Dissonâncias do progresso
Afinal, o que legitima o progresso hoje? A impressionante herança deixada pelas inúmeras formas do progresso da ciência e da técnica é incontestável: o mundo ganhou, mas também perdeu!
Adauto Novaes
O que é progresso? Para alguns teóricos, apenas uma palavra que não passa de um slogan, um clichê ou, no máximo, um mito; pode ser também uma crença, jamais um conceito. Para ganhar estatuto de “conceito” universal, o termo se apoia em outras palavras em busca de legitimidade e, assim, passa de relativo a absoluto: progresso e democracia, progresso e liberdade, progresso e desenvolvimento. Pior: até mesmo ações de caráter belicista recorrem à ideia de guerra como movimento indispensável a um futuro de progresso radioso.
Filósofos brasileiros e franceses reúnem-se, mais uma vez, no Rio, em Belo Horizonte e em Brasília em torno do conceito de mutações, desta vez para discutir as dissonâncias do progresso.
Afinal, o que legitima o progresso hoje? A impressionante herança deixada pelas inúmeras formas do progresso da ciência e da técnica é incontestável: o mundo ganhou, mas também perdeu! Transformação radical das ideias de espaço e tempo, avanços na medicina e na biologia que nos preservam de muitos males – progresso com inegáveis e perenes benefícios para a humanidade –, mas, em contrapartida, um progresso que cria rigor, velocidade, precisão da relação do homem com o meio físico, desaparecimento do vago e do lento, hábitos dominados por métodos positivos governados pelas máquinas, modo científico de existência ao qual “os espíritos se acostumam rapidamente, ainda que insensivelmente”, enquanto as relações do homem com o homem permanecem, como observa o poeta e filósofo Paul Valéry, “dominadas por um empirismo detestável que evidencia até mesmo, em diversos pontos, uma sensível regressão”.
Se a ciência do Iluminismo permitiu o alargamento da percepção do mundo e da vida ao destruir uma quantidade enorme de certezas, em contrapartida as ideias de progresso, aliadas à racionalidade técnica, destroem uma das grandes invenções da humanidade – a dúvida – ao recriarem e reporem o mito da certeza. O mito do progresso é uma dessas novas certezas. Quem, da direita e também em boa parte da esquerda, arrisca-se a ser contra o progresso (ou seus equivalentes: desenvolvimento, crescimento econômico)? Basta ouvir os discursos de políticos, financistas, tecnocratas e até mesmo de intelectuais ilustrados. É a crença de que todos os problemas da humanidade serão resolvidos com o aumento do conhecimento científico. No ensaio O mito moderno do progresso, Jacques Bouveresse nos leva a pensar que a ideia de progresso resume dois dos mais terríveis problemas da atualidade, sintetizados por Georg von Wright como o mito da autoridade e o império da fala: “um discurso”, escreve Bouveresse, “que se pode considerar como mais ou menos dispensado da argumentação, que se autolegitima e cujo protótipo é a fala que emana do fundamentalismo religioso ou da ditadura política”.
O moderno perde seu ponto de identidade e de diferença. Guerra e paz, miséria e abundância, bem e mal são coisas indiferentes. O progresso é indiferente aos resultados, contanto que avance! Eis o reino da relatividade geral que tudo admite e onde todas as ações e opiniões se equivalem objetivamente. Como tudo se equivale, o sistema de valores desaparece. Ou melhor, desaparece a contradição entre ciência e técnica como realidade objetiva e ciência e técnica como valor. Mais precisamente, valor passa a ser outra coisa: Valéry recorre ao modelo da Bolsa de Valores, no ensaio A liberdade do espírito, para pensar todas as atividades humanas. Os valores morais e estéticos, por exemplo, são dominados pela especulação, e é sem ironia que ele diz: o mundo do progresso perdeu a ideia de padrão absoluto. As produções materiais e espirituais são um grande mercado flutuante seguindo os mesmos princípios da Bolsa: “Existe um valor chamado ‘espírito’ como existe um valor petróleo, trigo ou ouro”, que infelizmente não cessa de baixar. Outros pensadores vão além: a redução do ser ao valor de troca seria a origem do niilismo. Para Nietzsche, o contrário seria verdadeiro: é em virtude do niilismo que o ser fica reduzido a valor de troca:
“Há uma selvageria pele vermelha, própria do sangue indígena, no modo como os americanos buscam o ouro: e a asfixiante pressa com que trabalham – o vício peculiar ao Novo Mundo – já contamina a velha Europa, tornando-a selvagem e sobre ela espalhando uma singular ausência de espírito. As pessoas já se envergonham do descanso; a reflexão demorada quase produz remorso. Pensam com o relógio na mão, enquanto almoçam, tendo os olhos voltados para os boletins da Bolsa – vivem como alguém que a todo instante poderia ‘perder algo’. ‘Melhor fazer qualquer coisa do que nada’ – esse princípio é também uma corda, boa para liquidar toda cultura e gosto superior.”
Em seu pouco conhecido Cahier B, de 1910, Valéry alia a revolução tecnológica à dissolução das tradições comuns e da crença nos mesmos valores com o nascimento das grandes cidades no século XIX:
“O civilizado das grandes cidades volta ao estado selvagem, isto é, isolado, porque o mecanismo social lhe permite esquecer a necessidade da comunidade e leva à perda do sentimento de laço entre os indivíduos, antes despertados incessantemente pela necessidade. Todo o aperfeiçoamento da mecânica social torna inúteis atos, maneiras de sentir, aptidões à vida comum.”
Esse indivíduo isolado tende a perder as memórias coletivas e os imaginários sociais, abrindo espaço para o que Musil definiu como “egoísmo organizado”. As pulsões egoístas, segundo ele, resultam do progresso material e da desordem social. Podemos complementar essa ideia de pulsões egoístas com a análise de Engels sobre o homem das grandes cidades em A situação da classe operária na Inglaterra, em que se lê que, para realizar os progressos da civilização, os homens sacrificam o melhor de si:
“As cem forças que dormem neles permanecem inativas e abafadas para que apenas algumas possam se desenvolver […] E mesmo sabendo que esse isolamento do indivíduo e seu egoísmo são em todo lugar o princípio fundamental da sociedade atual, em nenhum lugar eles se manifestam com uma impudência, uma segurança tão total quanto aqui, precisamente na multidão da grande cidade. A desagregação da humanidade em mônadas na qual cada uma tem um princípio de vida e um fim particular, esta atomização do mundo é aqui levada ao extremo.”
Assim, com as promessas da ciência e da técnica que jamais se realizam (sempre uma espera), o progresso entra em eterno processo, linear e infinito, mas também mecânico e circular, criando as próprias condições de perpetuação. É desse movimento infinito que ele se alimenta: diante de problemas criados pelo progresso, inventa-se uma nova forma de progresso que permite “superar” os problemas criados. Eis as questões que devemos responder: para onde o progresso nos leva? Qual é o verdadeiro interesse para a humanidade?
(Programa completo e inscrições do ciclo Mutações – dissonâncias do progresso no site <www.mutacoes.com.br>.)
*Adauto Novaes, ex-jornalista e professor, foi, durante vinte anos, diretor do Centro de Estudos e Pesquisas da Fundação Nacional de Artes. Atualmente é diretor da Artepensamento.