Miscelânica
HERDEIROS DA FACÚNDIA
Raphael Silva Fagundes, Multifoco
O livro é tributário da tese de doutoramento homônima, defendida por Raphael Silva Fagundes na Universidade do Estado do Rio de Janeiro em 2018. O autor utiliza a retórica como chave de leitura para compreender os discursos políticos de figuras importantes do mundo luso-brasileiro.
Nesse sentido, os Sermões, do padre Antônio Vieira, são aqui abordados como ponto de partida da investigação, percebidos como atos de fala em meio a um cenário político marcado pela Guerra de Restauração (1640-1668), no qual o jesuíta seiscentista se envolveu de forma ativa para a consolidação do reino de D. João IV. A eloquência barroca de Vieira deixaria marcas profundas na retórica política brasileira.
Raphael detecta as permanências e as rupturas dessa retórica na erudição brasileira por meio do exame dos discursos pronunciados no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) entre 1838 e 1870. Também envolvidos em uma trama política decisiva que determinaria os destinos da monarquia tropical, homens públicos, dublês de literatos, investiram em um enorme arsenal retórico herdado de tempos coloniais e atualizado pelos padrões da modernidade europeia para a construção de uma nação una e indivisa, ao modelo francês.
Os discursos proferidos nas cerimônias de aniversário do IHGB, assim como os necrológios de sócios e os relatórios dos trabalhos anuais da casa, lidos na presença de D. Pedro II e de outros personagens dos altos escalões do Estado monárquico, são as fontes analisadas pelo historiador para mergulhar na atmosfera simbólica e política que impulsionava aqueles oradores.
A atuação dos membros do IHGB tanto na política quanto no âmbito intelectual contribuiu para produzir expressivas peças de retórica, nas quais emoções, raciocínio lógico, engodos, paradigmas e outras estratégias argumentativas eram mobilizadas na defesa do projeto político da monarquia centralizada sob a liderança do imperador.
[Lucia Maria Paschoal Guimarães] Professora de História da Uerj.
MARX NAS MARGENS: NACIONALISMO, ETNIA E SOCIEDADES NÃO OCIDENTAIS
Kevin B. Anderson, Boitempo
O livro oferece ao público uma investigação cuidadosa, rigorosa e de fôlego. A obra concretiza longos anos de trabalho de Kevin B. Anderson, professor da University of California, acerca da posição de Karl Marx em relação a experiências distantes do mainstream do marxismo tradicional: foge dos contextos europeus da “grande indústria” e refugia-se nas passagens sobre as formas sociais não ocidentais e/ou que precederam o modo de produção capitalista.
A causa é justificável: extinguir de vez a noção de que Marx seria um autor “eurocêntrico” ou “evolucionista”. Para tanto, Marx nas margens não se opõe meramente às críticas conservadoras a Marx, polarizando também com autores como Edward Said e Michel Foucault, caros às tradições contemporâneas de pensamento crítico. A esse propósito, Anderson convence.
Centra-se nas “margens”, mas não sem perder de vista o “centro”. Alguns leitores poderiam argumentar que Marx nas margens é um livro que apresenta um Marx deslocado de sua crítica máxima. Todavia, Anderson demonstra que Marx não relega as sociedades não ocidentais apenas a seus textos políticos e jornalísticos. Ao contrário, a importância da ênfase dada por Marx a essas questões fundamenta seus textos críticos à economia política, como O Capital e os Grundrisse.
Anderson também oferece argumentos para uma importante discussão da tradição marxista. Se por um lado alguns intérpretes acreditam que o pensamento de Marx reduz o operariado inglês da grande indústria ao protótipo de “missionário da revolução”, Anderson abre aspas para um Marx que falou em “classes trabalhadoras” em seus escritos sobre a França, que sugeriu uma “revolução escrava” em seus artigos jornalísticos sobre a Guerra Civil Americana e que vislumbrou nas comunas rurais russas a capacidade de contribuir não só para uma revolução naquele país como também ser o “ponto de partida” para o movimento revolucionário em toda a Europa. Posição condizente com o século XX, que presenciou diversas revoluções em países da periferia do sistema capitalista, como Vietnã, Cuba, Rússia, China e Moçambique.
A exposição de Marx nas margens é um convite a uma leitura agradável. A todo momento o leitor é bem situado ao texto, localiza-se pelas temáticas cuidadosamente organizadas, aprofunda-se em temas de seu interesse pelas notas de rodapé e, o principal, acompanha o aperfeiçoamento teórico e crítico do pensamento de Marx durante o desenvolvimento de sua obra. Anderson nos convida a um retorno a Marx, em um momento tão propício e urgente, que é bom não recusarmos.
[Lucas Parreira Álvares] Doutorando em Antropologia Social pela UFMG.