O cerco chinês se fecha sobre Hong Kong
Duas décadas após seu retorno para o colo chinês, Hong Kong vê sua autonomia cair e a repressão crescer. Testemunha disso é a prisão de três dirigentes do movimento pelo sufrágio universal integral, pauta que mobilizou a juventude no outono de 2014. Contudo, uma corrente política multiforme, chamada “localistas”, começa a fincar âncora na sociedade
Presidente chinês Xi Jinping (ao centro) e a chefe do Executivo de Hong Kong Carrie Lam (à direita) nas celebrações de vinte anos da transferência de soberania
A nova chefe do Executivo, Carrie Lam, prestou juramento em grande pompa no dia 1º de julho de 2017, numa Hong Kong cercada de barricadas onde estavam espalhados vinte esquadrões da guarnição do Exército de Libertação Popular. A cerimônia coincidiu com o vigésimo aniversário da devolução da antiga colônia britânica à China, e o presidente Xi Jinping viajou cercado de alto esquema de segurança. Ao encerrar as festividades, ele confirmou que, em Hong Kong, ele era o patrono: “Toda atividade que põe em risco a soberania e a segurança da China, que coloca em questão a Lei Básica [uma espécie de Constituição], que desafia o poder central ou que utiliza Hong Kong como base para dirigir atividades de infiltração e de sabotagem contra a China continental é um ato que passa por cima da linha vermelha e é totalmente inadmissível”.1 Já um mês depois, em Pequim, Zhang Dejiang, o terceiro nome mais importante do Partido Comunista da China (PCC), dirigente do grupo central de coordenação dos assuntos de Hong Kong e Macau, colocou os pingos nos is: “Em nenhuma circunstância, o alto grau de autonomia de que dispõe Hong Kong deve servir de pretexto para se opor ao governo central”.2
Isso não impediu o encontro anual que relembra a repressão sangrenta da Praça da Paz Celestial, em Pequim, em 1989. Em 4 de junho de 2017, no imenso palco do Victoria Park de Hong Kong, os oradores cantam músicas patrióticas e slogans reivindicando que Pequim anule seu veredicto a propósito do movimento, rotulado “rebelião contrarrevolucionária”. Chow Hang-tung, vice-presidente da Aliança de Apoio aos Movimentos Democráticos e Patrióticos da China, que agrupa todas as organizações e partidos do campo pandemocrata, lembra que os honcongueses têm a chance de se expressar pelos que não podem fazê-lo, de prestar homenagem às vítimas por aqueles que são impedidos de fazê-lo e de reconfortar os que ainda vivem.
Não à “lavagem cerebral”
“Devemos lutar para que os valores universais beneficiem cada vez mais gente”, tinha declarado algumas horas antes o presidente da Aliança, Albert Ho. Ex-deputado do Conselho Legislativo – de 1997 a 2016 –, ele é hoje um dos principais dirigentes do Partido Democrático: “A situação atual constitui uma armadilha, mas defendo a fórmula ‘um país, dois sistemas’,3 pois interessa às duas partes. Eu me sinto profundamente chinês e, ao mesmo tempo, muito ligado ao estado de direito que dá a especificidade de Hong Kong”, comentou. Quando jovem, de 1981 a 1991, Lau San-ching conheceu os cárceres chineses enquanto militante trotskista4 e pertencente ao segundo mais importante partido pandemocrata, o Partido Cidadão: “O que dá essa especificidade a Hong Kong com relação ao resto da China é o exercício efetivo das liberdades democráticas. Mas a luta continua para a obtenção do sufrágio universal direto, sem filtro anterior”. Embora tenha sido pessoalmente vítima dele, sente certa admiração por esse regime que restaurou “a grandeza da China” e criou base para o desenvolvimento com os projetos de investimentos comuns entre Hong Kong e a província limítrofe de Guangdong.
Advogada e militante dos direitos humanos, Kit Chan se mostra menos otimista: “A conjuntura atual é ruim. Além disso, a economia depende cada vez mais dos investimentos chineses, uma vez que os investimentos externos estão diminuindo muito. Com o endurecimento da repressão por ocasião do Movimento dos Guarda-Chuvas, o medo penetrou nos espíritos”. Esse movimento mobilizou muitos jovens:5 de 27 de setembro a 15 de dezembro de 2014, ele ocupou o centro de Hong Kong para protestar contra a vontade de Pequim de realizar uma pré-seleção de candidatos ao posto de chefe do Executivo e reivindicar um sufrágio universal total, mas não teve êxito. Em 16 de agosto de 2017, três dos principais dirigentes do movimento, Nathan Law, Alex Chow e Joshua Wong, foram condenados pelo Tribunal de Apelação a respectivamente oito, sete e seis meses de prisão. Eles tiveram também sua elegibilidade suspensa por cinco anos. Essa decisão mostra um fechamento cada vez mais perceptível.
Durante nosso encontro em junho, Law, presidente do inteiramente jovem Partido Demosisto, fundado em 2014 com Wong, e o mais novo eleito para o Conselho Legislativo na eleição de 4 de setembro de 2016, explicou: “O Movimento dos Guarda-Chuvas representou uma guinada na minha vida. Adeptos da não violência, nós nos inspiramos no movimento social de abril-maio de 1989 na China e apontamos os projetores do mundo inteiro para Hong Kong. Não pensava que as coisas seriam tão rápidas. O Demosisto quer se voltar mais para as classes populares, para os operários como meu pai, do que para os partidos democratas tradicionais, defensores das classes médias, pois o horizonte econômico não é mais tão radiante”.
Ex-secretário-geral da Federação dos Estudantes, Law compreende as frustrações dos defensores da independência, que são seus amigos. Mas, no Conselho Legislativo, votou com a ala pandemocrata e, ao mesmo tempo, propôs um referendo de autodeterminação em 2047, data em que terminará o regime especial instaurado por cinquenta anos. “É preciso sair do isolamento, abrir-se para o que é internacional. Essa é a razão pela qual o Demosisto reforça suas conexões em toda a Ásia oriental: Taiwan, Japão, Vietnã”, assegura.
Em 4 de junho de 2017, eles eram 110 mil no Victoria Park. A priori considerável para uma população de 7,3 milhões de habitantes, essa cifra, contudo, é a mais baixa desde 2008. Isso se deve ao fato de, pelo segundo ano consecutivo, o movimento estudantil não estar presente. Ao final do Movimento dos Guarda-Chuvas, a Federação dos Estudantes mudou e adotou uma linha de “identidade honconguesa”. Para seus membros, a história da China continental, da qual fazem parte os acontecimentos da Praça da Paz Celestial, não é mais a história deles.
O chefe do Executivo anterior, Leung Chun-ying, queria impor um programa de “educação patriótica”, com manuais escolares exaltando “a harmonia, a identidade e a unidade nacional” e uma consolidação do uso do mandarim, apresentando o PCC como uma organização “progressista, altruísta e unitária” e ignorando os erros do maoismo e do movimento social de abril-maio de 1989. Em reação, surgiu um movimento geracional conduzido pelo Scholarism, um grupo militante criado em maio de 2011. Seu fundador, um estudante de 14 anos de idade, Joshua Wong, continuou à frente do cenário. Ele não é hostil ao que se ensina sobre a história da China, minimizada durante o período colonial britânico, nem sequer ao que se ressalta como aspectos positivos dela, mas não aceita uma versão pré-escrita pelo Estado chinês, que levaria, segundo ele, a uma “lavagem cerebral”. Após o lançamento de uma petição que recolheu 100 mil assinaturas, depois de uma manifestação enorme e de um protesto sentado durante oito dias na frente da sede central do governo, Leung Chun-ying retirou seu projeto. Assim se garante uma identidade cívica honconguesa.
Toda uma geração desperta para a política, decepcionada com os partidos tradicionais, antiquados e considerados demasiadamente patrióticos. Um número cada vez maior de honcongueses, principalmente os jovens, define-se desde então como “localista”; eles enfatizam a preservação da identidade e a autonomia de Hong Kong, e alguns não hesitam em reivindicar abertamente a independência. Eles adotam uma estratégia mais radical contra o controle de Pequim, insistindo no estilo de vida e na história de Hong Kong. Querem preservar as conquistas das liberdades públicas e do estado de direito, preconizando ao mesmo tempo mais justiça social. De acordo com uma enquete realizada em 2015,6 40% dos residentes em Hong Kong se definem como honcongueses (em comparação com 21,8 % em 2008); 18%, como chineses (34,4%); e 40%, como portadores de uma identidade mesclada. Apenas 4% dos que têm de 18 a 35 anos se sentem chineses.
O fluxo de migrantes (500 mil em dez anos) e de visitantes continentais que formam os três quartos dos 54 milhões de turistas recenseados em 2015 também suscita uma hostilidade crescente, apesar de seu impacto econômico: a indústria do turismo contribui com 1,3% do PIB. Os chineses do continente também são rechaçados por se beneficiarem de serviços públicos e sociais, principalmente hospitais, por sobrecarregarem o sistema escolar – metade das 95 mil crianças nascidas em 2011, e integrantes da escola primária seis anos depois, é filha de chinesas continentais –, por causarem a falta de alguns produtos de primeira necessidade, como leite em pó, e por não terem civismo.
Além disso, os ricos continentais compram casas e apartamentos por preços altos, provocando o aumento dos custos no mercado imobiliário, que já são os mais elevados do mundo, e assim impedem cada vez mais os moradores locais de ter acesso a uma habitação individual. Enfim, afirma-se também a vontade de preservar a língua cantonesa diante da influência do mandarim, cada vez mais utilizado no mundo dos negócios e transformado na primeira língua estrangeira ensinada nas escolas, antes do inglês (falado por 5% da população).
No entanto, os “localistas” não são homogêneos. Alguns deles enfatizam a luta contra o controle do governo de Pequim, caracterizado como “imperialista”, e a autodeterminação, ao mesmo tempo que permanecem abertos a uma aliança com a ala pandemocrata; é o caso do Demosisto e do independente Eddy Chu Hoi-dick. Outros se pronunciam a favor de uma nação “honconguesa” com a criação de uma República de Hong Kong, se preciso por meios violentos, como o grupo Youngspiration, de Baggio Leung, o Indigenous, de Edward Leung Tin-kei, e o Partido Nacional, de Chan Ho-tin, em alguns casos com discursos que têm traços discriminatórios e até mesmo xenófobos.
Chu Hoi-dick se tornou conhecido em 2006 ao lançar uma campanha para defender o patrimônio de Hong Kong, lutando posteriormente contra a especulação fundiária após ter criado, em 2011, a Liga Terra e Justiça (Land and Justice League). Adepto da bicicleta e do decrescimento econômico, ele nos explica que não confia mais na ala pandemocrata, sem por isso ser independentista. Ele se situa entre os dois: “É preciso redefinir uma nova ordem constitucional por meio de um referendo, deixando abertas várias opções. A identidade honconguesa é múltipla, pois somos todos originários de diferentes estratos da imigração que nunca acabou”. Hoi-dick não é violento e, para ele, o apoio das classes populares é essencial: “A democracia é simplesmente o voto. O que as pessoas querem é ter o controle de sua vida”. Como Law, ele pensa que é necessário “ampliar o campo de batalha para toda a Ásia oriental”. Em 4 de setembro de 2016, ele foi eleito para o Conselho Legislativo em sua circunscrição dos Novos Territórios com maior votação do que qualquer outro candidato (84 mil), o que lhe valeu o apelido de “rei dos votos”.
Três outros localistas rotulados “independentes” foram eleitos naquela eleição: Nathan Law e Edward Yiu Chung-yim, assim como Lau Siu-lai, universitária engajada na defesa dos vendedores ambulantes e das feiras livres do bairro popular de Mongkok. Os três são filiados ao grupo pandemocrata, que, ainda que esteja em baixa, tem vinte cadeiras (de setenta). Juntos, eles atingem a importante cifra dos 24 eleitos, necessária para impedir a promulgação de textos de lei que os deputados pró-Pequim poderiam impor.
Democratas fragilizados no Parlamento
Entre os independentistas, que dispõem de quatro cadeiras, dois membros do Youngspiration, Baggio Leung e Yau Wai-ching, ao prestarem juramento, em 11 de outubro de 2016, chamaram atenção erguendo uma faixa “Hong Kong não é a China”, pronunciando a palavra “China” com desprezo e dizendo: em vez de “Republic of China”, “Refucking of China”… O juramento deles foi imediatamente rejeitado. Em Pequim, o comitê permanente da Assembleia Nacional Popular fez sua própria interpretação da Lei Básica de Hong Kong, arbitrando: “Aquele que pronuncia intencionalmente palavras que não correspondem à forma do juramento prescrito pela lei ou presta juramento de uma maneira que não é sincera ou solene será considerado alguém que se recusa a prestar juramento. O juramento feito desse modo não é válido, e a pessoa que o presta é desqualificada para ocupar [suas] funções”. Em Hong Kong, o tribunal ratificou essa interpretação. Os eleitos não puderam, então, ocupar suas cadeiras.
Aliás, eles não são os únicos a não se deterem estritamente ao texto. É o caso de Leung Kwok-hung, conhecido como “Long Hair”, figura importante da ala pandemocrata, que abriu e ergueu um guarda-chuva amarelo e pediu explicações do governo central pelo massacre na Praça da Paz Celestial, mas também de Lau Siu-lai, que destacou cada sílaba do texto, tornando-o incompreensível, de Law, que pronunciou a palavra “República” com uma entonação interrogativa, e de Yiu Chung-yim, que reivindicou um verdadeiro sufrágio universal. Indiciados na justiça, eles não podem mais ocupar suas cadeiras, conforme decisão do tribunal publicada em 14 de julho, que se refere à Lei Básica, mas também aos princípios da jurisprudência da common law, o que será mais difícil de combater por meio de apelação. Novas eleições só poderão ocorrer 21 dias depois que todas as vias de recursos forem esgotadas. Enquanto isso, a ala democrata se encontra reduzida a vinte cadeiras, impossibilitada de exercer seu direito de veto.
O caminho está livre para Carrie Lam, eleita com base no antigo sistema de votação. Alta funcionária da colônia britânica durante dezenove anos, ela passou a atuar a serviço de Pequim. Seu plano de governo parece traçado. Ele deverá comportar a adoção de uma lei antisseparatista, prevista pelo artigo 23 da Lei Básica, para poder exercer suas atividades contra os opositores políticos… Não é certo que ela arrisque. O localismo está se enraizando. Ele já tem o apoio das classes médias. Será que vai obter o das classes populares?
*Jean-Jacques Gandini é pesquisador independente.