Por um momento, a estrada foi das pessoas
“Ver a infinitude das várias camadas de montanhas, apreciar a ilha de Santos com seus canais, tudo isso com o vento no rosto e o barulhinho gostoso do vento nas folhas das árvores, nada de motor, porque naquele momento a estrada era das pessoas, dos ciclistas”. Acompanhe o relato da cicloativista e gestora de projetos sociais Carolina Bernardes sobre a Tradicional Descida a Santos realizada no dia 10 de dezembro de 2017
A estrada é de chão, com alguns sobe-desce na ilha, mas à parte eu ter anemia nem precisei empurrar a magrela. De repente, lá estava eu com minha amiga Aline Os pedalando pela Mata Atlântica, cruzando a represa de balsa, vendo os pássaros, as pessoas pescando e a possibilidade de aproveitar a cidade na sua exuberância natural. Deixando para trás a sensação de São Paulo ser somente uma selva de pedra.
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Como se não bastasse a beleza do lugar, a experiência de sair do nobre centro de São Paulo, passar por bairros periféricos como o Grajaú e chegar na parte rural da cidade, dia 10 era um dia especial, um dia de festa para ciclistas. Não estávamos sós fazendo aquela descida, tinha outras 4 mil pessoas pedalando para Santos, gente de todas as idades, com vários modelos de bike, variadas classes sociais, raças e, com certeza, um preparo físico diverso. Tinha criança, adolescente, adulto, idoso e cadeirante. Gente que os amigos ajudavam a trocar pneu (como eu que no dia não sabia como fazer) e espertos da mecânica como a Aline, voluntária da Oficina Comunitária Mão na Roda.
Saímos às 7h30 do Grajaú e às 13h20 já estávamos na feira de Santos, tomando caldo de cana e comendo pastel. O caminho, que o carro não percebe (a não ser quando tem congestionamento), pode ser apreciado pela bicicleta. Ver a infinitude das várias camadas de montanhas, apreciar a ilha de Santos com seus canais, tudo isso com o vento no rosto e o barulhinho gostoso do vento nas folhas das árvores, nada de motor, porque naquele momento a estrada era das pessoas, dos ciclistas.
Chegamos na praia com aquela felicidade de missão cumprida, aquela vontade infinita de compartilhar com todo mundo a emoção que foi descer pela Anchieta, fugir da tropa de choque, chegar no mar e tomar aquele banho gostoso. Mas, por mais que perguntássemos aos ciclistas que passavam: “Já liberaram a estrada pro pessoal descer?’’, ou procurássemos notícias nos grupos com os amigos, a resposta não mudava, o tráfego continuava bloqueado pela polícia.
Foi assim que ao longo da tarde, em doses homeopáticas, fomos descobrindo que nosso passeio incrível, que os turistas tinham vindo a São Paulo para fazer e que voltarão para fazer de novo, o passeio que todo gringo pagaria caro para fazer, a vivência incrível de descobrir o potencial do próprio corpo, vencer limites, a emoção de ver uma estrada com milhares de ciclistas, tudo isso tinha durado apenas 60 quilômetros e, para a maioria dos ciclistas, em algumas horas o passeio tinha se tornado mais um evento de repressão às liberdades constitucionais de ir e vir.
*Carolina Bernardes é cicloativista e gestora de projetos sociais.
As ilustrações que compõem este material sobre a Tradicional Descida para Santos fazem parte do livro CARtoons: Atropelando a ditadura do automóvel, de Andy Singer (Autonomia Literária & Avocado Edições, 2018). Mais informações em: http://autonomialiteraria.com.br/loja/quadrinhos/cartoons-atropelando-a-ditadura-do-automovel/.