Por que tantos acidentes de trabalho, adoecimentos e mortes em frigoríficos?
Setor tem noventa acidentes de trabalho por dia e até noventa movimentos por minuto
Os acidentes de trabalho, as doenças ocupacionais e as mortes no setor de frigoríficos seriam obra do destino, desígnios do acaso ou de alguma divindade? Por que caminhamos, a passos largos, para a supressão de pausas de recuperação psicofisiológicas, justamente a mais importante medida de proteção à saúde no trabalho no setor?
Os frigoríficos brasileiros são uma das atividades industriais que mais geram acidentes de trabalho e doenças ocupacionais no Brasil. Em alguns estados, são verdadeiro campeões em acidentes de trabalho. Segundo a Análise de Impacto Regulatório da Norma Regulamentadora 36, documento publicado pelo Ministério do Trabalho e Previdência, somente em 2019 ocorreram 23.320 mil acidentes de trabalho, ou seja, aproximadamente noventa acidentes de trabalho ao dia![1] Além dos muitos brasileiros sequelados e incapacitados para o trabalho – o abate de frangos, suínos e bovinos gerou, entre 2016 e 2020, 85.123 acidentes típicos e adoecimentos ocupacionais, com 64 óbitos.
Mesmo após, a aprovação em 2013 da NR 36 – que estabelece os requisitos mínimos para a avaliação, controle e monitoramento dos riscos existentes nas atividades desenvolvidas na indústria de abate e processamento de carnes e derivados destinados ao consumo humano –, trabalhadores em frigoríficos chegam a realizar setenta, oitenta e até noventa movimentos por minuto, em ambientes frios, com baixas taxas de renovação do ar, riscos de amputações, vazamentos de amônia, prorrogações de jornada em atividades insalubres, emprego de força excessiva, deslocamento de cargas, exposição a agentes biológicos e químicos, vibrações, quedas, posturas inadequadas, acidentes com facas, dentre outras ameaças. Poucas atividades humanas concentram tantos fatores de risco quanto os frigoríficos.
No Brasil e no mundo, a pandemia trouxe à tona a precariedade das condições de trabalho no setor. Apesar desse quadro, observa-se a movimentação das empresas, durante a pandemia, no sentido de acentuar a precarização de medidas fundamentais de proteção à saúde e à vida do trabalhador.
Em junho de 2020, indiferente à perplexidade da sociedade brasileira com o elevado número de óbitos pela Covid-19, o setor tentou alterar o art. 253 da CLT, por meio da conversão em Lei da Medida Provisória MP 927/20. A iniciativa suprimia da maioria dos trabalhadores a pausa de recuperação térmica de 20 minutos a cada 1h40 de trabalho, medida que protege os trabalhadores que labutam em ambiente artificialmente frio. Poderiam ser exigidos dos empregados até 10 horas diárias de labor em ambiente com temperaturas de 5 ºC, sem pausa. O setor econômico não logrou convencer o legislador de que a medida não traria prejuízos à saúde humana.
As empresas não desistiram. Em março de 2021, quando já atingíamos 3 mil mortes diárias pela Covid-19, nova tentativa de suprimir as pausas de recuperação térmica (art. 253 da CLT) apresentou-se no PL 2.363/11, com a mesma limitação de pausas a temperaturas inferiores a 4ºC.
Aparentemente, nem a maior pandemia da história do Brasil, que já levou a óbito mais de 615 mil pessoas, impediu as tentativas de eliminar a pausa térmica, vital para os operários do setor.
A mais recente iniciativa de supressão de direitos tem um nome sedutor: “harmonização da NR 36”, que visa, dentre outras medidas, eliminar as pausas psicofisiológicas para as atividades repetitivas. Descanso de 10 minutos a cada 50 minutos de trabalho que, diga-se, não são cumulativas com as pausas do art. 253 da CLT.
A NR 17, norma brasileira de ergonomia, foi revista e as empresas podem optar por conceder pausas, ou alternar as atividades, modificar a forma de execução de tarefas ou adotar outras medidas, recomendadas pelas próprias empresas, em suas análises ergonômicas de trabalho.
O site da consulta pública da NR 36, registra a seguinte proposta, originada de uma das maiores entidades representativas do setor:
Item 36.6.2:
“Previsão na NR 17 (item 17.4.3)
“A eventual necessidade de concessão de pausas psicofisiológicas serão definidas pelo estudo ergonômico regulamentado no subitem 17.4.3.1 da NR-17.
Trata-se de uma obrigação adicional imposta unicamente ao segmento de proteína animal, sem ser uma especificidade do setor.
O cumprimento do tempo de intervalo estabelecido se mostra inexequível”.
Trata-se de propostas e fundamentos que merecem ser refutados, pois põem em xeque a medida mais efetiva de proteção à saúde humana em frigoríficos.
Após oito anos de vigência da NR 36, com a instituição de pausas psicofisiológicas de 10 minutos a cada 50 minutos de trabalho ou de 20 minutos a cada 1h40minutos de trabalho, a proposta sugerida implicaria supressão de pausas psicofisiológicas, relegando a obrigação de proteger a saúde humana nos frigoríficos à mera formalidade de elaboração de uma análise ergonômica.
O conceito de gerenciamento de risco, em detrimento do estabelecimento de regras claras e obrigatórias, foi responsável pelo maior acidente de trabalho da história do Brasil, e está na origem de uma legião de jovens lesionados em frigoríficos e pela produção de alimentos à custo de sofrimento humano, no período anterior a publicação da NR 36, quando vigorava a NR 17. Esta já estabelecia a previsão de pausas de recuperação psicofisiológica, mediante a realização de análise ergonômica do trabalho, não se tendo conhecimento de um único frigorífico que as estivesse instituído de forma voluntária. A depender das análises ergonômicas, nenhum trabalhador em frigorífico terá acesso à mais importante medida de proteção, responsável pela substancial contenção dos adoecimentos no setor.
Os marcos regulatórios trabalhistas asseguram, como medida de adequação do meio ambiente de trabalho, a previsão de pausas de recuperação psicofisiológicas em diversas atividades, dentre as quais as de teleatendimento (anexo II da NR 17), médicos (Lei nº 3.999/61), trabalho rural (NR 31), atividades de mecanografia (art. 72 da CLT), ambientes artificialmente frios no ambiente portuário (NR 29), dentre outras.
A aplicação aos frigoríficos dos mesmos parâmetros regulatórios das atividades de teleatendimento, com a limitação da exposição a 6 horas diárias e 36 horas semanais, com 2 pausas de 10 minutos de recuperação psicofisiológicas e de um intervalo para alimentação de 20 minutos, daria efetividade ao direito fundamental à saúde (art. 6º), a redução dos riscos inerentes ao trabalho (art. 7º), ao meio ambiente de trabalho adequado (arts. 200 e 225 da CF).
Quanto a suposta inexequibilidade das pausas, os últimos oito anos denotam o baixo custo da adoção desta medida, já incorporada no setor, com contenção da prevalência de distúrbios osteomusculares e transtornos mentais nos frigoríficos brasileiros.
Outrossim, há robustos estudos apontando que, dada a sinergia de riscos existentes em frigoríficos, a instituição de pausas é medida fundamental, que deve ser incrementada, para assegurar o direito fundamental à saúde, devendo ser adotadas medidas complementares como redução do ritmo de trabalho, redução do emprego de força e do deslocamento de cargas, melhoria das vestimentas, redução das jornadas, melhorias na qualidade do ar, dentre outras.
A NR 36, que trata da Segurança e Saúde no Trabalho em Empresas de Abate e Processamento de Carnes e Derivados, foi incluída na agenda revisionista, que seria orientada pelas “diretrizes de harmonização, desburocratização e simplificação”.
A NR 36 é atual, sendo oficializada pela Portaria n° 555, de 18 de abril de 2013, depois de uma década de estudos e discussões contando com a participação de órgão técnico do governo (Fundacentro), além do Ministério Público do Trabalho e de representantes de trabalhadores e de empregadores.
Portanto, a Norma dirigida a fomentar condições seguras e saudáveis para trabalhadores num setor complexo, interiorizado e diversificado como é o frigorífico – são cerca de 550 mil trabalhadores ocupados em 4.590 estabelecimentos com ao menos um empregado (RAIS 2019) – é ainda muito recente, tendo sido atualizada em 2016 e 2018.
Nesse período de vigência da NR 36 tivemos praticamente dois anos de pandemia, com restrições às atividades de inspeção estatal. Deve ser considerada, também, a notória restrição à atuação governamental na área, prejudicada pela falta de recursos e dificuldades operacionais em que o próprio ministério deixou de existir por 2 anos e 7 meses.
O ressurgido Ministério do Trabalho e Previdência conta com pouco mais de 50% dos cargos da carreira de Auditor Fiscal do Trabalho na ativa (em julho de 2021 foi solicitada ao Ministério da Economia a autorização para concurso de 1.524 vagas). Sem concurso desde 2013, a defasagem vai sendo acentuada.
Logo, o universo de dados disponíveis é bastante precário e sujeito ao enviesamento ou a conclusões precipitadas. O contexto não é favorável a problematizações, premissas e conclusões acerca da eventual necessidade de alteração da Norma.
Apesar disso, o Ministério do Trabalho e Previdência publicou estudo com Análise de Impacto Regulatório (AIR) específico para a NR 36, que seria “um processo sistemático de análise baseada em evidências”.
Em suas 143 páginas, a AIR informa a pretensão de solucionar o problema regulatório consistente na “falta de adoção de medidas de prevenção de segurança e saúde nas atividades de trabalho do setor frigorífico”. Acrescenta que o problema se inseriria no contexto dos direitos fundamentais e da necessária proteção à saúde e à vida, e que os acidentes e doenças do trabalho representariam consequências da falta de aplicação da NR36.
Ou seja, com um eufemismo – “falta de aplicação da NR36 no setor frigorífico” –, na verdade, expressa o descaso do setor com as normas, a Lei, a Constituição e os Tratados Internacionais e apresenta dados de “desconformidade” encontradas pela Inspeção do Trabalho nas ações fiscais e das análises de acidente graves e fatais, que revelariam indícios da falta de aplicação da norma e da baixa efetividade nas ações de prevenção.
Carece de lógica a outra causa apontada para o problema da baixa efetividade: “falta de alinhamento da NR 36 com as normas de SST [Segurança e Saúde no Trabalho] recentemente alteradas”. A NR36 é muito recente, além disso, os problemas identificados e as evidências resultantes da ação fiscal em anos pretéritos não poderiam ser atribuídas ao alegado descompasso com outras normas, alteradas em 2020/2021.
Ainda assim, a AIR apresenta dados oficiais interessantes para o estudo do descumprimento da legislação e dos consequentes acidentes de trabalho no setor, como os já mencionados 85.123 acidentes típicos e adoecimentos ocupacionais, com 64 óbitos, ocorridos entre 2016 e 2020 foram registrados. O gráfico a seguir, disponível na página 23 do estudo, demonstra que o número de ocorrências é crescente.
Há o reconhecimento oficial da subnotificação dos acidentes de trabalho no setor. Apenas 2% dos acidentes de 2016 a 2019 foram notificados como doenças do trabalho, sendo que no setor frigorífico, de 2016 a 2019, os acidentes reconhecidos, sem emissão de Comunicação de Acidentes de Trabalho/CAT (registro oficial), superam em 300% os regularmente notificados na CAT.
São listadas as partes do corpo mais atingidas nos acidentes típicos: dedo, mão, pé, braço, aparelho respiratório, olho; as principais lesões: corte, laceração, ferida contusa, punctura (ferida aberta); contusão, esmagamento, fratura; e os principais agentes causadores, segundos as CATs relacionadas: ferramenta, máquina; substância química, esforço repetitivo, área ou ambiente de trabalho. A NR 36 estabelece medidas de proteção em relação a todos os agentes listados: deveria ser observada!
O número de ações fiscais realizadas no setor é muito baixo. Foram apenas 1.437 em quatro anos, e 60% delas encontraram irregularidades que justificaram a lavratura de Autos de Infração, além de 64 interdições e um embargo em razão de risco grave e iminente à saúde e à segurança dos trabalhadores. Ainda mais preocupante é a informação de que houve decréscimo nas fiscalizações, mesmo antes da pandemia. De 2018 para 2019 houve redução de 12%. De 2019 para 2020, redução de 25%, com apenas 292 fiscalizações nos 4.590 estabelecimentos com empregados.
Ao ilustrar a importância do setor no Brasil (p.65-67), o estudo do Ministério do Trabalho e Previdência destaca dados das exportações da carne bovina, frangos e suínos, com expressivos montantes, em volume e em dólares, e a relevante participação no PIB. Portanto, refere-se aos grandes frigoríficos instalados no Centro-Oeste e Norte, que concentram 60% da produção bovina; e Sul, que responde por 59% dos frangos e 66% dos suínos. O relatório destaca que grandes frigoríficos, em estabelecimentos com mais de duzentos trabalhadores, empregam mais de 80% do total (451.993 trabalhadores). Os dados deveriam justificar a preocupação do setor e do governo com a percepção dos mercados destinatários, cada vez mais sensíveis às questões ambientais.
Todavia, surpreendentemente, os estados de Minas Gerais e São Paulo receberam em 2019 número muito maior de fiscalizações, 54 e 52, respectivamente. Enquanto isso, estados notoriamente importantes para a exportação, e com altos índices de acidentes, tiveram números irrisórios: Mato Grosso, 5; Goiás, 8; e Tocantins, 3.
A distorção na amostragem com a apuração precipitada de dados de um curto período de observação da NR36, oito anos e uma longa pandemia, num quadro de restrição às operações dadas as limitações do Serviço de inspeção do Trabalho, comprometem as conclusões de um estudo que pretenda efetivamente melhorar o setor.
As NR 36 é um regulamento técnico, de observância obrigatória, construída segundo procedimentos da OIT – sistema tripartite paritário que reúne governo, trabalhadores e empregadores. A experiência da alteração recentemente levada a efeito em outras NRs deve preocupar uma sociedade que pretende ser vista como civilizada.
A proposta preliminar de redação do que seria a nova redação da NR36 – Consulta Pública de 08/10/2021 – encaminha-se no sentido temerário de fixar obrigações de meio, procedimentais, quando o correto seria estabelecer os requisitos mínimos para a avaliação, controle e monitoramento dos riscos existentes nas atividades, responsabilizando os infratores (“desconformes”) que inclusive agem de forma desleal, no mercado interno e externo, na perspectiva concorrencial.
A revisão e a atualização das normas são importantes. Porém, o atingimento do objetivo fundamental de garantir a adoção de medidas de prevenção e de segurança e saúde nas atividades de trabalho do setor frigorífico demanda que a fiscalização seja intensificada, aumentando o atendimento aos requisitos da NR 36 até para que, oportunamente, possam ser realizadas avaliações consistentes.
Nesse contexto, urge que seja elaborado um plano específico de fiscalização com a finalidade de garantir o cumprimento do disposto na NR 36 para a prevenção, controle e correção dos riscos nas atividades desenvolvidas nas empresas de abate e processamento de carnes e derivados. Além de um plano de comunicação sobre a NR 36, o estado de precariedade demanda o empreendimento de uma “Ação Não Normativa”, identificada nas páginas 89/90 do relatório do Ministério do Trabalho e Previdência, de modo a “propiciar um ciclo contínuo de identificação, avaliação e prevenção de riscos no ambiente de trabalho, fortalecendo a gestão integrada em Saúde e Segurança do Trabalho”.
Trata-se de um setor inserido na disputa mundial por mercados, com alto faturamento e elevada capacidade de investimento, que registra altos índices de acidentes de trabalho, com significativos custos para a sociedade e para Previdência. O setor destaca-se entre os maiores litigantes, sobrecarregando a pauta de vários tribunais regionais do trabalho (TRT9, TRT14, TRT 18, TRT23 e TRT24), com altíssimos índices de rotatividade da mão de obra dada à penosidade da atividade. Desse modo, não há razão para que seja excluído das posturas de prevenção e de precaução.
Os acidentes, as doenças e as mortes no setor de frigoríficos seriam obra do destino, desígnios do acaso ou de alguma divindade? Também no setor frigorífico os acidentes de trabalho não ocorrem por obra do acaso: são causados. O problema está na origem, em ações ou omissões. A supressão dos direitos fundamentais não faz parte da solução do problema.
O secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, no encerramento da Cúpula do Meio Ambiente de Glasgow enunciou, em alto e bom tom: basta! Basta de brutalizarmos o meio ambiente. Não poderíamos nos omitir em, mais uma vez, ressaltar que o meio ambiente de trabalho integra o meio ambiente geral.
Proteger a saúde das trabalhadoras e trabalhadores em frigoríficos, assegurando um meio ambiente de trabalho adequado, é proteger o Brasil e o mundo.
Márcia Kamei Lopez Aliaga, Luciano Lima Leivas, Leomar Daroncho, Sandro Eduardo Sardá e Lincoln Roberto Nóbrega Cordeiro são procuradores do trabalho. Márcia é coordenadora e Luciano é vice-coordenador da Coordenadoria Nacional de Defesa do Meio Ambiente do Trabalho do Ministério Público do Trabalho e Leomar, Sandro e Lincoln são coordenadores do Projeto Nacional de Adequação das Condições de Trabalho em Frigoríficos do Ministério Público do Trabalho.
[1] Foi considerado que o ano apresenta 254 dias úteis de trabalho.