O dramático panorama do financiamento do ensino
Contra postulados que veem a educação como um investimento como outro qualquer, aspecto reforçado na gestão Meirelles-Temer com o congelamento de gastos para os próximos vinte anos, é importante olhar os dados desse financiamento no Brasil e na América Latina e Caribe
Uma das poucas coisas sobre as quais há um consenso mundial é a importância da educação. As famílias esforçam-se para garantir a melhor instrução possível para suas crianças e jovens. Já as pesquisas acadêmicas mostram o direito à educação como a porta de acesso para a garantia dos demais direitos. E até mesmo economistas que só pensam em lucros e dividendos reforçam o papel do ensino como fator de desenvolvimento econômico e aumento da renda. Em outras palavras, para estes últimos, com base na Teoria do Capital Humano,1 a educação é um investimento como qualquer outro, que deve ser realizado caso haja a possibilidade de retorno.
Nessa perspectiva, ela deixa de ser um direito universal, a ser assegurado pelo Estado, e passa a ser entendida como um serviço, mais uma mercadoria a ser regulada pelo “deus mercado”. E aqui começam os problemas: em um mundo em que o setor financeiro amplia seu poder na definição das políticas públicas, a visão da educação como um investimento econômico passa a ser hegemônica. Segundo essa abordagem, quando muito, deve-se garantir a gratuidade nos anos iniciais do ensino fundamental; para os anos seguintes, em especial na educação superior, propõe-se a cobrança de mensalidades e, no caso daqueles que não podem pagar, a receita é o financiamento estudantil, como acontece no Chile, onde não existe ensino superior público gratuito. Aliás, esse princípio já constava na Constituição Federal brasileira de 1967, da ditadura militar, quando tal abordagem econômica comandava o país.
Outro ponto de honra nesse tipo de abordagem despontou nos anos FHC e agora retoma com força redobrada na gestão Temer-Meirelles: é o postulado de que mais recursos (melhores salários aos profissionais da educação, equipamentos, redução no número de estudantes por turma etc.) não fazem diferença na qualidade do ensino.2 E “qualidade de ensino” para essa turma é sinônimo de notas em testes padronizados, como a Prova Brasil, o Enem, o Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa) e tantos outros aos quais são submetidos os estudantes do Brasil e do mundo. Para melhorar a qualidade, ou seja, a nota obtida nesses testes, receitam pouco dinheiro e muita competição entre as escolas. Ou seja, mais mercado, mais “livre” barganha entre pais e escolas. E, mais uma vez, o Chile é o grande timoneiro, por meio do sistema de “vouchers”, em que, em tese, a família escolhe a escola em que vai matricular seu filho ou filha. É importante lembrar que todas essas reformas educacionais foram colocadas em prática em plena ditadura de Augusto Pinochet e até hoje o regime que lhe seguiu tenta lidar com suas consequências, como o aumento da desigualdade no acesso à educação e a incapacidade das famílias de pagar o financiamento estudantil no ensino superior. Aliás, o mesmo acontece nos Estados Unidos, onde se vive uma “bolha” de inadimplência. Já o Brasil caminha celeremente nessa direção com o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), cuja inadimplência supera os 50% e cujo custo aos cofres públicos é superior a tudo o que se gasta com a folha de pagamento das universidades federais.3
Outra característica interessante é que todas essas teorias, que trazem receitas de mercado para a educação, se originam em países ricos, onde, curiosamente, não fazem muito sucesso. Nesses locais, a gratuidade do ensino é a regra e os valores gastos por estudante no sistema público são muito superiores àqueles praticados nos países com menos recursos, ou remediados, como o Brasil. Aqui, seus discípulos locais, com enorme espaço na mídia, sempre afirmando que o país gasta o suficiente na rede pública de educação básica, não se envergonham em matricular seus filhos em escolas particulares, cujas mensalidades superam R$ 4 mil, um valor dez vezes superior ao gasto médio da rede pública de ensino. Para jogar luz nesse campo, a Campanha Latino-Americana pelo Direito à Educação (Clade) lançou em setembro de 2017 o Sistema de Monitoramento do Financiamento do Direito Humano à Educação na América Latina e no Caribe (http://monitoreo.campanaderechoeducacion.org), que reúne dados do financiamento educativo público em vinte países da região referentes ao período de 1998 a 2015. Com esse instrumento, a Clade procura dotar os segmentos da sociedade civil que lutam por uma escola pública de qualidade de uma ferramenta útil de reivindicação e pressão política junto aos governos nacionais com base em indicadores concretos sobre o financiamento da educação. A Clade é uma rede plural de organizações da sociedade civil, com presença em dezesseis países da América Latina e do Caribe, que tem como missão defender o direito humano a uma educação transformadora pública, laica e gratuita para todas e todos, durante toda a vida e como responsabilidade do Estado.
As informações do Sistema de Monitoramento podem ser consultadas de maneira individual para cada país ou de modo comparativo para toda a região e estão organizadas em três dimensões de análise: esforço financeiro público, disponibilidade de recursos por pessoa em idade escolar e equidade no acesso escolar.
A primeira dimensão (esforço financeiro público) refere-se à quantidade total de recursos que cada Estado destina ao sistema educativo público, como parte do orçamento nacional total e da riqueza produzida no país (PIB). A segunda dimensão (disponibilidade de recursos) centra-se nos recursos públicos disponíveis para cada pessoa em idade escolar. Esse indicador é um avanço em relação às medidas utilizadas por organismos como Unesco e Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), que consideram apenas o valor gasto com estudantes incluídos no sistema escolar. A Clade, por sua vez, considera todas as pessoas matriculadas na escola (pré-escola, ensino fundamental e ensino médio) e também aquelas da faixa etária correspondente que estão fora do sistema educativo. A terceira dimensão aborda a equidade no acesso escolar, observando-se em particular a diferença entre as taxas de acesso à escola do quintil de renda mais alta e do quintil de renda mais baixa da população de 13 a 19 anos de idade em cada país. Essa dimensão traça as desigualdades históricas que operam nos sistemas públicos de educação no que diz respeito ao acesso escolar para jovens de famílias com diferentes níveis de renda.
Além de apresentar o valor dos indicadores, o sistema de monitoramento mostra, para cada país, o quanto ele se distancia de um parâmetro de referência considerado adequado. Assim, para o componente do gasto público em educação em relação à despesa total dos Estados, o parâmetro utilizado é de 20%, valor estabelecido no Marco de Ação para a Educação 20304 e acordado entre os Estados da região na Reunião Regional de Ministros da Educação da América Latina e do Caribe que aconteceu em Lima, Peru, em 2014. Nessa mesma reunião, os Estados da região definiram como meta alcançar um gasto público de 6% do PIB em educação. Portanto, para a dimensão esforço financeiro público, os parâmetros são 20% do gasto público total e 6% do PIB. Já para a dimensão disponibilidade de recursos, o parâmetro utilizado foi de US$ 7.221,60 anuais por pessoa em idade escolar, que é o valor médio investido por estudante pela metade dos países da OCDE com menor PIB por habitante.5 Por fim, para a dimensão equidade no acesso escolar, o parâmetro seria uma diferença igual a zero entre os níveis de acesso escolar dos quintis de jovens de 13 a 19 anos, com maiores e menores recursos da população urbana (os detalhes metodológicos de cada uma das dimensões do sistema de monitoramento estão explicados no site).
Nos gráficos 1, 2 e 3 encontramos uma visão geral dos indicadores relacionados ao esforço dos países e aos recursos disponíveis por pessoa em idade escolar. Por limitação de espaço não será discutida a dimensão equidade, mas as informações encontram-se no site.
O Gráfico 1 apresenta quanto o gasto público em educação representa da despesa total dos governos. Constata-se que apenas seis países atingem o parâmetro dos 20% do gasto público total como investimento em educação (Guatemala, Costa Rica, Paraguai, Nicarágua, Venezuela e Chile), ficando a Guatemala com uma participação de 24,1%, em uma melhor situação, e o Equador, no polo extremo, com 12,8%. O Brasil, com 16%, situa-se 20% abaixo da meta estabelecida.
Contudo, de pouco adianta um grande comprometimento do gasto público total com a educação se o país apresenta uma carga tributária baixa em relação ao PIB. Por isso, no Gráfico 2, analisa-se quanto esse gasto público em educação representa do PIB de cada país. E aqui o exemplo da Guatemala volta a ser interessante, pois, muito embora esse país destine 24,1% de sua despesa total para a educação pública, esse esforço representa apenas 2,96% do PIB, ou seja, menos da metade dos 6% do PIB, que são o valor de referência. Apenas cinco países (Cuba, Bolívia, Costa Rica, Venezuela e Brasil) atingem essa meta, ficando Cuba na melhor posição.
Ainda sobre o Gráfico 2, chama atenção o fato de dez países não atingirem 5% do PIB e de dois deles não atingirem nem 3% do PIB aplicados em educação pública (Guatemala e República Dominicana). Esse indicador mostra a importância da existência de sistemas tributários que permitam aos Estados dispor de recursos para a aplicação de políticas públicas. Países como Dinamarca, Finlândia e Suécia, que conseguiram construir um Estado de bem-estar social, possuem uma carga tributária acima de 40% do PIB. Já a maioria dos países da América Latina e do Caribe apresenta uma carga abaixo de 20% do PIB. O Brasil fica em uma faixa intermediária, com uma carga tributária de 32% do PIB.6
Finalmente, não basta um país destinar à educação pública um percentual adequado em relação ao PIB se o valor desse PIB é pequeno quando comparado à sua população e, principalmente, quando confrontado com seus desafios educacionais. E é nesse aspecto que a situação se configura dramática para os países da região, como mostra o Gráfico 3. Este apresenta o valor disponível por criança ou jovem em faixa de escolarização (pré-escola, ensino fundamental e ensino médio) medido em dólares PPP (Poder de Paridade de Compra, na sigla em inglês), um indicador que busca tornar comparável os gastos nos diferentes países.
Lembrando que para esse indicador o valor desejável adotado pela Clade é de US$ 7.221,60 por criança ou jovem em faixa de escolarização, percebe-se o quão distante os países da região estão do valor gasto por estudante dos países com menor renda per capita da OCDE. Apenas Costa Rica e Chile estão ligeiramente acima da metade do valor de referência, e doze países estão abaixo de um terço desse parâmetro. No Brasil, é comum ouvir de diferentes governos que o país gasta em educação um percentual do PIB equivalente ao dos países ricos, o que é verdade, mas, quando se analisa o recurso disponível, informação que de fato importa, constata-se um valor inferior à metade daquele disponível nos países com menos recursos da OCDE. Por isso, é fundamental, nas análises comparativas, considerar o conjunto dos três indicadores, ressaltando-se que aquele que realmente impacta no dia a dia das escolas é o recurso disponível (Gráfico 3).
Os dados apresentados mostram a importância do tamanho da economia, medida em especial por meio de seu PIB por habitante, para a garantia de recursos adequados para suas políticas públicas. Por exemplo, a considerada baixa carga tributária de 26% do PIB dos Estados Unidos propicia aos governos cerca de US$ PPP 14,5 mil por habitante; já a carga tributária de 32% do PIB no Brasil, considerada alta pelos economistas neoliberais, significa apenas US$ PPP 5 mil por habitante. Fica evidente, assim, o mal que fazem, aos países da região, as políticas recessivas que estão sendo colocadas em prática em vários deles. No caso do Brasil, retroagiu-se em 2016 ao PIB por habitante de 2008; em outras palavras, nove anos de crescimento perdidos.
O sistema de monitoramento lançado pela Clade também permite analisar a evolução das diferentes dimensões para o conjunto da região. Um fato bastante positivo, por exemplo, é que Argentina, Brasil, Chile, Costa Rica, México, Uruguai e Venezuela aumentaram significativamente a disponibilidade de recursos por pessoa em idade escolar desde 1998. Nos casos de Argentina e Brasil, surpreende que os montantes disponíveis por pessoa em idade escolar praticamente duplicaram entre o fim dos anos 1990 e os dois últimos triênios disponíveis (2010-2012 e 2013-2015 para a Argentina; 2007-2009 e 2010-2012 para o Brasil).
No entanto, como já comentado, mesmo os países que apresentaram os maiores investimentos no período estudado ainda estão longe de atingir o valor de referência. O país mais bem colocado é a Costa Rica, que dedicou US$ 3.860,11 para cada pessoa em idade escolar, por ano, no triênio 2013-2015, valor que é praticamente a metade da referência.
Um rápido olhar sobre o Brasil
O Brasil, como se pode ver no item anterior, não faz bonito no que se refere ao esforço no financiamento da educação. Um resultado que surpreende, considerando que já estamos no segundo Plano Nacional de Educação (PNE) aprovado no período pós-ditadura. O primeiro deles (Lei n. 10.172/2001) determinava a ampliação dos gastos públicos no ensino público para 7% do PIB. Contudo, o veto do presidente Fernando Henrique Cardoso inviabilizou o cumprimento dessa meta. Já o atual PNE (Lei n. 13.005/2014) estabelece um compromisso ainda maior com o financiamento da educação: atingir 7% do PIB até 2017 e 10% em 2024 (meta 20 do PNE). Além disso, determinava a criação, até 2016, do Custo Aluno Qualidade inicial (CAQi), um parâmetro de financiamento que visa assegurar condições básicas de financiamento para todas as escolas públicas do Brasil.7 Se não houve veto à meta de financiamento do atual PNE, as políticas recessivas do início do segundo governo Dilma, acentuadas ao extremo pela gestão Temer-Meirelles, têm inviabilizado o avanço esperado no financiamento educativo público.
O Gráfico 4 mostra a evolução, em termos reais, das despesas totais da União com a manutenção e o desenvolvimento do ensino, assim como os gastos com a educação superior.
Os dados indicam que, desde 2012, a despesa total com educação vem caindo em termos reais e, no caso da educação superior, essa queda acontece desde 2014. No total, de 2012 a 2016 houve redução de R$ 14,2 bilhões, atingindo mais a educação básica. No caso da educação superior, a queda foi menor, mas seus efeitos são igualmente graves, pois a rede federal se encontra em um momento de crescimento. Por outro lado, como indica a Tabela 1, no mesmo período assistiu-se a um crescimento impressionante dos recursos públicos destinados às universidades privadas por meio do Fies.
Os dados apontam para a mobilização de recursos públicos ao sistema privado de educação superior, seja por despesas diretas, seja com base em subsídios, uma vez que o governo federal obtém esses recursos a juros de mercado e cobra de estudantes em valores reduzidos. Impressiona o total de recursos mobilizados pelo Fies; em 2016, este já superou o gasto da União com manutenção e desenvolvimento do ensino na educação superior. De forma análoga, a partir de 2014 começou-se a reduzir os recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), principal fonte de financiamento da educação básica, como mostra o Gráfico 5.
O que preocupa em relação ao Fundeb é que seus recursos apresentam uma queda justamente quando as matrículas de estudantes que se beneficiam do fundo deveriam estar crescendo em função das metas do PNE 2014-2024, que implicam a ampliação da oferta em todas as etapas e modalidades, assim como a melhoria nas condições de oferta. Ou seja, são mais estudantes, para um bolo total de recursos em queda. Na prática, estados e municípios não estão ampliando suas matrículas e, para reduzir custos, fecham-se escolas e aumenta-se o número de estudantes por turma.
Não bastassem os efeitos predatórios da recessão econômica para o financiamento da educação, o governo Temer-Meirelles, por meio da Emenda Constitucional n. 95/2016, que congela os gastos primários do governo federal por vinte anos, jogou por terra qualquer possibilidade de efetivação do atual PNE, uma vez que as despesas com educação, assim como com as demais políticas sociais, não terão nenhum crescimento real, podendo inclusive sofrer redução. Além disso, estimulados pelo governo federal, estados e municípios estão colocando em prática suas versões locais da EC 95, particularmente porque a aderência a suas normas draconianas é condição para a rolagem de suas dívidas junto à União. Essas medidas acabam com a vigência do artigo 212 da Constituição Federal, que estabelece a vinculação de uma parcela da receita de impostos para a manutenção e o desenvolvimento do ensino. Somente a ditadura de Getúlio Vargas e a militar fizeram o mesmo.
Para os milhões de pessoas jovens e adultas que têm o direito constitucional à educação pública de qualidade e veem seu futuro negado não há outra saída que não passe pela revogação da EC 95 e pela luta contra a recessão econômica. Luta que é também da população brasileira que atuou pela aprovação do PNE 2014-2024 e agora vê esse projeto de mudança sustentável da educação ser destruído por um governo que não tem legitimidade e está comprometido com as forças mais retrógradas do país. Mas 2018 está só no começo.
*José Marcelino de Rezende Pinto é professor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP) e vice-diretor da Campanha Latino-Americana pelo Direito à Educação (Clade) Brasil.