O mito da biossegurança
Com certos vírus ultrapassando a barreira entre espécies, como parar as cada vez mais preocupantes epidemias na pecuária? A resposta sanitária internacional parece ser dobrar a aposta no modelo industrial. As medidas preconizadas ameaçam a saúde e os ecossistemas, enquanto condenam a agricultura familiar
Primeiro eles pararam de comer, em seguida tiveram uma forte febre. Criador de Jiangxi, no sudeste da China, Chen Yun possuía 10 mil porcos. Em uma semana, todos morreram da peste suína africana.1 Entre 2018 e 2019, o vírus acometeu todas as províncias do país, levando à eliminação da metade do gado porcino nacional. Originário da África, onde teria sido descoberto há mais de cem anos, o vírus dessa peste continua inofensivo para o ser humano, mas pode causar até 100% de mortalidade nos porcos. A partir da China, o vírus se propagou pelo Sudeste Asiático. Já causando estragos na Europa central, foi detectado na Bélgica em 2018. A França e seus vizinhos temem desde então sua chegada. Para erradicar a epidemia, que avança, o Estado chinês apoia a construção de fazendas de no mínimo quinhentos porcos, seguindo os preceitos da “biossegurança”. “As fazendas familiares serão levadas ao desaparecimento, em benefício das criações industriais”, explica Jian Huang, especialista do Instituto Nacional do Porco, da França.2 A China aplica assim a resposta sanitária preconizada pelas instâncias internacionais em matéria de epizootias (epidemias que atingem animais), confirma Wantanee Kalpravidh, responsável pela saúde animal na Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO). Ela nos apresenta a classificação das fazendas segundo sua suposta resistência ao risco infeccioso. “O setor 1 é uma criação densa e fechada, com uma produção intensiva e integrada à indústria. O setor 2, uma grande criação intensiva e fechada, mas não integrada à indústria. O setor 3 é uma fazenda intensiva média não integrada à indústria, e o setor 4, uma criação extensiva onde os animais, menos numerosos, vivem no exterior com, quase sempre, uma mistura de espécies.” Esses quatro setores correspondem a níveis decrescentes de biossegurança, do mais elevado ao mais fraco. As fazendas familiares estão sendo levadas ao desaparecimento, em benefício das criações industriais (Fred Lehmann/Pixabay) “Aumentar a produtividade” Segundo essa doutrina, a propagação de um vírus fica limitada quando os animais são criados em estabelecimentos fechados ou atrás de barreiras que impeçam qualquer contato com animais selvagens, suscetíveis de transmitir micróbios patogênicos. Devem ser nutridos com alimentos comprados no comércio e de qualidades sanitárias garantidas, em vez de produtos da fazenda. A biossegurança condiciona não apenas os gestos do criador em matéria de higiene (lavagem das mãos, troca de roupa na entrada de cada instalação, desinfecção dos veículos), mas também – o que levanta questões – as orientações técnicas e econômicas de sua exploração. Essa abordagem, que leva a normalizar e compartimentar a produção, cria o impasse quanto ao risco causado pela escala industrial e pela concentração de animais em locais exíguos. As criações em massa são então apresentadas como uma solução para o problema que contribuíram para criar, pois, se a destruição da natureza e dos habitats selvagens – quase sempre para fins industriais – levou à transmissão de novos vírus,3 a aceleração das epizootias deve muito também à industrialização da pecuária, como sublinham diversos estudos.4 Na Tailândia, por exemplo, dados reunidos em 2004 indicam que “as probabilidades de epidemias de H5N1 e das infecções eram significativamente mais elevadas nas explorações avícolas comerciais de grande escala do que nos galinheiros”.5 Nas instalações industriais, a fraca diversidade genética e as recorrências maciças a tratamentos profiláticos provocam um enfraquecimento imunológico, ao passo que a concentração geográfica de criações, a densidade de animais e a multiplicação dos transportes favorecem a difusão de agentes patogênicos. Esse episódio da peste suína não é inédito. Ao longo dos trinta últimos anos, as criações de porcos passaram por diversas crises: diarreia epidêmica suína, síndrome disgenésica (malformação de órgãos) e respiratória do porco, gripe H1N1. As criações de vacas experimentaram um ressurgimento da tuberculose bovina; as criações de aves, novos surtos de gripe H5N1 altamente virulentos; as de carneiros, um ressurgimento da febre aftosa etc. Segundo a Organização Mundial da Saúde Animal (criada em 1924 sob o nome de Gabinete Internacional das Epizootias, do qual conserva o acrônimo, OIE), o número de epidemias que atingem as criações quase triplicou ao longo dos últimos quinze anos. Isso não constitui um perigo apenas para a vida dos animais, mas também para a humanidade, pois algumas dessas doenças podem ser transmitidas ao homem – em especial a gripe H5N1, ainda que os casos tenham sido mais raros do que se temia. “‘Quantos quilos de frango será que posso produzir? Quantos ovos?’ Os criadores devem se fazer essas perguntas”, prossegue Kalpravidh. “Devem aumentar a produção e a produtividade para obter mais benefícios, o que gera uma receita suplementar que lhes permite investir na biossegurança.” Para designar essa posição tomada em favor do desenvolvimento intensivo da pecuária em escala mundial, teríamos podido utilizar o termo “industrialização”. Ao oferecer-lhe certa respeitabilidade, o termo “biossegurança” se torna a referência indiscutível de um modelo econômico e social imposto. Seu enfoque universal se dirige a todas as criações do planeta. “Com a gripe aviária de 2015-2016, as medidas de biossegurança se tornaram obrigatórias para os detentores de aves”, recorda um boletim da Academia Veterinária Francesa, fazendo referência à portaria publicada pelo Ministério da Agricultura em 8 de fevereiro de 2016.6 Os autores anunciaram em seguida: “No futuro, todas as cadeias alimentares, sejam elas extensivas ou intensivas, deverão integrar medidas de biossegurança”. Eles reconhecem que a integração dessas medidas às transumâncias [migrações de pasto] “fica, porém, a ser construída”. Os criadores de animais em circuito curto ou ao ar livre encontram dificuldades para sobreviver. Ainda que menos expostos às contaminações, em razão da densidade mais baixa dos rebanhos e de ocorrerem menos interações com o exterior, são submetidos às mesmas normas. No ramo dos porcos, por exemplo, a regulamentação impõe desde 2020 uma cerca de 1,30 metro de altura ao redor das pastagens, bem como a desinsetização e a desratização do local de material por uma empresa externa a cada dois meses. Criadora em Haute-Garonne (França), Anne-Marie Leborgne fez o cálculo: “Para rentabilizar o investimento para a introdução das normas de biossegurança, preciso aumentar meus preços”. Na França, apenas um porco a cada vinte é criado ao ar livre. Essa agricultora de 39 anos vendia localmente 2 mil quilos de porco orgânico por ano. Para ter um rendimento satisfatório, trabalha meio período como professora na escola de seu vilarejo, Montbrun-Bocage, ao sul de Toulouse. Dois meses após a formação em biossegurança na Câmara de Agricultura, decidiu parar a criação. “Não me vejo vendendo uma costela de porco a 18 euros o quilo.” Para sustentar os trabalhos de biossegurança, o conselho regional e a União Europeia oferecem uma subvenção que representa 30% do custo do material. Mas esta parece insuficiente a Benoît e Isabelle Dubois, dois criadores montanheses que estimam suas despesas em 400 mil euros, “sem contar o tempo de trabalho e de manutenção”. Eles não ganharam tanto em trinta anos de carreira. “Após pagar nossos custos, nos sobra 500 euros por mês para viver em duas pessoas.” Eles criam seus porcos em Brie (departamento de Ariège), em 90 hectares. “Com rochas em algumas partes e desníveis de 100 metros em 300 metros de comprimento, instalar uma cerca requer proeza.” Eles continuam a trabalhar em suas terras secas, mas, aos 60 anos, creem ser os últimos a criar porcos aqui. Não contratam estagiário para não criar falsas promessas em um jovem “de um projeto de instalação impossível”. Enquanto as criações ao ar livre se veem enfraquecidas pela biossegurança, as indústrias de carne preservam sua economia, pois, durante as crises sanitárias, algumas criações escapam das restrições de deslocamento. Apenas as fazendas do setor 1 que se conformam às medidas de controle e de segurança podem obter o precioso passe livre por meio dos “compartimentos”, ou seja, populações animais distintas autorizadas à venda. Adotada por unanimidade em 2004 pelos 182 Estados-membros da OIE, a “compartimentação” foi em seguida integrada ao texto de lei de diversos países – Chile, Estados Unidos, Reino Unido, China, Austrália... – e, na França, por uma portaria ministerial de 16 de fevereiro de 2016, que favorece a grande indústria. É o caso da France Poultry, por exemplo. Antes conhecida como Doux, essa empresa da Bretanha obteve o status de compartimento em 2017. Ela abate hoje 340 mil aves por dia e enche a cada semana de 70 a 80 contêineres no porto de Brest, sendo 93% de sua produção exportada. Esse modelo de indústria agroexportadora conta com instalações de criação de 35 mil pintinhos, cada um dispondo de 480 centímetros quadrados – ou seja, uma superfície inferior à de uma folha A4... Esses estabelecimentos pertencem aos criadores sob contrato com a France Poultry; comprometem-se a trabalhar exclusivamente para a empresa, segundo um manual de especificações muito estrito de biossegurança que faz delas “bolhas sanitárias”, segundo o dirigente da empresa, François Le Fort. Um estudo publicado em 20187 mostrou, no entanto, que os contatos frequentes entre as granjas de um mesmo compartimento implicam diversas possibilidades de transmissão do vírus em caso de epidemia de gripe aviária. Além disso, embora a compartimentação possibilite evitar as contaminações pela fauna selvagem, estas podem ocorrer por outros vetores de troca com o exterior: pessoal, água, ar, comida. Ainda que todos esses fluxos sejam enquadrados por normas estritas, a prática cotidiana revela falhas. Desse modo, estudando oito fazendas que aplicam um protocolo de biossegurança, que havia selecionado com as associações de avicultores de Quebec, Manon Racicot, pesquisadora do Departamento de Epidemiologia da Universidade de Montreal, listou não menos que 44 erros frequentes.8 A densidade dos animais, a quantidade das entradas e saídas desses sistemas, a dependência de múltiplos atores da cadeia de produção e uma má compreensão dos princípios sanitários pelos empregados invalidam as pretensões da biossegurança. A “bolha sanitária” continua sendo um mito. Ao não imporem nenhum limite à indústria, a biossegurança e seus grupos livres da lei ordinária ameaçam o equilíbrio sanitário dos animais e dos homens. Representam também uma deriva democrática, o “caso a caso” substituindo o interesse geral. No processo de reconhecimento de um compartimento para a exportação, ocorrem duas etapas que transformam a administração em servidora dos industriais: uma granja deve primeiro ser aprovada pelas autoridades veterinárias de seu próprio país; em seguida, cada país importador assina um acordo bilateral. Durante essa segunda etapa, o Estado exportador negocia com o país importador a fim de fazê lo aceitar as candidaturas. A diplomacia carrega assim a bandeira de uma companhia privada. O Estado não apoia mais sua população agrícola, um ramo de alimentos ou uma particularidade regional: torna-se embaixador de uma marca e de seus produtos. Quando a França advoga pelas atividades da France Poultry, ela defende o interesse público ou interesses privados? Nem a OIE nem o Ministério da Agricultura quiseram responder a essa pergunta. *Lucile Leclair é jornalista. Autora de Pandémies, une production industrielle (Pandemias, uma produção industrial), Seuil, Paris, 2020. 1 Huifeng He, “China’s ‘heartbroken’ pig farmers torn apart by pork price spike and African swine fever” [Os criadores de porco de “coração partido” da China, quebrados pelo aumento do preço da carne suína e pela febre suína africana], South China Morning Post, Hong Kong, 12 set. 2019. 2 “Des experts dressent un sombre tableau de l’élevage porcin chinois” [Especialistas criam um quadro sombrio da criação de porco chinesa], AFP, 11 set. 2019. 3 Ler Sonia Shah, “Contre les pandémies, l’écologie” [Contra as pandemias, a ecologia], Le Monde Diplomatique, mar. 2020. 4 Jessica H. Leibler, Marco Carone e Ellen K. Silbergeld, “Contribution of company affiliation and social contacs to risk estimates of between-farm transmission of avian influenza” [Contribuição da afiliação de empresas e contatos sociais para estimativa de riscos da transmissão da gripe aviária entre fazendas], PLOS One, 25 mar. 2010. Disponível em: https://journals.plos.org. 5 Jay P. Graham et al., “The animal-human interface and infectious disease in industrial food animal production: Rethinking biosecurity and biocontainment” [A interface animal-humano e as doenças infecciosas na produção da indústria de alimentos de origem animal: repensando biossegurança e bioconcentração], Public Health Reports, v.123, n.2 (suplemento), maio-jun. 2008. 6 Didier Guériaux, Alexandre Fediaevsky e Bruno Ferreira, “La biosécurité: investissement d’avenir pour les élevages français” [A biossegurança: investimento do futuro para as criações francesas], Bulletin de l’Académie vétérinaire française, n.2, Paris, 2017. 7 T. J. Hagenaars et al., “Risk of poultry compartments for transmission of highly pathogenic avian influenza” [Risco dos compartimentos de aves para a transmissão de gripe aviária altamente patogênica], PLOS One, 28 nov. 2018. O modelo de simulação do estudo foi elaborado para uma região densamente populosa de criações, como a Bretanha. 8 Manon Racicot et al., “Description of 44 biosecurity errors while entering and exiting poultry barns based on video surveillance in Quebec, Canada” [Descrição de 44 erros ao entrar e sair de celeiros de aves baseado em vídeos de câmeras de segurança em Quebec, Canadá], Preventive Veterinary Medicine, v.100, n.3-4, jul. 2011.