Bombeiros piromaníacos da ordem internacional
Ao transgredirem as resoluções da ONU sobre Jerusalém, os Estados Unidos ilustram um dos principais perigos da geopolítica atual: o enfraquecimento dos fundamentos da legalidade internacional, nascida em 1945. Com o fim da Guerra Fria, surgiu a oportunidade de reafirmar uma regra aceita por todos, mas os ocidentais privilegiaram seus próprios interesses
Existe uma ladainha da mídia que acostuma as pessoas a determinada visão da sociedade internacional que parece resumir-se a um caos crescente (microconflitos, ondas migratórias etc.), marcado por manifestações de violência cega (atentados, massacres de civis), no qual se afirmam potências cínicas, como a Rússia, a Turquia e até mesmo os Estados Unidos de Donald Trump. Esse caos, muito evidente nos dias atuais, já estava latente desde o início dos anos 1990. A queda do Muro de Berlim gerou a crença no início de uma era totalmente nova, uma “globalização feliz” sob a égide protetora dos Estados Unidos, ilustrada pela Guerra do Golfo em 1990. Embora essa intervenção ainda estivesse circunscrita às balizas definidas pela ONU, a década de 1990 revelou a tentativa, por parte do poder norte-americano, de autoritariamente forjar novas regras. O laboratório disso foi a Guerra do Kosovo, com seus promotores tentando formalizar um direito de ingerência nos assuntos internos dos Estados. Essa visão, temporariamente tornada possível pelo apagamento da Rússia e pela reserva chinesa, teve seu apogeu com a intervenção na Líbia, em 2011, revelando perigosas contradições.
Desde 1945, a ordem internacional é abalada de tempos em tempos por crises e guerras. Porém, seus fundamentos oficiais continuavam sendo os princípios humanistas e sociais oriundos das grandes conferências do pós-guerra – a da Filadélfia, sobre os direitos sociais; e a de São Francisco, que criou a ONU, sobre a proibição da guerra. Mas a instabilidade que se desenvolveu diante de nossos olhos é global, tanto ideológica como econômica. Ainda que se tenha conseguido apresentar os crashs financeiros de 1998 e de 2008 como acidentes de percurso, a eleição de Trump ilustra uma contestação paradoxal, porém emblemática, do dogma do livre-comércio desde seu epicentro, ao mesmo tempo que conclui o enterro dos direitos sociais. A impressão de caos provém ainda da recomposição de forças (novas potências se afirmam, ao passo que outras patinam) e da mudança das regras do próprio jogo internacional, iniciada na década de 1990 e hoje criticada.
Amplas margens de interpretação
De 1945 até os anos 1990, as regras do jogo eram claras, inscritas em pedra na Carta das Nações Unidas. Naturalmente, os países mais fortes, usando seu direito de veto ou o de uma potência protetora, sempre contornavam essas regras a fim de intervir militarmente em suas respectivas zonas de influência: a Rússia na Europa oriental, os Estados Unidos na América Central, Paris na África, Israel em sua vizinhança. No entanto, e este é o ponto-chave, tais potências não tentavam abertamente modificar as regras da Carta nem inventar outras. Elas tinham, inclusive, um cuidado especial em manter as aparências e não criar um enfrentamento aberto. A Carta das Nações Unidas não apenas servia de ponto de referência, mas também atuava como uma espécie de contrato de confiança internacional. As críticas mais fortes a ela (como o general De Gaulle denunciando o “troço” que contestava o neocolonialismo francês na África, ou Ronald Reagan praguejando contra uma burocracia anti-Estados Unidos) foram sempre pontuais, sem resultar na demolição de um edifício que – por meio do direito de veto – validava o status de grande potência. Assim, havia regras oficiais regendo o uso da força, mesmo sob o risco de permitir interpretações extensivas, por exemplo, ao invocar-se uma legítima defesa “preventiva”, contrária à própria noção de legítima defesa, necessariamente reativa. Aliás, nenhum organismo da ONU validou esse desvio semântico, utilizado sobretudo por Israel para justificar o bombardeio de uma usina nuclear iraquiana em 1980.
A partir dos anos 1990, as coisas mudaram: vemos a tentativa de modificar as regras do jogo internacional, especialmente aquelas relacionadas ao direito da guerra. Imposta pelo Ocidente, sob a presidência de Bill Clinton (1993-2001), essa mudança é uma das causas da profunda instabilidade hoje verificada nas relações internacionais. Embora inicialmente tenha encontrado pouca oposição, ela parece ter chegado ao limite com a intervenção na Líbia, em 2011, e depois com o conflito na Síria – sem, contudo, desenhar-se nem um retorno à ordem de 1945 nem a instalação de uma nova ordem claramente definida.
Em um primeiro momento, o colapso da União Soviética permitiu um exercício consensual do direito da guerra, pondo fim aos domínios da Guerra Fria. Assim, o Conselho de Segurança da ONU autorizou por unanimidade, em nome da segurança coletiva, a intervenção militar de 35 países contra o Iraque (2 de agosto de 1990-28 de fevereiro de 1991). Era quase um estudo de caso para um estudante de Direito Internacional, com a anexação de um país inteiro por outro – no caso, o Kuwait pelo Iraque – constituindo uma violação flagrante das regras mais solidamente ancoradas desde a Liga das Nações, que serviram de base para a Carta das Nações Unidas. Falava-se, então, com um entusiasmo inequívoco, em uma “nova ordem internacional” e no advento de uma verdadeira “comunidade internacional”, que finalmente faria reinar o direito contra a força, o bem contra o mal.
Emblemática do universo político dos anos 1990, a intervenção da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) no Kosovo em 1999 marca uma fratura, quase não percebida como tal,1 das relações internacionais – uma fratura ainda aberta. A propaganda de guerra, transmitida pela mídia, que acompanhou o bombardeio de Belgrado, sem mandato das Nações Unidas e violando o direito da guerra,2 marca o surgimento de um consenso ideológico destinado a minar o que fora penosamente adquirido em 1945. O orquestrado fracasso da Conferência de Rambouillet – durante a qual a diplomacia norte-americana literalmente manipulou, com o apoio alemão, as chancelarias europeias (em primeiro lugar a da França, aliada histórica da Iugoslávia) – significou uma escolha consciente pela alternativa militar, quando as vias pacíficas ainda poderiam ser utilizadas para impedir massacres que infelizmente eram muito reais.3
Do Kosovo à Líbia
A reunião de Rambouillet falhou em um, e somente um, ponto: o presidente Slobodan Milosevic havia aceitado o envio para a Sérvia de observadores internacionais da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) ou da Comunidade Europeia, mas recusou-se a admitir os enviados da Otan, de cuja imparcialidade ele tinha boas razões para duvidar. Com esse pretexto e sem mandato do Conselho de Segurança da ONU, mas com a participação da França e do Reino Unido, os Estados Unidos lançaram uma vasta operação de bombardeio aéreo, em março de 1999, que culminou na rendição iugoslava três meses depois. Esse “uso da força” em condições não previstas pela Carta das Nações Unidas foi replicado na agressão dos Estados Unidos contra o Iraque em 2003, dessa vez sem o apoio da França.4
A intervenção da Otan no Kosovo parecia ainda menos justificável por resultar em uma contralimpeza étnica contra os sérvios do Kosovo e, de maneira geral, porque a explosão da Iugoslávia em 1991 levou, com o apoio da “comunidade internacional”, principalmente da União Europeia, à constituição de microestados sobre bases nacionalistas ou mafiosas, como o atual Kosovo. Enquanto os dirigentes sérvios foram, com razão, julgados na década de 2010 pelo Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia por violação dos direitos fundamentais, os crimes de guerra da Otan ficaram impunes. O bombardeio intencional de alvos civis, inclusive o da Rádio Televisão da Sérvia, não foi punido. Essa conduta de “dois pesos e duas medidas” recai mais fortemente sobre as relações internacionais pelo fato de que a intervenção tinha o objetivo de validar, com base em informações falsas (como o chamado “Plano Ferradura” de Milosevic, inventado pela Alemanha), o questionamento de um princípio fundador da Carta das Nações Unidas, a inviolabilidade das fronteiras e o desmantelamento de um Estado-membro da ONU (a República Federativa da Iugoslávia). A atual diplomacia russa fica, assim, muito à vontade para destacar, sempre que pode, a duplicidade dos ocidentais, que negam a Moscou o direito de fazer na Abcázia, na Ossétia e na Crimeia a mesma coisa que permitiram que outrora fosse feita no Kosovo. Naturalmente, os ocidentais refutam esse paralelo.
Em 1945, as grandes potências estavam de acordo sobre as regras do jogo, especialmente quanto ao principal fator de problemas na cena internacional: o uso da guerra e, de maneira mais geral, da força. Apesar das tensões da Guerra Fria, o sistema das Nações Unidas continuava oficialmente assentado no banimento da guerra e na promulgação de princípios destinados a limitar suas causas. Essa ordem também correspondia aos interesses dos países pequenos, na medida em que proibia a ingerência de que os Estados, sobretudo os colonizadores, usavam e abusavam para impor seus pontos de vista a populações mais fracas. Ao limitar as condições do uso da força às “ameaças” à paz, a Carta das Nações Unidas priva as potências de argumentos mais subjetivos. No século XIX, os europeus alegavam, por exemplo, intervir no Império Otomano com o pretexto de proteger as minorias cristãs perseguidas (“intervenções humanitárias”).5
A década de 1990 abriu o caminho para uma mudança no equilíbrio político e jurídico ao ampliar as circunstâncias legítimas de entrada em guerra (jus ad bellum). Essa época foi marcada pela disseminação de ideias como o dever ou o direito de ingerência, caros ao cientista político italiano Mario Bettati e ao fundador da entidade Médicos Sem Fronteiras (MSF), Bernard Kouchner.6 O poder de Estado e seus líderes deveriam submeter-se aos valores da ordem internacional. Produto desse universo ideológico, “a Guerra do Kosovo é lugar de uma prática de ingerência, sem dúvida nenhuma”, destaca o ex-presidente do MSF Rony Brauman, que aprovou a intervenção na época. “Foi a manifestação de um direito de ingerência armada? Podemos afirmar isso, e é isso que fazem os defensores do ‘direito’ de ingerência que o veem reaparecer triunfalmente na ONU”.7
Em 2005, uma resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas reconheceu um novo princípio não previsto na Carta de 1946: a “responsabilidade de proteger”. Isso significa que um governo, mesmo sendo formalmente soberano, tem obrigações para com seus cidadãos, obrigações que a “comunidade internacional” pode definir e das quais pode lembrá-lo manu militari. Não é por acaso que esse princípio foi criado pela comissão de “personalidades de alto nível” que redigiu suas conclusões no momento da Guerra do Kosovo.8 Essa intervenção militar “certamente não era estranha a suas reflexões e propostas finais”, observa Brauman. A intervenção na Líbia em 2011, única ação militar oficialmente decidida pelo Conselho de Segurança com base na “responsabilidade de proteger”, é, portanto, filha daquela feita do Kosovo.
A operação da Otan no Kosovo foi possível graças à ausência transitória de contrapoderes no cenário internacional. No universo da ONU, a década de 1990 é conhecida como “a década das sanções”: dominado pelo “P3” (os três membros permanentes ocidentais do Conselho de Segurança: Estados Unidos, Reino Unido e França), o Conselho de Segurança adotou, com resultados às vezes questionáveis, uma série de medidas coercivas contra os Estados que “ameaçam a paz ou a segurança internacional”. Por exemplo, a proibição de todo o comércio internacional imposta ao Iraque durante a Primeira Guerra do Golfo, em 1990, teve consequências não justificadas para a população civil (alimentação, saúde). Aprendendo com a experiência e com as críticas, o Conselho de Segurança passou a especificar o alcance das sanções e sua duração, e a prever isenções por motivos humanitários.9 Mas a tendência é alargar as missões do órgão, da assistência técnica à adoção de sanções pessoais, fora dos quadros legais previstos. “Essas interpretações extensivas, até artificiais, das resoluções do Conselho”, observam os juristas Anaïs Schill e Mouloud Boumghar a respeito do Kosovo e do Iraque, “refletem […] situações de contorno do sistema de segurança coletiva que enfraquecem a autoridade e a credibilidade desse órgão e, em última análise, ao multiplicarem as exceções à proibição do uso da força, levam ao questionamento de todo o edifício criado pela Carta [das Nações Unidas]”.10
Um retorno fracassado
Essas inovações institucionais e políticas destilam a ideia de que a soberania é um princípio ultrapassado tanto do ponto de vista geopolítico quanto econômico. A década de 1990 viu, assim, o apogeu de uma ideologia globalista baseada no triunfo da democracia liberal de mercado, que deveria reger todo o planeta sob a direção norte-americana. A União Europeia seria um dos postos avançados de tal regime, encarregando-se de estender seus benefícios para toda a Europa central e oriental, pela mecânica da ampliação do bloco, bem como à África, por meio dos Acordos de Parceria Econômica.11 A Organização Mundial do Comércio foi criada em 1995 com o objetivo de estender o Acordo Geral de Tarifas e Comércio de Mercadorias aos serviços e à propriedade intelectual. Os países industrializados assentaram a autoridade de seu diretório neoliberal cooptando países do Sul, reduzidos ao papel dos espectadores (G5, G6, G7, G20).
De aparência estável, essa nova ordem carrega as grandes tempestades atuais. Celebrada pela mídia e pelos pensadores dominantes, o questionamento do poder estatal westfaliano12 poupa as grandes potências, como os Estados Unidos e a França na África, mas também países como Israel, que violam abertamente a lei sem ser incomodados. A proclamação de uma “comunidade internacional” pouco esconde o fato de que a virtude é imposta a alguns, enquanto o cinismo da realpolitik continua sendo prerrogativa de outros. Aliás, pouca atenção se dá à natureza e à legitimidade daqueles que definem os valores em questão e seus contornos precisos: a maioria, ocidentais. Impulsionada pela necessária luta contra a impunidade, a proliferação de tribunais penais internacionais também coincide com as fronteiras difusas do intervencionismo de geometria variável da “comunidade internacional”: Iugoslávia, Serra Leoa, Ruanda e Camboja. Mas é especialmente a adoção do estatuto do Tribunal Penal Internacional (TPI), em Roma, em 1998, que deve consagrar o triunfo dos valores comuns de justiça e reparação, com o objetivo de curar as feridas de populações martirizadas. Daí a possibilidade, confiada a tais cortes, de julgar inclusive dirigentes em exercício, derrotando assim o princípio da imunidade diplomática. Mas, quando se faz isso, postula-se a visão de uma justiça apartada tanto das realidades locais como das relações de força internacionais.
É desse momento ideológico “clintoniano” que a sociedade internacional está, diante de nossos olhos, dolorosamente saindo. Em primeiro lugar, os países ditos emergentes reivindicam seu espaço no grande banquete da ordem mundial: por que os donos da caneta das resoluções da ONU deveriam ser sempre os mesmos? É fato que 70% das resoluções do Conselho são redigidas pelo “P3”. Bom menino, o Conselho está abrindo seus corredores para a “sociedade civil” e seus grupos de trabalho para mais Estados, a fim de ampliar o consenso presidindo a adoção de seus textos sem que as relações de forças sejam profundamente modificadas. Além disso, a Rússia está fazendo um ruidoso retorno ao cenário internacional. A intervenção russa na Ossétia e na Abcázia em 2008 revela sua determinação em afirmar-se pela oposição a um adversário simbolicamente fácil de criticar: a Geórgia, que quer de todo modo juntar-se a uma hesitante Otan.
Em terceiro lugar – e este é, sem dúvida, o ponto de inflexão rumo à saída do universo ideológico dos anos 1990 e 2000 –, a intervenção franco-britânica na Líbia em 2011 minou de maneira profunda o consenso do “P5” (os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança). A abstenção construtiva da Rússia e da China permitiu adotar uma resolução do Conselho de Segurança que autoriza os Estados-membros a tomar “todas as medidas necessárias” para “proteger as populações e zonas civis”, incluindo estabelecer uma “zona de exclusão aérea”, “excluindo-se a instalação de uma força de ocupação estrangeira”. Seja qual for o interesse do princípio da “responsabilidade de proteger”, sua aplicação constitui uma importante revisão da Carta das Nações Unidas, com todas as incertezas que isso implica. Esse texto, a fortiori em seus elementos estruturais, não pode ser revisto sem respeitar os procedimentos previstos, sob pena de suscitar uma crise de confiança entre os Estados, inclusive os mais poderosos. Na prática, a Otan ultrapassou o mandato conferido pelo Conselho de Segurança. A intervenção também resultou na queda de Muamar Kadafi, violando o direito internacional que proíbe a derrubada de um governo como propósito de guerra.
O curso dos acontecimentos chocou a Rússia e a China, que se consideraram ludibriadas e não cairiam novamente nessa situação. As discussões no Conselho de Segurança estão marcadas por esse evento, com os dois países se exibindo – com razão – no papel de lembrar os ocidentais das regras da Carta das Nações Unidas, sobretudo o princípio da não ingerência nos assuntos internos do Estados, embora eles mesmos façam pouco caso dos direitos fundamentais. Aderindo com estardalhaço ao acordo das Nações Unidas sobre o clima, a China coloca-se em um lugar proeminente no cenário internacional, desviando oportunamente a atenção, por exemplo, de sua recusa em aplicar a decisão do Tribunal Permanente de Arbitragem sobre a disputa com as Filipinas a respeito do Mar da China. O fim do mundo unipolar, tão cômodo para os ocidentais, revela-se na Síria, onde França e Estados Unidos, que bancavam os valentões contra o regime criminoso de Bashar al-Assad em 2012, viram a paz se desenhar sem eles.
Enquanto a Carta das Nações Unidas tenta limitar e até proibir a guerra, as intervenções militares que deformam ou violam o direito internacional (“guerras humanitárias”) são muitas vezes criticadas, seja por seu caráter arbitrário, seja porque parecem um elefante numa loja de cristais, jogando mais lenha na fogueira de uma ordem instável.
Embora o Conselho de Segurança ainda ocupe um lugar central na gestão da segurança coletiva, como confirma sua agenda bastante cheia, estabeleceu-se uma perigosa imprecisão quanto às regras do jogo internacional. Para além do teatro hipócrita e desestabilizador dos atores envolvidos, especialmente o “P5”, a sociedade internacional confronta-se com novas ameaças e problemáticas, que a Carta de 1945 não havia previsto e que chamam os senhores do jogo à reflexão e à responsabilidade. Muitos conflitos não cabem nos casos previstos. Eles não são internacionais nem internos: são “internos internacionalizados”, ou seja, disputas locais que degeneram, envolvendo uma multidão de atores – às vezes Estados, mas também grupos transfronteiriços, mafiosos e terroristas. A proteção dos civis, que muitas vezes pagam um preço alto em relação às unidades de combate, tornou-se uma grande preocupação, que justifica, por exemplo, a extensão do mandato de algumas operações de manutenção da paz a medidas “ofensivas” em um perímetro limitado. Mas os guardiões da ordem internacional muitas vezes acabam desconcertados por essas crises de um novo tipo. “Ficamos sem saber se devemos garantir ajuda humanitária, conseguir um cessar-fogo ou encontrar uma solução política”, constata o professor Alvaro de Soto. “Essa abordagem não pode ter outro resultado além de aumentar as expectativas e, portanto, diante do fracasso esperado, desvalorizar a moeda da negociação.”13
Visão estratégica necessária
Se a ONU está na berlinda, a União Europeia – cuja arquitetura moderna foi projetada na década de 1990 (Tratado de Maastricht em 1992) – encontra-se duravelmente fragilizada: um exemplo disso é a fratura entre sua parte oriental e os países fundadores sobre a questão da democracia; outro é a saída do Reino Unido, talvez antecipando o apagamento de uma União Europeia inadequada à nova geopolítica. Mais profundamente, é o status internacional do Estado que se coloca: a União Europeia continua professando a superação da soberania nacional, quando potências estabelecidas ou emergentes carregam a bandeira oposta (Estados Unidos, Rússia, Irã, Turquia). Quando recebeu Recep Tayyip Erdogan em Paris, no dia 5 de janeiro de 2018, o presidente francês, Emmanuel Macron, lembrou que a integridade e a estabilidade dos Estados, sejam eles amigos dos direitos humanos ou não, eram elementos fundamentais da ordem internacional. Isso anuncia o fechamento dos parênteses abertos na década de 1990? É a responsabilidade de proteger sendo enterrada pelo país que tanto agiu para que ela fosse posta em prática na Líbia, em 2011? Um sinal de retorno ao espírito da Carta das Nações Unidas?
De qualquer modo, falta à sociedade internacional a visão estratégica de seu próprio futuro. Como resume o ex-ministro francês dos Assuntos Estrangeiros Hubert Védrine: “O mundo está em uma situação comparável à do século XIX, sem o Congresso de Viena” – ou seja, sem o momento em que os atores se reúnem para estabelecer seus papéis. Após o fim da União Soviética, o secretário-geral da ONU Boutros Boutros-Ghali (1992-1996) pediu em vão uma grande conferência internacional para reconstruir um consenso sobre bases claramente discutidas e consentidas por todos os atores, condição de sua confiança mútua. Hoje essa necessidade se faz sentir cruelmente, à medida que os focos de tensão se multiplicam. A questão do direito de guerra, do uso da força e da proteção dos direitos humanos, cada vez mais desfigurada, inclusive pelos europeus em seu tratamento dos refugiados, seria um dos pontos essenciais.
Em seu primeiro discurso na Assembleia Geral da ONU, em setembro de 2017, Macron elogiou o multilateralismo, diante de seu belicista colega norte-americano. Ele está pronto para arcar com as consequências disso, inclusive na África? “Se a reforma [da ONU] não estiver ligada a uma visão estratégica do futuro do multilateralismo, há um grande risco de que se perca uma transformação profunda e claramente desejada”, adverte Michèle Griffin, diretora de planejamento de políticas junto ao secretário-geral da ONU. “A próxima geração é que terá de consertar o estrago.” Hoje, conclui ela, “a confiança nas instituições multilaterais está em seu ponto mais baixo”.14
*Anne-Cécile Robert é jornalista do Le Monde Diplomatique.