Educação inclusiva e a valorização das diferenças
O governo federal promulgou um decreto que institui uma nova política de Educação Especial sem a perspectiva inclusiva. A iniciativa recebeu diversas críticas de organizações que atuam no tema
Na contramão da ampliação de direitos das pessoas com deficiência, em 30 de setembro de 2020 foi promulgado o Decreto n°10.502, que institui uma nova política de Educação Especial, agora sem a perspectiva inclusiva. O decreto encoraja a prática de educação de pessoas com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e superdotação e altas habilidades em escolas especiais e ainda sugere que as famílias serão aconselhadas sobre onde matricular seus filhos. Na prática, o decreto dá margem para a recusa de matrícula desses estudantes em escolas regulares, bem como destina recursos públicos para uma política segregatória, que pode reduzir os investimentos na remoção de barreiras e na formação de professores para a inclusão escolar.
Por violar a Constituição federal e a Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, o Decreto nº 10.502/2020 está sendo questionado publicamente pela sociedade civil pelo Congresso Nacional – em 15 projetos de decretos legislativos (PDL) que visam a sua revogação, como o PDL 433, cujo requerimento de urgência já foi aprovado – e por duas ações no Supremo Tribunal Federal, que têm por objetivo a declaração de inconstitucionalidade do decreto (ADPF 751 e ADI 6590).
Legislação, Convenção e Declaração Universal dos Direitos Humanos
A ideia de diferença como valor já está estabelecida desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), ao apontar que o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo é o reconhecimento da dignidade inerente a todos os seres humanos e de seus direitos iguais e inalienáveis.
A Convenção sobre os direitos da pessoa com deficiência (2006) reconheceu e estendeu direitos a esse público em específico, para garantir-lhes efetiva inclusão na sociedade, em base igualitária com outros cidadãos no que diz respeito aos direitos à vida, à habilitação e reabilitação, à saúde, à educação, à moradia, ao trabalho, à previdência social, à assistência social, à cultura, ao esporte, ao turismo, ao lazer e ao transporte.
Na Convenção é apresentado um novo conceito de pessoa com deficiência, que leva em conta o modelo social e não clínico em sua definição: “aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas”. A convenção representa um importante marco na proteção aos direitos humanos no Brasil. Ao ser internalizada no direito pátrio com status constitucional, pelo Decreto legislativo nº 186, de 2008, o documento ampliou o espaço para exercício da cidadania a milhares de pessoas, o que já era garantido pela Constituição de 1988.
Reforçando a assinatura do documento pelo Brasil, em Nova York, em 2007, e a ratificação com equivalência de emenda constitucional, em 2008, o Decreto federal nº 6949, de 2009, promulgou a Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência.
Outro documento internacional elaborado pela Organização das Nações Unidas (ONU), a Agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável, plano de ação criado em 2015, entrou para a lista de referências para o fortalecimento de valores e diretrizes que fundamentem a elaboração de leis, decretos e políticas cada vez mais inclusivas. A agenda, concebida durante a atualização dos Objetivos do Milênio (ODM), indica 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) para erradicar a pobreza e promover vida digna para todos, metas estabelecidas para o período de 2015 até 2030.
Vários ODS contemplam explicitamente as pessoas com deficiência. O ODS 4, que trata de educação de qualidade, coloca como desafio “assegurar a educação inclusiva e equitativa e de qualidade, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todas e todos”. Na estratégia 4.5 é ainda mais específico: “até 2030, eliminar as disparidades de gênero na educação e garantir a igualdade de acesso a todos os níveis de educação e formação profissional para os mais vulneráveis, incluindo as pessoas com deficiência, povos indígenas e as crianças em situação de vulnerabilidade”.
Dando continuidade ao recorte educacional, a Declaração de Incheon, criada, ainda em 2015, na cidade de Incheon (Coreia do Sul), demonstra em seu título a ampliação, o aprofundamento e a consideração da educação como direito de todos: “Educação 2030: rumo a uma educação de qualidade inclusiva e equitativa e à educação ao longo da vida para todos”.
Importante contextualizar que esta declaração se encontra dentro do movimento global de educação para todos, cujo marco normativo inicial foi a Declaração mundial sobre educação para todos, elaborada em Jomtien (Tailândia), em 1990; seguida da Declaração de Salamanca (Espanha), no ano de 1994, que discutiu essas questões de modo específico e dentro da educação geral; e reiterado pela Declaração de Dakar (Senegal), em 2000.
E, dando continuidade à legislação brasileira, também em 2015, a Lei nº 13.146, chamada de Lei Brasileira da Inclusão (LBI), e também conhecida como Estatuto da Pessoa com deficiência, chegou para reforçar os direitos à inclusão social e à cidadania das pessoas com deficiência. Em seu capítulo IV, aborda o direito à educação, com base na Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência, que deve ser inclusiva e de qualidade em todos os níveis de ensino e garantir condições de acesso, permanência, participação e aprendizagem, por meio da oferta de serviços e recursos de acessibilidade que eliminem barreiras.
Educação inclusiva na pandemia
Diante dos enormes impactos gerados pela pandemia da Covid-19 nas redes de ensino do Brasil, a pesquisa “Protocolos sobre educação inclusiva durante a pandemia: Um sobrevoo por 23 países e organismos internacionais”, realizada pelo Instituto Rodrigo Mendes, teve o objetivo de contribuir com os gestores responsáveis por planejar e implementar políticas públicas voltadas à garantia do direito à educação das pessoas com deficiência.
Embed: Vídeo do webinário de lançamento do documento
A pesquisa abordou ações relacionadas ao período de isolamento social, assim como à fase de reabertura das escolas. O estudo adotou como fonte de informações uma rede de 45 especialistas estrangeiros, protocolos de 23 países, bem como diversos documentos de organismos internacionais, como Organização Mundial de Saúde (OMS), Organização das Nações Unidas (ONU), Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), dentre outros, relacionados à educação inclusiva durante o período da pandemia.
Um amplo conjunto de direitos devem ser garantidos às pessoas com deficiência, independentemente da gravidade do momento que enfrentamos. Esse conjunto envolve o direito à informação, à saúde e à educação. Há ainda considerações acerca da educação dos estudantes com deficiência durante o período de isolamento social e aulas remotas que precisam ser discutidas, além das políticas públicas de retomada das atividades escolares de forma presencial, abordando critérios de retorno como questões sanitárias e distanciamento social. A pesquisa mostra a necessidade e apresenta alguns meios de garantir que todos os estudantes, com e sem deficiência, tenham o mesmo acesso à educação.
Gestores públicos, diretores de escolas e educadores têm o papel de cuidar para que nenhuma pessoa seja excluída, desmotivada ou deixe de estudar. É responsabilidade de todos prevenir para que não haja consequências discriminatórias e de aprofundamento das desigualdades.