As disputas em torno do tempo e da vida
Observa-se a emergência de discussões e experiências em torno da redução da jornada de trabalho como uma das ações para enfrentar os problemas relacionados à qualidade e à quantidade de empregos, bem como para melhorar a qualidade de vida
O tempo organiza a vida social. Por isso mesmo, ao longo da história, o tempo de trabalho e o de não trabalho estiveram no centro das disputas entre capital e trabalho.[1] Enquanto a classe trabalhadora resiste a dedicar cada vez mais tempo de vida ao trabalho orientado pelos interesses do capital, este tenta se apropriar de cada vez mais tempo dos trabalhadores – seja se opondo à redução da jornada, ampliando sua duração, intensificando-a, controlando-a ou se apropriando dos tempos livres conquistados.
Nesse embate, o trabalho e o tempo a ser dedicado a essa atividade passaram por diversas mudanças, sendo uma das mais importantes a crescente separação entre tempos e espaços de trabalho remunerado e tempos e espaços de não trabalho, atingida com a introdução do trabalho fora do domicílio. Entretanto, sobretudo a partir dos anos 1990, esse movimento se inverteu, havendo uma reaproximação cada vez maior entre os tempos e os espaços de trabalho e de não trabalho.[2]
Apesar de muitas vezes o tempo de trabalho ser analisado apenas com base em sua duração (jornada normal e extraordinária), por ser essa sua dimensão mais visível, faz-se necessário olhar para outras duas dimensões, totalmente imbricadas: sua distribuição (como esse tempo é distribuído/flexibilizado ao longo do dia/semana/mês/ano e da vida ativa) e sua intensidade (pausas, cadências, quantidade de trabalho, prazos, densidade).

Crédito: Ⓒ Tânia Rêgo/Agência Brasil
A hora extra foi uma das estratégias do capital para se apropriar de parte do tempo livre conquistado pelos trabalhadores. Mais recentemente, presenciamos a ampliação disfarçada da duração da jornada, possibilitada pelo uso intensivo das tecnologias digitais de informação e comunicação (TDICs). E, por ser dissimulado, esse aumento do tempo à disposição do empregador, de conexão e mesmo de realização de trabalho extra não é contabilizado nem remunerado, ainda que signifique dispêndio de energia para quem trabalha.
O Inquérito Europeu sobre Condições de Trabalho e Saúde, de 2015 (antes da pandemia), mostra que 45% dos entrevistados trabalharam durante o tempo livre em 2014.[3] No Brasil, de acordo com a Sips/Ipea, de 2012, quase 46% dos respondentes declararam dificuldade para se desligar do trabalho, pois deveriam permanecer em prontidão para realizar atividades extras ou estudar questões relacionadas ao trabalho.[4]
Em relação à dimensão da distribuição do tempo de trabalho, o capital vem ampliando sua flexibilização[5] por meio de novas modalidades de contratação e gestão da jornada (como banco de horas, tempo parcial, horários e contratos atípicos, teletrabalho, trabalho aos domingos, falsa Pessoa Jurídica, trabalho intermitente e plataformizado), as quais também contribuem para mascarar a ampliação da jornada e sua intensidade.
A demanda pela ampliação da flexibilização é explicitada desde os anos de 1990, como relatam os representantes de diversos setores econômicos no Brasil: “A jornada dos bancos deve acompanhar a dos demais segmentos, que trabalham sábado, domingo, até dez horas da noite, meia-noite” (setor bancário); “Buscar alternativas que nos permitam trabalhar 24 horas por dia, 7 dias por semana” (setor químico); “4 turnos de 6 horas […], de forma que você terá a fábrica trabalhando 24 horas por dia” (setor automotivo).[6]
O Inquérito Europeu, citado anteriormente, mostra o aumento constante de pessoas trabalhando em horários atípicos desde a primeira pesquisa realizada em 1995: como trabalho noturno, por turnos ou no fim de semana. Seus resultados também enfatizam as consequências negativas dessa despadronização do tempo de trabalho, que acaba por desequilibrar os tempos sociais (a vida) dos indivíduos.[7]
Soma-se a isso o fato de que, com a externalização mundial da produção (viabilizada pelas novas tecnologias digitais), em conjunto com o crescente rompimento da relação salarial (facilitada pela ausência de legislação), as empresas jogam para quem trabalha a falsa escolha de fazer ou não uma longa jornada, uma pausa, tirar férias, parar para se alimentar e/ou trabalhar em ritmo acelerado.
Tais transformações resultam em uma reaproximação entre os tempos e os espaços de trabalho remunerado e de não trabalho, de forma que a definição e a fronteira onde cada um começa e termina estão cada vez mais fluidas, imbricadas e mascaradas. Esse movimento, assim como foi o de separação desses tempos e espaços, tem sido definido com base nos interesses do capital e em detrimento do bem-estar da classe trabalhadora.
No que se refere à terceira dimensão, observa-se um forte processo de intensificação do tempo de trabalho – com redução de pausas, polivalência, prazos reduzidos, cadências elevadas e, sobretudo, a gestão por metas. Enquanto para o capital essa intensificação possibilita a máxima utilização do tempo de trabalho, para os trabalhadores o resultado tem sido a crescente sobrecarga e o adoecimento.[8]
Tais iniciativas são continuadas pelas empresas-plataforma (também chamadas “aplicativos”), apesar da aparência de inovação. Por exemplo, as metas adotadas no toyotismo ganham roupagem de jogo lúdico por meio da gamificação, que incentiva os trabalhadores a “ultrapassar seus limites”; e o pagamento por tarefas volta à cena com ares de “liberdade” e autonomia. Juntando-se a isso a ausência total de direitos, temos a superexploração da classe trabalhadora.
Vale ressaltar que essas transformações ocorrem em um contexto em que estruturalmente as tecnologias possibilitam a produção de cada vez mais mercadorias/serviços com menos mão de obra e em uma conjuntura de crescente insegurança em relação ao emprego e ataque ao movimento sindical, como vimos na contrarreforma de 2017, realizada por Michel Temer.
No Brasil, a última redução da jornada ocorreu em 1988, quando, no processo Constituinte, a classe trabalhadora, que reivindicava a passagem de 48 para 40 horas, conquistou 44 horas semanais sem redução de salários. Os argumentos utilizados pelos empregadores contra as 40 horas (e mesmo as 44 horas) foram os mesmos usados ao longo da história contra qualquer direito para a classe trabalhadora (como direito de férias, descanso semanal remunerado, licença-saúde, licença-maternidade, reajustes do salário mínimo): enfatizavam que a redução geraria crise, reduziria a produtividade e resultaria em desemprego.
No início dos anos 2000, as centrais sindicais lançaram a Campanha Nacional pela Redução da Jornada de Trabalho sem Redução de Salário, incluindo diversas ações, como mobilizações, produções de materiais[9] e lançamento de um abaixo-assinado[10] para pressionar os parlamentares a encaminhar as Propostas de Emenda à Constituição que estavam paradas – a PEC n. 393/2001, propondo a redução da jornada de trabalho e o aumento do valor da hora extra, do deputado Inácio Arruda (PCdoB-CE), e a PEC n. 75/2003, do senador Paulo Paim (PT-RS), prevendo a redução da jornada semanal para 40 horas e, posteriormente, uma diminuição gradual de 1 hora até chegar às 36 horas.
Apesar de categorias profissionais terem voltado a colocar a redução da jornada em suas pautas de reivindicação, e algumas a terem conquistado, a campanha não teve êxito, dada a resistência patronal e a falta de apoio governamental. Isso significa que logo se completam quarenta anos sem redução da jornada no Brasil.
Tantos anos sem redução da jornada também impactam negativamente a distribuição de renda para a classe trabalhadora. Mesmo no caso da Europa, conforme o Dieese,[11] houve redução da incorporação da riqueza produzida socialmente, sobretudo a partir dos anos 1990, pois a relação entre produtividade, aumento salarial e redução da jornada passou por forte retrocesso.
Mundialmente, sobretudo após a pandemia de Covid-19, observa-se a emergência de discussões e experiências em torno da redução da jornada de trabalho como uma das ações para enfrentar os problemas relacionados à qualidade e à quantidade de empregos, bem como para melhorar a qualidade de vida. Movimentos partem de governos (a exemplo de Finlândia, Bélgica, Escócia, Japão, Grã-Bretanha e Coreia do Sul), de sindicatos (como na Alemanha, com o IG Metal e o Comitê Executivo da Confederação Europeia de Sindicatos – CES) e mesmo de empresas, como o “4dayworkweek”, que se iniciou na Nova Zelândia e rapidamente teve adesão de empresas em diversos países, como o Brasil.
No Brasil, o debate sobre tempo de trabalho retorna à cena política por meio do Movimento VAT (Vida Além do Trabalho), contra a escala 6×1 (trabalho durante seis dias e apenas um de descanso).[12] A líder do Psol na Câmara, Érika Hilton, apresentou a proposição do fim da escala 6×1 e da adoção da 4×3 (quatro dias de trabalho e três de descanso).
Há outras propostas relativas à redução da jornada de trabalho em tramitação no Senado e na Câmara. No primeiro caso, há a PEC (n. 148/2015), do senador Paulo Paim, prevendo a redução da jornada semanal sem redução de salários para 40 horas e, posteriormente, uma diminuição gradual até chegar às 36 horas. Na Câmara temos a PEC n. 221/2019, do deputado Reginaldo Lopes (PT-MG), propondo a redução para 36 horas a serem atingidas ao longo de dez anos.
Enquanto o posicionamento da grande maioria dos empresários se mantém – melhorar a qualidade do trabalho e da vida dos trabalhadores traz prejuízos à economia –, do ponto de vista da sociedade os argumentos a favor da redução da jornada são amplos. Como exemplo, vale retomar algumas justificativas utilizadas na Campanha Nacional pela Redução da Jornada sem Redução de Salário,[13] que continuam atuais.
- No Brasil, a jornada normal e a jornada total (soma da jornada normal mais a hora extra) são muito extensas, sobretudo considerando a ausência de limite semanal/mensal para as horas extras, possibilitando que elas possam somar mais de 700 horas por ano; o ritmo do trabalho é intenso, dadas as inovações colocadas em prática pelas empresas (polivalência, just in time, metas, redução das pausas etc.), e houve aumento da flexibilização da jornada (hora extra, turnos, trabalho noturno, tempo parcial, banco de horas, trabalho aos domingos), além do trabalho intermitente e plataformizado. Jornadas extensas, intensas e imprevisíveis contribuem para o adoecimento (causando estresse, depressão, hipertensão, distúrbios no sono, lesão por esforços repetitivos).[14]
- O percentual dos salários nos custos de produção é baixo – por exemplo, em 1999, a participação dos salários no custo da indústria de transformação era de 22%, em média, de forma que uma redução de 44 para 40 horas semanais (9,09%) representaria um aumento no custo total de produção de apenas 1,99%. O custo da mão de obra também é baixo, e a redução da jornada não resultaria em prejuízo à competitividade, sobretudo porque o diferencial desta não está no custo da mão de obra, mas nas vantagens sistêmicas que o país oferece, como investimento em infraestrutura, educação e pesquisa, qualificação, um sistema financeiro que financie o capital de longo prazo e taxas de juros exequíveis.
- A redução da jornada é uma política de geração de emprego com baixo risco monetário e contribui para a distribuição da riqueza.
O processo de inovação e os ganhos de produtividade passados, presentes e futuros mostram que a redução da jornada deve ser permanente e contínua, criando um círculo virtuoso em que a melhor distribuição dos ganhos de produtividade contribui para o crescimento econômico, que, por sua vez, leva à manutenção do aumento da produtividade.
Pensando nas ações futuras, vale frisar que a forma como a redução da jornada se realiza é extremamente importante para que ela resulte, de fato, em distribuição de riqueza, novos empregos, aumento do tempo livre, melhora na qualidade do trabalho e, evidentemente, da vida.
Na conclusão do livro O futuro é a redução da jornada de trabalho,[15] os autores, em diálogo com os argumentos anteriores e com as experiências internacionais, ressaltam que a redução da jornada de trabalho:
– para recuperar a parte do “trabalho” na distribuição da riqueza, não pode ser acompanhada de redução da remuneração;
– deve ser realizada de forma substantiva (e não pequena), para evitar que seja compensada por ampliação da intensidade, também sendo necessário o controle coletivo contra a intensificação do tempo de trabalho atual, sobretudo no que se refere à gestão por metas e objetivos;
– venha junto com a limitação da hora extra mensal/anual e a discussão coletiva sobre o direito à desconexão do trabalho no tempo de não trabalho;
– inclua no tempo de trabalho o tempo in itinere, de troca de roupa, preparo para o trabalho, assim como o de qualificação;
– quando incluir subsídio, desoneração ou financiamento público ao setor privado, que estes sejam negociados com os sindicatos e vinculados a um plano de melhoria na qualidade e quantidade de emprego;
– inclua condições para que as micro e pequenas empresas possam adotar a redução, por meio de discussão com a sociedade, empresários e o movimento sindical;
– preveja que as formas de redução (como semana de quatro dias, redução da jornada diária, aos sábados) sejam negociadas entre trabalhadores e seus representantes e as empresas;
– venha acompanhada de medidas que melhorem a segurança e a saúde no trabalho, garantindo um ambiente que não seja adoecedor nem promotor de acidentes.
As experiências históricas e atuais ainda evidenciam que, para o alcance dos benefícios por parte da classe trabalhadora e de toda a sociedade, a redução da jornada sem redução de salários precisa estar inserida em um amplo projeto de crescimento econômico socialmente inclusivo, no qual os trabalhadores e seus representantes tenham participação ativa no processo, com direitos assegurados e acesso à informação.
*Ana Claudia Moreira Cardoso é doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP) e pela Universidade Paris 8. Fez pós-doutorado na Universidade de Brasília (UnB) e no Centre de Recherches Sociologiques e Politiques de Paris. Foi professora na Faculdade de Ciências do Trabalho do Dieese, pesquisadora no Instituto Sindical Europeu (Etui) e atualmente é consultora e formadora.
[1] Karl Marx, O capital, São Paulo, Bertand Brasil, 1985.
[2] Essa discussão pode ser encontrada nas seguintes obras: Michel Freyssenet, “Quelques pistes nouvelles de conceptualisation du travail” [Algumas novas abordagens para a conceituação do trabalho], Sociologie du Travail, n.94, p.105-122, 1994; e Philippe Zarifian, Temps et modernité: le temps comme enjeu du monde moderne [Tempo e modernidade: o tempo como desafio do mundo moderno], Paris, L’Harmattan, 2001.
[3] Eurofound, “Primeiras conclusões: sexto inquérito europeu sobre as condições de trabalho”, Luxemburgo, 2015.
[4] Ipea, “Trabalho e tempo livre”, Sistema de Indicadores de Percepção Social (Sips), 21 mar. 2012.
[5] Sadi Dal Rosso, O ardil da flexibilidade: os trabalhadores e a teoria do valor, São Paulo, Boitempo, 2017.
[6] Ana Claudia Moreira Cardoso, Tempos de trabalho, tempos de não trabalho: disputas em torno da jornada do trabalhador, São Paulo, Annablume, 2009.
[7] Eurofound, op. cit.
[8] Para o aprofundamento da discussão sobre a relação entre tempo de trabalho e adoecimento, ver Ana Claudia Moreira Cardoso e Júlio César Neffa, “Mudanças nos tempos de trabalho como determinantes do processo saúde-doença”. In: Sadi Dal Rosso et al., O futuro é a redução da jornada de trabalho, Porto Alegre, CirKula, 2022.
[9] Além das notas técnicas foram produzidos uma cartilha (https://www.dieese.org.br/cartilha/2004/reduzirJornadaGerarEmprego.html) e um gibi (https://www.dieese.org.br/cartilha/2009/rumoReducaoJornadaTrabalho.html).
[10] Agência Câmara, “Redução da jornada tem 1,5 milhão de assinaturas”, 3 jun. 2008.
[11] Dieese, “Redução da jornada de trabalho no Brasil”, Nota técnica n.16, 2006.
[12] Ver a petição pública “Por um Brasil que vai além do trabalho”, do movimento VAT, criado por Ricardo Azevedo.
[13] Os argumentos estão contidos na cartilha e no gibi citados na nota 9 e em diversas notas técnicas produzidas pelo Dieese, a exemplo da Nota n.57, de 2007, “Reduzir a jornada de trabalho é gerar empregos de qualidade”.
[14] Ana Claudia Moreira Cardoso e Júlio César Neffa, op. cit.
[15] Sadi Dal Rosso et al., O futuro é a redução da jornada de trabalho.