Miscelânea
POR UM POPULISMO DE ESQUERDA
Chantal Mouffe, Autonomia Literária
Acaba de chegar ao Brasil o novo livro de Chantal Mouffe, Por um populismo de esquerda. O título, provocador, é um chamado à ação política e soa especialmente provocativo no atual contexto brasileiro. Já no início a autora apresenta seu diagnóstico central, cujo foco é, vale salientar, a Europa: a crise da formação hegemônica neoliberal produziu o momento populista que marca a atual conjuntura. Ter-se-ia aberto, assim, nesse momento, a possibilidade de construção de uma ordem mais democrática.
Não se entende o livro sem esse retorno: o abandono de canais agonísticos capazes de expressar os conflitos e as divergências de visões e interesses – traço inerente ao político – e a adoção de um consenso no centro geraram o que a autora chama de pós-política, condição marcada pela ausência de propostas claramente alternativas/oposicionistas, o que provoca, por sua vez, desinteresse pelo processo democrático e apatia política.
Essa apatia, no entanto, teria sido sacudida pela crise de 2008, que trouxe à tona as contradições do modelo neoliberal e deu origem a questionamentos dessa hegemonia por diversos movimentos, à esquerda e à direita, mas com um traço em comum: são antissistema.
Assim, a ascensão da direita populista na Europa, nos Estados Unidos e no Brasil parece ser menos um fenômeno político que um fenômeno social. A insatisfação de parte da população com o “sistema” e com o condomínio de poder que cuidava da gestão do capitalismo ajuda a entender a emergência de figuras caricatas que se elegeram prometendo rupturas. De certa forma, a política foi redescoberta pela direita. Como precisamente construir uma alternativa contra-hegemônica, para além do processo eleitoral? A obra de Chantal Mouffe obviamente não oferece tal resposta, mas nos dá pistas e serve de reflexão sobre fracassos acumulados e disputas a enfrentar.
[Felipe Calabrez] Professor de Relações Internacionais.
VIDA E MORTE DE UMA BALEIA-MINKE NO INTERIOR DO PARÁ E OUTRAS HISTÓRIAS DA AMAZÔNIA
Fábio Zuker, Publication Studio São Paulo
O livro reúne uma série de reportagens, feitas entre 2017 e 2019, mas não se resume a isso: apesar de o título ser extenso, há uma aposta qualquer, ainda que mínima, em duplicar e serializar esses textos, colididos e organizados como uma espécie de corpus em deslocamento pela Amazônia de hoje. Como se, mesmo numa nova versão do livro, agora expandida em formato de e-book, essas duplicatas também fossem capazes de, tal como o pensamento Wari’, que projeta corpos em outro mundo, expandir o mundo e imaginar outros sobre este nosso mundo aqui, permanentemente em via de extinção.
Fábio Zuker não resolve os impasses de que nos dá notícia, mas os expõe. Também, em nenhum momento ele se propôs à tarefa complicadíssima de salvar o mundo do desastre, e sim de pensar sobre o desastre e suas consequências, porque, para ele, os números por si sós não dão conta de traduzir a experiência cotidiana das pessoas que experienciam a floresta amazônica dos mais diversos pontos de vista.
Atento, então, à pluralidade de pontos de vista que cruzam modos muito heterogêneos de vivenciar e experienciar a floresta, Fábio Zuker movimenta-se por diferentes lugares da região Norte do país, coletando histórias e escrevendo notícias que fazem surgir pequenas clareiras na mata, assim como a história da Baleia-Minke, que abre um pequeno respiro no meio de tantas notícias de desastre, ajudando-nos a ter uma ideia do que, de fato, acontece atualmente por lá. De venezuelanos, indígenas Warao e criollos, acampados no viaduto do terminal rodoviário de Manaus, “personagens de uma história que não gostariam de estar escrevendo”, a habitantes do município de Alenquer, no Pará, que compartilham o uso do Lago Macupixi com a empresa Açaí Amazonas e declaram, irremediavelmente, que “o que eles querem mesmo é matar a gente”, o tom que prevalece no livro, atravessado por uma grande dor, é o de denúncia, como se suas reportagens estivessem nos revelando um processo de destruição contínua, cuja ferramenta seria uma certa violência lenta – termo cunhado por Rob Nixon, professor de Princeton – acometida contra a floresta e suas formas de vida.
[Érica Zíngano] Poeta e artista visual.
<INTERNET>
Novas narrativas da web
Sites e projetos que merecem seu tempo
Post-Normal Times
Publicado em 2019, o projeto em formato livro e site é o foco das pesquisas do Centro de Políticas Pós-Normais e Estudos do Futuro, um grupo de pesquisa internacional que observa principalmente as sociedades marginalizadas e muçulmanas. A teoria que os autores desenvolvem diz que os tempos atuais vivem sob três regras: complexidade, caos e contradições. Vivemos numa era em que velhas ortodoxias estariam morrendo, novas estariam emergindo e poucas coisas fazem sentido. Como o projeto é anterior ao coronavírus, ganhou uma edição extra, com um blog que traz novos textos, atualizados.
https://postnormaltim.es/
Acervo Vladimir Herzog
Um site com quase 2 mil fotos, correspondências e outros itens recupera a história do jornalista morto no período da ditadura militar no emblemático caso em que os militares tentaram forjar um suicídio e que deu início a diversas manifestações que serviram para aumentar a pressão para o fim do regime. Biografia, linha do tempo e memórias, fruto de dois anos de pesquisas, compõem o acervo, entre outros formatos. Apenas em 2013 a certidão de óbito do jornalista foi retificada, desmantelando finalmente a farsa do suicídio. Lá se pode ler o documento.
https://www.acervovladimirherzog.org.br/
Museu da Arte Covid
Covid Art Museum é um projeto de publicitários espanhóis, Irene Llorca, José Guerrero e Emma Calvo, que convida artistas do mundo todo a compartilhar obras feitas durante a pandemia. Segundo eles, é o primeiro museu de arte do mundo surgido durante a crise de Covid-19. Uma conta no Instagram publica as contribuições, que podem ser fotografias, ilustrações, vídeos, pinturas, animações e formatos dos mais variados. Mais de quinhentas publicações já foram feitas.
https://www.instagram.com/covidartmuseum/
[Andre Deak] Sócio do Liquid Media Lab, professor de Jornalismo e Cinema da ESPM, mestre em Teoria da Comunicação pela ECA-USP e doutorando em Design na FAU-USP.