O país dos desiguais
A enorme concentração da renda e da riqueza é marca registrada do país. O motivo da perversão distributiva é a correspondente concentração do poder. E, na raiz deste fator, está a fragilidade da democracia brasileira. Em cinco séculos de história, não somamos mais de quarenta anos de regime democrático
Identificar renda e riqueza extremamente concentradas no Brasil não constitui nenhuma novidade. E dizer que isso representa uma herança secular, de difícil superação, tampouco adiciona algum grau de inovação ao já conhecido atualmente. Mas a compreensão das principais razões que produzem uma repartição tão desigual da renda e da riqueza, bem como sua reprodução nos dias de hoje, pode ser motivo de interesse. Especialmente quando se trata de investigar a viabilidade da formulação de medidas cabíveis para sua superação.
Da colonização aos dias de hoje, a riqueza social tem sido pessimamente repartida entre o conjunto da população. De acordo com o Atlas da exclusão social – os ricos no Brasil (Cortez, 2004), percebe-se a continuidade secular no grau de concentração, desde a data em que passa a haver algum registro contábil da riqueza no país. Ao longo do seu processo histórico, o Brasil percorreu distintas fases: Colônia (1500- 1822), Império (1822-1889), República (após 1889). Mas não houve modificação substancial de seu perfil distributivo. Apesar do aparecimento de novos personagens ricos, que se diferenciaram das famílias tradicionalmente assentadas na riqueza primário-exportadora, protagonizando o capitalismo industrial (1930-80) e a financeirização (em curso desde 1981), a desigualdade de renda permaneceu estável. Uma pequena parcela da população apropria-se de muito, enquanto a maior parte dos brasileiros fica com bem pouco.
Padrão extremamente concentrado
Em síntese, o Brasil caracteriza-se por construir um padrão extremamente concentrado de partição da renda e da riqueza.
Os dados disponíveis e confiáveis indicam a persistência estrutural do jogo da distribuição pessoal da renda e da riqueza, mesmo quando ocorre o aparecimento de novos jogadores. Os 10% mais ricos da população impõem, historicamente, a ditadura da concentração, pois chegam a responder por quase 75% de toda riqueza nacional. Enquanto os 90% mais pobres ficam com apenas 25%. Independentemente dos padrões de desenvolvimento econômico pelos quais o Brasil passou, prevaleceu a estabilidade na desigualdade de repartição da renda e da riqueza entre seus habitantes.
Essa situação se agravou ainda mais com o fim do ciclo de industrialização nacional (1930-1980), quando a fatia correspondente à renda do trabalho na composição da renda nacional encolheu substancialmente. Do final da década de 1970 à metade da primeira década do século XXI, a participação do rendimento do trabalho na renda nacional caiu quase 12 pontos percentuais. Simultaneamente, cresceu a porcentagem relativa às formas de riqueza associadas aos proprietários (lucros, juros, aluguéis, renda da terra).
A concentração da renda e da riqueza é uma marca inalienável do Brasil. De acordo com o Atlas citado, embora o país possua aproximadamente 60 milhões de famílias, 45% de toda a renda e a riqueza nacionais são apropriados por apenas 5 mil famílias extensas.
Esse descalabro – já dissemos – não é algo recente. Pelo contrário, vem sobrevivendo a todas as mudanças históricas: o rompimento com Portugal, o fim da escravidão, a passagem para a República. Vem sobrevivendo também à sucessão dos distintos ciclos econômicos. Tanto os ciclos primário-exportadores (pau-brasil, açúcar, ouro, café, borracha), que se prolongaram até o começo do século XX, quanto o desenvolvimento industrial-urbano subseqüente apenas modificaram as fontes da riqueza, mantendo praticamente intacta a concentração na distribuição dos frutos do crescimento econômico.
Desde 1980, com o abandono do projeto de industrialização nacional, tem avançado no país o ciclo da financeirização da riqueza, que traz em seu bojo o retorno ao modelo primário-exportador de matérias-primas e produtos agropecuários (agronegócios). Da mesma forma que os ciclos econômicos anteriores, o padrão distributivo segue inalterado, a não ser pelo aprofundamento da desigualdade de renda e riqueza. Entre 1980 e 2000, quando o crescimento econômico foi pífio, se tornou geograficamente mais concentrada ainda a presença dos ricos no Brasil. Atualmente, somente quatro cidades (São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Belo Horizonte) concentram quase 80% de todas as famílias ricas do país.
Como explicar tal situação? A resposta talvez possa ser encontrada na estabilidade do conservadorismo no poder. Assim como a renda e a riqueza, o poder no Brasil encontra-se extremamente concentrado. Daí porque o país jamais ter vivido alguma experiência revolucionária. Levantes existiram, mas sempre massacrados pelas forças conservadoras. Mesmo a revolução burguesa terminou por não acontecer aqui. E as reformas civilizadoras do capitalismo contemporâneo também deixaram de ocorrer de maneira efetiva. Sem revoluções e sem reformas consideráveis, o padrão distributivo não seria modificado. A passagem de um modo de produção a outro mostrou-se inofensiva ao padrão excludente de repartição da renda e da riqueza.
Experiências de desconcentração
Desde o abandono do direito fundado na vontade divina, o mundo construiu dois tipos de experiências de desconcentração da renda e da riqueza.
O primeiro associou-se a processos revolucionários que tinham o homem como protagonista de uma nova ordem econômica, social, política e cultural. A substituição do velho pelo novo não resultou, neste caso, da mera alteração de estágios em um mesmo ciclo. Ao contrário, a revolução tornou-se símbolo de uma mudança brusca no ritmo até certo ponto normal da evolução social. O processo histórico de ruptura representado pelas revoluções pode ser dividido entre as de natureza burguesa e as de natureza socialista.
As revoluções burguesas tiveram o papel fundamental de substituir regimes feudais e de servidão pelo modo de produção capitalista. Nesse sentido, corresponderam à desapropriação, em maior ou menor medida, do poder e da riqueza da aristocracia rural pela burguesia comercial, industrial ou financeira. Esta revolucionou a sociedade, valorizando o investimento nos meios de produção e o trabalho, em contraste com a cultura aristocrática do ócio e dos prazeres. A nova composição do poder eventualmente combinava parte dos estratos sociais do antigo regime com os estratos de classe emergentes. Mas, em geral, a violência dos conflitos armados, inclusive com guerras civis de grandes proporções, caracterizou os mais importantes processos revolucionários burgueses: a Revolução Inglesa de 1640, a Guerra de Independência dos Estados Unidos de 1776, a Revolução Francesa de 1789 e a Guerra Civil Norte-Americana de 1871.
No que diz respeito às revoluções socialistas, seu propósito declarado era a deposição da classe burguesa pelas classes trabalhadoras, tendo por horizonte o fim dos privilégios decorrentes da propriedade privada dos meios de produção e, no limite, a própria dissolução das classes sociais. Tal foi o sentido da experiência frustrada da Comuna de Paris de 1871 e das etapas avançadas da Revolução Russa de 1917, da Revolução Chinesa de 1949 e da Revolução Cubana de 1959. Com o término da Segunda Guerra Mundial, houve uma expansão do campo socialista, que, antes do colapso dos regimes do Leste Europeu e do desmoronamento da União Soviética, em 1991, chegou a englobar um terço da população do mundo.
O segundo tipo de experiência de desconcentração da renda e da riqueza, adotado por vários países, associou-se a reformas civilizadoras do modo de produção capitalista. Tais reformas – muitas vezes identificadas como o cumprimento em migalhas de um longo processo revolucionário – têm sido fruto da cultura democrática. As lutas políticas, travadas desde o século XIX, pelo abandono dos regimes autoritários (quando muito atenuados por sistemas de democracia censitária, que facultava o voto somente aos homens ricos) propiciaram as condições reais para o processo reformista. A extensão do voto secreto a toda população adulta garantiu crescente representatividade aos diferentes segmentos sociais no Parlamento (possibilitando a confecção de leis destinadas a promover uma menor concentração de renda) e
no Executivo (possibilitando a adoção de políticas econômicas e sociais redistributivistas).
Em síntese, o predomínio dos regimes políticos democráticos terminou viabilizando a realização de, pelo menos, três grandes reformas civilizadoras do modo de produção capitalista.
A primeira, em ordem de importância, foi a reforma agrária, realizada na maioria dos países desenvolvidos até o final do século XIX – ou até a primeira metade do século XX, no caso do Japão e da Itália.
A segunda foi a reforma tributária, capaz de inverter a chamada estrutura primária de repartição do excedente econômico gerado. Sem alterar as formas clássicas de distribuição da renda (com os capitalistas apropriando-se dos lucros; os banqueiros, dos juros; e os proprietários de bens imóveis, da renda da terra e dos aluguéis), introduziu-se uma nova rede de tributação progressiva. Os segmentos responsáveis pela absorção de maiores parcelas da renda e da riqueza passaram a pagar maior quantidade de impostos que outros segmentos sociais.
A terceira grande reforma foi a social. A constituição de um padrão de bem-estar social resultou da formação de fundos públicos a partir da realização da reforma tributária. Frente ao maior aporte de recursos, coube aos poderes públicos garantir a expansão de gastos em áreas sociais, como educação, saúde, habitação, transporte, assistência e previdência. Com a extensão do acesso aos bens e serviços públicos à totalidade da população trabalhadora, houve uma elevação considerável no padrão de vida.
Tornou-se robusta a interferência das reformas agrária, tributária e social na repartição mais equânime da renda nacional. Na Inglaterra, por exemplo, o segmento correspondente ao 1% mais rico da população absorvia, antes dos impostos, 11,2% de toda a renda nacional. Após o pagamento dos impostos, sua participação na renda líquida caía para 6,4%. Já o segmento correspondente aos 50% mais pobres detinha 23,7% da renda nacional antes dos impostos. E ficava com 26,5% após sua participação nas políticas sociais.
Com os programas sociais, parcela importante da população (crianças, adolescentes, idosos, doentes, deficientes físicos e mentais) pode viver sem depender diretamente do mercado de trabalho, beneficiando-se dos fundos públicos. Para a população dependente do mercado de trabalho, a democracia nas relações trabalhistas, associada ao compromisso do pleno emprego, permitiu a realização de contratos coletivos favoráveis à melhor distribuição dos frutos do crescimento econômico. Simultaneamente, a regulação da concorrência intercapitalista moderou excessivas disparidades na distribuição da renda.
A legitimidade do sistema político partidário consagrou aos partidos principais (de natureza social-democrata, liberal ou mesmo conservadora) o palco necessário para a atuação organizada e a possibilidade de iniciativas reformistas destinadas a restringir a concentração da renda e da riqueza eivadas do modo de produção capitalista. Uma vez que pressupunham a desconcentração do poder por meio do aprofundamento do regime democrático, as experiências reformistas terminaram sendo majoritárias como padrão de desconcentração de renda no mundo.
O desafio brasileiro
Entre nós, a ausência de democracia consolidada parece ser a grande razão do conservadorismo e da concentração do poder. Em seus mais de cinco séculos de existência, o Brasil não contabilizou mais de quarenta anos de regime democrático. Pois é claro que não se pode chamar de democracia o que ocorria durante a fase imperial do século XIX e a República Velha (1889-1930). Tratava-se, isto sim, de um regime censitário, capaz de disponibilizar o voto tão somente para a população masculina com posses e renda: cerca de 1% da população!
Deve-se destacar ainda que o processo eleitoral não era secreto. Somente a partir da década de 1930, o Brasil avançou rumo à consolidação do voto universal e secreto, embora deixando de fora a população analfabeta. Mas, justamente nesse período, sobrevieram duas ditaduras, a do Estado Novo (1937-45) e a do regime militar (1964-85) – bem quando se definiu um novo pacto de poder favorável à industrialização (década de 1930) e quando o país registrou as maiores taxas de crescimento da renda (o “milagre econômico” de 1969-73).
Nos períodos em que autoritarismo predominou, os ricos foram favoravelmente beneficiados, mantendo-se inalterado o padrão distributivo excludente. Os apelos populares e progressistas em favor da melhor repartição dos frutos do crescimento econômico foram marginalizados do núcleo de poder. Nos períodos democráticos, a convergência para o desenvolvimento de um projeto revolucionário ou mesmo reformista foi subsumida pela administração das emergências e pelas articulações políticas entre distintos extratos de classes sociais, muitas vezes necessárias à governabilidade. Por conta disso, o encaminhamento das questões referentes à alteração do padrão distributivo ficou em segundo plano.
Reacionarismo das elites
As ações de governo terminam se direcionando a tarefas de curto prazo, incapazes de alterar a estrutura de concentração dos agregados de renda e riqueza. Reciprocamente, a concentração do poder econômico e político impõe obstáculos profundos à gestão o país. O reacionarismo das elites que concentram o poder tem inviabilizado a concretização de reformas em um ambiente democrático. Na ausência de revolução e reformas, geralmente obstadas pelo conservadorismo, as políticas públicas ficaram no meio do caminho.
Os gastos públicos nas áreas sociais já são significativos, mas insuficientes para a reparação da herança decorrente do padrão excludente de repartição da renda nacional. Assim, a composição fundiária segue muita concentrada. O sistema tributário permanece regressivo, com a população pobre pagando mais impostos e os ricos quase incólumes. A estrutura social continua inadequada para garantir a universalidade e a qualidade dos equipamentos e serviços para toda a população.
Medidas de caráter neoliberal, fundadas estritamente na restrição dos gastos sociais, são orquestradas pela lógica da racionalização dos recursos. E, em nome da responsabilidade fiscal, encontram-se em curso dois sistemas de sustentação de renda. De um lado, as taxas de juros básicas estabelecem o nível mínimo de garantia de renda para cerca de 20 mil famílias que vive
m da aplicação de suas riquezas no circuito da financeirização. Desde o final da década de 1990, o Brasil vem transferindo anualmente de 5 a 8% de todo o Produto Interno Bruto na forma de sustentação da renda mínima para os ricos. De outro lado, ganhou maior dimensão, desde 2001, a difusão de programas de complementação de renda mínima para os segmentos miseráveis da população. A cada ano, menos de 0,5% do PIB nacional tem sido transferido para mais de 10 milhões de famílias que vivem em condições de extrema pobreza. Percebe-se, assim, que mesmo na esfera das políticas públicas, as resistências ao enfrentamento da desigual repartição da renda se fazem presentes.
*Marcio Pochmann é professor do Instituto de Economia e do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Universidade Estadual de Campinas.