Os usos de Johann Sebastian Bach
De 1750, ano da morte do compositor, multi-instrumentista, professor, cantor e maestro, até os dias de hoje, a herança musical de Johann Sebastian Bach, que instalou as bases da tonalidade, jamais parou de frutificar – uma vitória da “música absoluta”, frequentemente celebrada, interpretada, recuperada…
Em 31 de julho de 1750 enterraram em Leipzig “um homem de 67 anos, o senhor Johann Sebastian Bach, mestre de capela e diretor de coro da Escola Saint-Thomas, falecido na terça-feira. Quatro filhos menores, carro fúnebre grátis”.1
A família do compositor se mudou. Wilhelm Friedmann, o filho predileto, dirigia a música da cidade de Halle; Carl Philipp Emanuel era o cravista da corte do rei da Prússia, Frederico, o Grande… Os mais velhos dividiram os bens, venderam os cravos, os violinos e as cafeteiras. Anna Magdalena, a madrasta, viveu “o lamentável estado de viúva”2 durante dez anos, em seguida morreu, discretamente, na miséria. Ninguém escreveu uma ode fúnebre.
É interessante imaginar o velho Bach esquecido e pensar que sua Paixão segundo São Mateus, dirigida em 1829 pelo jovem Felix Mendelssohn, em Berlim, foi uma ressurreição. Na verdade, o evento foi um clímax. Embora a fama do “cantor de Leipzig” ultrapassasse pouco as fronteiras da Saxônia na época de sua morte, ainda que não fosse popular, ele era conhecido. Seus filhos, alunos, músicos, colecionadores e mecenas propagaram sua posterioridade até o “novo dia mais radiante”3 de 1829, que fez Berlim entrar na história da música.
Deve-se imaginar que, na época da morte de Bach, o reino da Prússia balançava entre o humor galante, o pietismo e o Empfindsamkeit (sentimentalismo). Escala menor e audácia harmônica, dor e paixão! Nas cortes principescas ou salões da burguesia, evocava-se o Iluminismo e os progressos da indústria. O rei tocava flauta e escrevia a Voltaire. Após a morte de Bach, Carl Philipp Emanuel, bem mais famoso que seu pai, deu entrada no registro da primeira edição de A arte da fuga. Foram vendidos trinta exemplares. Embora estivesse ocupado em consolidar o catálogo de suas próprias obras, publicou o Obituário, muito útil para as futuras biografias de seu pai. Mas a herança musical se dispersou. Johann Christian deixou os manuscritos em Berlim quando partiu para Milão. Wilhelm Friedmann, generoso, deprimido, pobre e que não tocava mais nenhuma nota da música de seu pai, doou-os ou vendeu-os – principalmente ao pai de Mendelssohn. Carl Philipp Emanuel publicaria ainda um terço dos Corais a quatro vozes e em seguida também venderia os manuscritos. Seriam precisos dois séculos para recuperar tudo o que se dispersara.
Felizmente, Johann Philipp Kirnberger, seu aluno, lembrou-se do que Bach lhe dizia: “Eu não exijo de você nada além da garantia de que irá transmitir essas poucas coisas a pessoas boas”. Os alunos, estudantes e visitantes iriam compartilhar seus ensinamentos, tocar suas obras e fazer circular os manuscritos. Kirnberger, que se tornou mestre de capela na corte de Frederico, o Grande, ensinaria composição a Ana Amália, irmã do rei. Aluna dos filhos de Bach, ela se apaixonou pelo pai deles, organizou concertos, colecionou os manuscritos e constituiu uma incrível Bachbibliothek, hoje conservada em Berlim. Ana Amália se lembrava sem dúvida da visita do velho Bach a Potsdam em 1747. O rei, que tocava flauta, executou a Oferenda musical que o cantor lhe enviou.
Em 1782, Mozart escreveu de Viena, capital repleta de arte: “Eu vou todos os domingos ao meio-dia à casa do barão Van Swieten, onde só tocamos Haendel e Bach”.4 José II, o imperador-músico, reinava. Novas leis e decretos. Gottfried van Swieten, formidável diplomata melômano, ex-embaixador da Áustria em Bruxelas, Paris, Varsóvia e Berlim, apoiava Haydn, Mozart e Beethoven, que aos 12 anos tocava O cravo bem temperado. Sua Gesellschaft der Associerten, reunião de nobres melômanos, reunia toda a nata musical de Viena. Swieten faria tanto por Bach que Johann Forkel, em 1802, dedicou-lhe Johann Sebastian Bach, sua vida, arte e obra, a primeira biografia do compositor. No subtítulo: “Para os patriotas admiradores da autêntica arte musical”.
Enfim, no começo do século XIX, não havia um organista, cantor ou diretor de música que não possuísse pelo menos uma partitura de Johann Sebastian Bach.
Voltemos a Berlim, em 11 de março de 1829, para o que a imprensa chamaria de “a grande festa da religião e da arte”. Cem anos após sua criação, se reviveria a Paixão segundo São Mateus. O rei da Prússia e a alta roda de Berlim se sentaram na sala da Singakademie, famosíssima associação coral. Mendelssohn reescreveu e editou a obra. Seu professor já se gabava de ter feito o mesmo em uma carta a Goethe, em 1827: “Foi assim que fiz o arranjo, para meu uso pessoal, de muitas cantatas, e meu coração me disse que lá de cima o velho Bach me aprovava com um movimento de cabeça: ‘Sim, está certo!’”. Talvez. Embora o clima de Beethoven predominasse, com a dramatização dos sons e as viradas cansativas do romantismo, a redescoberta da “música absoluta” encantou: “A maior e mais sagrada obra de arte musical de todos os povos!” e “o próprio símbolo da fé protestante, cuja pátria foi a Prússia”, exclamavam as resenhas.
É claro que o terreno havia sido preparado, e não somente pelos projetos de edição ou pela publicidade. Uma nova Europa se construía sobre a humilhação de Napoleão. O Congresso de Viena, em 1815, desenhou por cinquenta anos a Confederação Germânica – uma reunião de principados e cidades livres, uma grande parte da Prússia e da Áustria, que se desafiavam. Tanto na arte quanto na política, os conservadores se opuseram aos progressistas do movimento Jovem Alemanha, do qual eram próximos os escritores Georg Büchner e Heinrich Heine. Os conceitos de Pequena Alemanha, ao redor da Prússia e sem a Áustria, e de Grande Alemanha, um Estado-nação ao redor da Áustria, alimentavam as paixões. Exasperação do orgulho luterano diante da Áustria católica, sonho de unidade nacional… O que há de mais alemão que A paixão segundo São Mateus? E mais unificador que Johann Sebastian Bach, dirigido por um gênio bem-educado de 20 anos? Concerto fundador, gesto romântico, patriótico e sagrado…
Em 1834, um trovão: a Inglaterra criou a Haendel Society. Quinze anos depois – choque! –, a primeira Bach Society. Alguns alemães, entre eles Robert Schumann, indignaram-se. A resposta seria monumental. Para o centésimo aniversário da morte do compositor, fundaram a Bach-Gesellschaft, cujo objetivo era a edição, completa e crítica, de toda sua obra. Franz Hauser, grande colecionador, colaborou. Bach, que instalou as bases da tonalidade – o “pai da música” –, também iria modificá-la. Abordagem global do assunto, início da musicologia. Editaram 47 volumes em 49 anos, depois a sociedade se desfez. Franz Liszt e Johannes Brahms eram membros muito ativos.
Paris, 1835. O húngaro Liszt – ainda ele –, o polonês Frédéric Chopin e o alemão Ferdinand Hiller tocam O concerto para três cravos. Hector Berlioz: “Era desagradável ver três talentos admiráveis reunidos para reproduzir essa confusa e ridícula salmodia”.5 O que fazer? O momento estava para o romantismo e, duas décadas depois, o Segundo Império seria muito pouco luterano, muito pouco “temperado”. Além disso, Bach tinha a reputação de ser impossível de tocar e, sobretudo, adorava-se Beethoven, o indomável, como dizia Goethe. Ou como o entendia Victor Hugo: “O grande inglês é Shakespeare, e o grande alemão é Beethoven”6 – astro incontestável e lucrativo das poderosas sociedades de concertos…
A França descobriria de verdade Bach com cinquenta anos de atraso em relação aos anglo-saxões. Em 1885, a Revue des Deux Mondes escreveu: “Johann Sebastian Bach é quase famoso na França desde que Gounod usou para o acompanhamento de uma melodia de sua composição o primeiro prelúdio de cravo do velho mestre”. Viva! “Ave Maria!”, Bach não é mais pedante nem chato! Foi graças a Charles Gounod ou à Missa em si menor executada pela Sociedade de Concertos do Conservatório? Foi o desgosto pelo romantismo, o simbolismo ou a obra de órgão integral que Marcel Dupré tocaria em Paris? Descobrimos Bach, o respeitamos e sobretudo o tocamos!
Em 1889 o piano moderno acabara de ser inventado e Ferruccio Busoni, um instrumentista de 20 anos, louco por Bach, esteve em Leipzig com Gustav Mahler e Edvard Grieg. É preciso imaginar Leipzig, a famosa sala do Gewandhaus e sua orquestra outrora dirigida por Mendelssohn, recebendo a fina flor da Europa musical. Prelúdios, tocatas… O jovem Busoni recriaria Bach, como Bach havia transcrito Vivaldi. Ele abriu um novo caminho. Desprovido de órgão e coro, era apenas o piano, interiorizado, que desenhava o contraponto. Em seguida, meio século depois, veio Dinu Lipatti, suas interpretações claras do Bach de Busoni, e chegamos muito rápido a Glen Gould, detestando Busoni, embora sua empreitada e aspirações fossem muito próximas às dele. Gould, fechado em seu estúdio, tocando, gemendo. Gould, em seu tempo, fez o mesmo por Bach que Bach fez por Deus, segundo Emil Cioran. Gould e seu Bach íntimo que lhe pertence, absolutamente.
“No fundo, Bach era um arquiteto.” Em Lambaréné, no Gabão, onde se instalou às vésperas da Primeira Guerra Mundial, Albert Schweitzer, cidadão da Alsácia-Lorena anexada, tocava um prelúdio de Bach no piano com pedais. O Prêmio Nobel da Paz, pastor, organista, médico-missionário, pregava com sotaque alsaciano e saiu em turnê tocando Bach para financiar seu hospital. Colonização com fundo de música sacra… Podemos discutir sua ação humanitária ou seus talentos de organista, mas gostamos de O músico poeta, seu estudo publicado em 1905. Schweitzer, o precursor, escreve sobre a força arquitetural e simbólica do “Michelangelo da música”.
Bach se reergueria da Segunda Guerra Mundial. Aquela Alemanha que difundia sua música pelos alto-falantes nos campos e obrigava as orquestras de deportados a tocá-la não era a sua. Vladimir Jankélévitch, o filósofo-musicólogo, escreveu: “Eu ousaria dizer que Bach me deixa entediado?”. Não importava. Houve uma explosão de Bach após a Libertação da França, ainda mais quando inventaram o disco de vinil.
A continuação da história é mais conhecida: da primeira gravação do Cravo bem temperado em 1930 à explosão barroca nos anos 1950, com Nikolaus Harnoncourt, seguido de Gustav Leonhardt, preferindo tocar instrumentos antigos, até sua recuperação política quando, sentado em uma banqueta, o violonista Mstislav Rostropovitch tocou a Suite n. 3 durante a queda do Muro de Berlim. Menos conhecido é seu legado, tal como foi colocado em prática por Arnold Schönberg, Alban Berg ou John Cage, por meio da invenção do dodecafonismo, a fuga em doze sons. Mais adiante vieram os minimalistas, Steve Reich, Philip Glass…
Johann Sebastian Bach comparava cada parte de uma composição a uma pessoa falando. Neste momento, no espaço interestelar, as sondas Voyager se afastam em direção ao infinito. Elas carregam um disco de ouro contendo a Partita n. 3.
Agathe Mélinand, dramaturga e diretora, escreveu e dirigiu Le petit livre d’Anna Magdalena Bach [O pequeno livro de Anna Magdalena Bach], em 2020.
1 Arquivos municipais, Leipzig. Bach tinha na verdade 65 anos.
2 Súplica de Anna Magdalena Bach, arquivos municipais, Leipzig, 1750.
3 Berliner Allgemeine Musikalische Zeitung, mar. 1829.
4 Mozart, Carta a seu pai, arquivos Mozart, Salzburgo.
5 Hector Berlioz, Critique musicale, Buchet-Chastel, Paris, 1996.
6 Victor Hugo, William Shakespeare, 1864.