirada de tropas e assentamentos israelenses deste espaço no ano de 2005. Entretanto, instaurou-se um bloqueio da faixa que, ainda que não contemple a presença física cotidiana de tropas israelenses, mantém absoluto domínio da região, através do controle de trânsito para dentro e fora do espaço, controle total de energia elétrica, telefonia, internet, recursos naturais, atividades de pesca, entrada e saída de bens diversos como alimentos, medicamentos, eletrônicos, veículos, entre outros. O violento bloqueio à Faixa de Gaza é, também, condenado pela Comunidade Internacional. Contudo, mesmo diante de ataques brutais contra a faixa através de bombardeios, corte de recursos naturais, fechamento de fronteiras, corte de energia elétrica, internet e telefonia, interrupção do repasse de verbas, corte no fornecimento de medicamentos através do controle de fronteira, a Comunidade Internacional tem feito pouco, ou quase nada, para reiterar a condenação ao bloqueio. Bloqueio este que informa diretamente os eventos em curso no ano de 2023, tendo início em 2005, após anos de ocupação militar israelense do espaço desde 1967.
Rafael Gustavo de Oliveira é doutor em Antropologia pela Universidade Federal do Paraná. Pós-doutorando pelo Departamento de Letras Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Residindo na Palestina há, somados, quatro anos, à parte de visitas ao campo por cerca de uma década, tem desenvolvido pesquisa acerca de construções locais de territorialidades e usos de categorias locais de espaço e suas componentes identitárias.
Texto adaptado de minha tese de doutorado “Al Dakhel, cartografias como experiência: reflexões a partir de um trabalho de campo na Palestina”, de 2020.
Leia também o primeiro artigo da série “Limpeza étnica na Palestina”.
Referências
CLEMESHA, Arlene, E. Palestina, 1948-2008 – 60 Anos de Desenraizamento e Desapropriação. Forum, Universidade de São Paulo. Departamento de Letras Orientais. Ano V, 2008.
JARDIM, Denise F.. Palestinos no extremo sul do Brasil: Identidade étnica e os mecanismos sociais de produção da etnicidade. Chuí/RS. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. Rio de Janeiro, 2000.
[1] HOURANI, Albert. Uma História dos Povos Árabes. Tradução: Marcos Santarrita.Companhia das Letras, 2006.
[2] FINKELSTEIN, Norman G.: Imagem e realidade do conflito Israel-Palestina. Tradução de Clóvis Marques. – Rio de Janeiro: Record, 2005.
[3]SALEM, Helena: O que é Questão Palestina. 2a Edição. Coleção Primeiros Passos. Editora Brasiliense, 1983.
[4] OLIVEIRA, Rafael: Selah al Museka: uma etnografia das práticas e produções musicais palestinas. Dissertação de Mestrado, UFPR, 2015.
Texto muito parcializa. Aponta uma hipótese como uma verdade, mas se trata de uma teoria (da conspiração?) apenas.