O Acordo de Paris e o Brasil
Perante o sobe e desce no entusiasmo sobre o tema mudanças climáticas, é preciso entender o que é o Acordo de Paris, como ele surge, quais são os grandes desafios e obstáculos à sua aplicação, e qual é o papel e a responsabilidade do Brasil na agenda global de clima
Em 12 de dezembro de 2015, cidadãos de todo o planeta, reunidos na França, celebraram a conclusão de um longo processo de negociação multilateral para um grande acordo global sobre mudanças climáticas. Emocionado, o ministro francês de Relações Exteriores, Laurent Fabius, batia o martelo que selava o nascimento do Acordo de Paris.
Muitos governos ratificaram o acordo já no início de 2016, estimulando outros a fazer o mesmo. No dia 4 de novembro desse ano, menos de um ano após sua aprovação, o novo tratado do clima entrou em vigor. Nunca antes um acordo sobre qualquer tema, negociado no âmbito das Nações Unidas, tinha iniciado sua vigência tão rapidamente. Parecia que finalmente os políticos mundiais haviam tomado juízo e a agenda de clima virara prioridade. Mesmo com metas iniciais tímidas ou insuficientes para limitar o aquecimento global dentro dos limites definidos no Acordo de Paris, o mundo ganhava uma chance de colocar, ao longo do tempo, as emissões globais de gases de efeito estufa no caminho da segurança climática.
No entanto, a onda de otimismo não duraria muito tempo. Apenas cinco dias depois, veio o baque: o negacionista climático Donald Trump era eleito presidente dos Estados Unidos, com a promessa de reverter políticas regulatórias sobre carvão, petróleo e gás natural estabelecidas por seu antecessor, Barack Obama, de abandonar o Acordo de Paris e de formar um gabinete repleto de representantes da indústria fóssil. O mundo voltava a temer pelo fracasso do multilateralismo em enfrentar a crise climática com a urgência e a responsabilidade necessárias.
Em 2017, Trump cumpriu suas promessas. Apoiado por um Congresso dominado por republicanos, jogou por terra as regulações da era Obama que visavam controlar a eficiência e as emissões de termelétricas a carvão, concedeu incentivos à indústria fóssil e anunciou a saída dos Estados Unidos do Acordo de Paris.
As más notícias para o clima da Terra em 2017, porém, não vieram apenas da Casa Branca. A Alemanha, anfitriã da COP23, realizada ano passado sob a presidência das Ilhas Fiji, deu todas as indicações de que não atingirá sua meta de redução de 40% de suas emissões em 2020 em relação aos níveis de 1990. E o Brasil, muitas vezes visto como líder entre os países em desenvolvimento nas negociações de clima e em redução de emissões, pela queda nas taxas de desmatamento, viu o presidente Michel Temer levar adiante uma agenda voltada ao atendimento de demandas da retrógrada bancada ruralista e do setor de petróleo e gás.
Perante esse sobe e desce no entusiasmo sobre o tema mudanças climáticas, é preciso entender o que é o Acordo de Paris, como ele surge, quais são os grandes desafios e obstáculos à sua aplicação, e qual é o papel e a responsabilidade do Brasil na agenda global de clima.
O Acordo de Paris é um tratado estabelecido entre os 196 países signatários da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, cuja sigla em inglês é UNFCCC. A convenção de clima da ONU é uma das chamadas Convenções do Rio. Ela nasceu na Eco-92, juntamente com duas “irmãs”, a Convenção sobre Diversidade Biológica e a Convenção sobre Combate à Desertificação.
A UNFCCC tem por grande objetivo evitar que a interferência humana no sistema climático global ultrapasse limites considerados perigosos. As negociações para sua introdução iniciaram-se em 1995, com a primeira COP, a Conferência das Partes (países) signatárias da convenção, sendo realizada em Berlim. Dois anos depois, em 1997, em Kyoto, no Japão, a COP3 aprovou o primeiro grande instrumento para regulação de emissões de gases de efeito estufa, o Protocolo de Kyoto.
Na época em que o Protocolo de Kyoto foi negociado, a imensa maioria das emissões de gases de efeito estufa vinha dos países industrializados, que tinham também a responsabilidade histórica pelo aquecimento observado até então. Países em desenvolvimento, maiores vítimas da mudança do clima, não tinham, até ali, grande responsabilidade sobre o problema. Portanto, não deveriam assumir o ônus de contribuir para sua solução. O Protocolo de Kyoto então definiu limites e metas de redução para as emissões de gases de efeito estufa de todos os países desenvolvidos e dos países das então chamadas economias em transição para a economia de mercado (países da ex-União Soviética e do Leste Europeu).
O Protocolo de Kyoto só entraria em vigor quando pelo menos 55% dos países signatários da convenção de clima, desde que responsáveis por 55% das emissões globais de gases de efeito estufa, ratificassem o instrumento. Os Estados Unidos, que negociaram duramente o protocolo, nunca viriam a ratificá-lo. Mas em 2004, após a União Europeia retirar objeções à entrada da Rússia na Organização Mundial do Comércio, seu então presidente, Vladimir Putin, decidiu levar adiante o processo de ratificação do protocolo. A adesão russa, em 2005, permitiu que Kyoto entrasse em vigor.
Esses oito anos de atraso foram péssimos para o clima. As emissões globais subiram 23%, enquanto o Protocolo de Kyoto definia, em média, uma redução de emissões de 5,2% em relação a índices de 1990. Dois anos depois, em Bali, Indonésia, na COP13, o mundo se deu dois anos para negociar um acordo em “dois trilhos” para rodar a partir de 2013. Um deles era formado por países industrializados e seguiria o mesmo esquema de Kyoto. O outro era formado pelos Estados Unidos (ausente de Kyoto) e por países emergentes, cujas emissões já atingiam patamares significativos e viriam a superar as dos países ricos. A proposta era que os países nesse segundo trilho adotassem metas de redução de emissões voluntárias. Num cambalacho diplomático, ficou acertado que as metas voluntárias dos Estados Unidos não poderiam ser inferiores às dos países do primeiro trilho.
A intenção foi boa, mas a proposta naufragou. Em 2009, na Conferência de Copenhague (COP15), o aguardado acordo internacional que enfim salvaria o planeta foi soterrado na neve da capital dinamarquesa, numa sabotagem conjunta de Estados Unidos e China, os dois maiores poluidores do mundo. Para o Brasil, porém, Copenhague teve efeito positivo e duradouro, graças ao oportunismo e ao talento político do então presidente Lula.
No começo da conferência, o Brasil apresentou uma meta voluntária de reduzir as emissões de gases de efeito estufa de 36,1% a 38,9% até 2020 em relação ao cenário tendencial. Embora com um cenário tendencial bastante inflado – no setor de energia, por exemplo, o governo considerou que toda energia nova viria de fontes fósseis a partir de 2009, uma ficção –, era a primeira vez que um país emergente colocava um compromisso significativo de limitação de suas emissões na mesa, pressionando outras grandes economias. A meta vinha sendo proposta pelo Ministério do Meio Ambiente, mas enfrentava forte oposição da ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff. Lula atropelou sua escolhida e bancou a proposta, sabendo que Dilma ficaria fragilizada na eleição de 2010 diante de Marina Silva e José Serra (então governador de São Paulo, que tinha acabado de aprovar uma política de clima com metas de redução de emissões), caso o Brasil fosse para Copenhague de mãos abanando.
A COP15 foi importante para o Brasil também por outra razão: foi a última vez que o país brilhou na cena internacional. O segundo discurso de Lula em Copenhague, criticando a falta de ação dos ricos e se comprometendo a botar dinheiro para o financiamento climático global, foi aplaudido de pé por líderes mundiais, delegados e até jornalistas. De volta ao Brasil, ainda para fazer frente a Marina, o presidente mandou inscrever as metas voluntárias de Copenhague na lei de mudanças climáticas em votação no Congresso. Os compromissos brasileiros no clima passaram, assim, a ser obrigatórios domesticamente – algo também inédito entre países em desenvolvimento.
Em 2011, na Conferência de Durban, o Brasil continuou demonstrando liderança ao ajudar a quebrar a resistência do grupo de países em desenvolvimento em torno de uma proposta de um novo acordo do clima “aplicável a todos”. Essa expressão formaria a essência daquilo que viria a ser o Acordo de Paris: um regime climático internacional no qual todos os países teriam de apresentar metas, embora as dos ricos fossem mais estritas.
Pode-se dizer que o Acordo de Paris leva a convenção de clima da ONU a uma fase de plena aplicação. Primeiro, foi estabelecido um objetivo de longo prazo: limitar o aquecimento global a bem abaixo de 2 °C neste século e fazer esforços para limitá-lo a 1,5 °C. Depois, foi criado um jeito diferente de lidar com as metas nacionais. Em vez de obrigatórias, como em Kyoto, elas se dariam no esquema chamado pledge and review: cada país proporia um compromisso, conhecido como NDC (Contribuição Nacionalmente Determinada), de acordo com suas circunstâncias nacionais. Ao final de um dado período, estas seriam verificadas pela comunidade internacional. Por fim, Paris inovou decisivamente na maneira de fazer cumprir seu objetivo. Em vez de determinar períodos de compromisso e reabrir o acordo para negociação constantemente, ficou determinado que a cada cinco anos serão feitas revisões globais para balizar o aumento de ambição. Assim, Paris não tem um “prazo de validade”: enquanto houver o problema (as emissões de carbono), o acordo estará de pé.
O Brasil chegou a Paris numa situação paradoxal. Por um lado, a governança climática nacional estabelecida no governo Lula foi na prática desmantelada por Dilma. A petista se contentou em usar o poder de polícia para conter o desmatamento na Amazônia, enquanto planejava extensas obras de infraestrutura (causadoras de desmatamento) para a região e entregava o Cerrado à expansão do agronegócio. Entre 2011 e 2015, o Brasil perdeu protagonismo nas relações internacionais, e na cena climática não foi diferente. Por outro lado, o país apresentou a NDC mais robusta entre os países emergentes, com metas de corte absoluto de emissões para 2025 – 37% em relação aos níveis de 2005, o que faria o país chegar àquele ano emitindo 1,3 bilhão de toneladas de gás carbônico equivalente (CO2e).
A pressão da sociedade civil foi decisiva para isso: em junho de 2015, o Observatório do Clima apresentou uma proposta de meta e um cálculo consistente demonstrando que o país poderia fazer mais e limitar suas emissões a 1 bilhão de toneladas brutas de CO2 equivalente em 2030. A proposta do Observatório do Clima pôs um sarrafo no nível de ambição e evitou que o país adotasse uma meta frágil como a de Copenhague, de reduções relativas.
Ironicamente para um país que no passado tentou manter as florestas fora dos mecanismos de Kyoto em nome do “direito soberano a desmatar”, a NDC brasileira é fortemente baseada em políticas no setor florestal. Entre elas está a proposta – cuja falta de ambição é chocante – de zerar apenas o desmatamento ilegal e apenas na Amazônia em 2030. Há também um compromisso de restaurar ou reflorestar 12 milhões de hectares e, no setor agropecuário, de recuperar 15 milhões de hectares de pastagens degradadas.
Uma coisa, porém, é ter uma meta. Outra, bem diferente, é colocá-la em prática. O sucesso do Acordo de Paris depende essencialmente do compromisso de cada um dos países com suas políticas domésticas e com o aumento no nível de ambição climática. As metas atuais, no melhor dos cenários, seriam suficientes apenas para limitar o aquecimento global a 3 °C até o fim do século. Retrocessos em grandes emissores, sejam os Estados Unidos, a Alemanha ou o Brasil, tornam cada vez mais difícil colocar o mundo em um caminho de segurança climática.
Desde a adoção da NDC, o Brasil viu suas emissões de gases de efeito estufa aumentar, na contramão de Paris: 3,5% em 2015 e 9% em 2016. Hoje o país é o sétimo maior emissor de gases-estufa do mundo, com 2,2 bilhões de toneladas jogadas na atmosfera no ano retrasado, segundo o Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa do Observatório do Clima (Seeg). Pior ainda, isso aconteceu enquanto a economia afundava em uma das piores recessões da história nacional, dando ao Brasil a honraria duvidosa de ser o único grande país do mundo com emissões em expansão e PIB em retração.
A disparada se deveu ao descontrole do desmatamento, na esteira da crise fiscal que fez secar a verba do Ibama e da crise política que sinalizou aos criminosos ambientais que qualquer ato ilegal seria anistiado. A chegada de Michel Temer ao poder deu razão a quem pensava assim.
Um dos primeiros atos de Temer, após ser oficializado na Presidência, em setembro, foi ratificar o Acordo de Paris. Seu ministro do Meio Ambiente, Sarney Filho, conseguiu recompor o orçamento do Ibama e botar a fiscalização no mato outra vez, o que ajudou a reduzir a taxa de desmatamento em 2017 em relação à disparada de quase 30% do ano anterior. Mas as boas notícias para o meio ambiente acabaram aí.
Buscando no Congresso a legitimidade que não conquistou pelo voto, Temer costurou sua governabilidade com a numerosa bancada ruralista e outras forças do atraso social e econômico. Teve início um movimento, ainda longe de acabar, de desmonte de salvaguardas socioambientais: redução de unidades de conservação, anistia à grilagem de terras em grandes propriedades (de até 2.500 hectares) e uma investida sem precedentes sobre as terras indígenas, com o desmonte da Funai e a incorporação pela administração federal da tese ruralista do “marco temporal” – segundo a qual índios expulsos de suas terras antes de 1988 perdem para sempre o direito a elas. Dado que boa parte do carbono da Amazônia se encontra armazenado de forma segura em terras indígenas e unidades de conservação, as concessões aos ruralistas têm impacto direto na proteção do clima. O corte de 43% no já pífio orçamento do Ministério do Meio Ambiente em 2017 foi a prova final de que, onde quer que estivesse a agenda de Michel Temer, ela não passava pela proteção das florestas e do clima.
Ao mesmo tempo, o governo desenhava uma visão para o futuro energético do país com ênfase no petróleo, como sua antecessora. Durante o governo Temer foi aprovada a quebra da exclusividade obrigatória da Petrobras no pré-sal, o que atraiu forte interesse de empresas estrangeiras e tende a acelerar a exploração. No final do ano, o pacote de boas-vindas ao setor foi finalizado com a sanção da Lei do Repetro, conhecida como “MP do trilhão”, que concede subsídios multibilionários ao setor de petróleo até 2040 – quando as petroleiras estimam que a demanda mundial por essa commodity atingirá seu pico. A MP fez a rede internacional de ONGs Climate Action Network conceder o antiprêmio “Fóssil do Dia” ao Brasil no ano passado, na COP23.
A agenda de retrocessos continua em 2018, agora com ameaças ao licenciamento ambiental, a ser votado em fevereiro. Cereja do bolo, avança na Câmara um projeto do deputado governista Heráclito Fortes (o “Boca Mole” da planilha da Odebrecht) para cobrar royalties do vento, o que seria um desastre para a competitividade da energia eólica. Não fosse a recessão, que derrubou as projeções futuras de emissão do país, a NDC estaria em risco.
Enquanto isso, China e Índia, parceiros de Brics (com a Rússia e a África do Sul) e de Basic (com a África do Sul), tomam uma dianteira que o Brasil poderia partilhar na economia descarbonizada deste século. A China possivelmente está perto de cumprir antecipadamente sua meta de atingir o pico de suas emissões em 2030. A Índia vem usando a energia solar para ampliar o acesso de sua imensa população pobre à luz elétrica. Juntos, os dois países devem instalar quase 140 gigawatts (GW) – quase um Brasil inteiro (160 GW de capacidade instalada) – em energia solar entre 2016 e 2020. O último plano oficial do Brasil fala em 3,7 GW em 2020 e 9,7 GW em 2026.
O Brasil, candidato a hospedar a COP25 em 2019 e em via de eleger seu próximo presidente em 2018, é, em resumo, um país totalmente diferente daquele que arrancou aplausos do mundo nove anos atrás em Copenhague. Se algum candidato espera recuperar algo do prestígio internacional do país e ao mesmo tempo inseri-lo numa agenda de desenvolvimento do século XXI, a área de mudança climática seria um excelente lugar para começar.
*Carlos Rittl é doutor em Ecologia e Recursos Naturais pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e secretário executivo do Observatório do Clima, uma rede de 43 organizações da sociedade civil.