Ousar pensar mais além
Construir uma nova sociedade, novas relações de produção e consumo, novas formas de convivência social, uma democracia radical onde os cidadãos possam se reapropriar do governo e do poder em seus territórios e produzir uma convivência harmoniosa entre os seres humanos e deles com a natureza.
Silvio Caccia Bava
O homem é um rascunho em permanente aperfeiçoamento.
(Guimarães Rosa)
Vamos resistir para não perdermos mais direitos. Direitos trabalhistas, da seguridade social, das políticas públicas que garantem a vida nas cidades e no meio rural. Esses direitos são avanços civilizatórios conquistados graças às mobilizações sociais. O ataque é feito pelo governo sem voto com a promoção das reformas neoliberais que, ao tomarem a iniciativa de suprimir direitos, definem a agenda da disputa. Até aqui estamos apenas reagindo, nos defendendo.
A crise, no entanto, é civilizatória. Vivemos globalmente na sociedade da desigualdade e da devastação. Se o presente desenhar o futuro, estaremos indo para a barbárie, para a violência, para a miséria e para a exclusão de populações cada vez maiores, para o colapso ambiental, para regimes políticos autoritários e opressivos.
Precisamos questionar os fundamentos desta nossa sociedade, superar a ideologia do progresso, do crescimento, do desenvolvimento como permanente acumulação de bens materiais, criticar os atuais padrões de produção e consumo que devastam a natureza, concentram a riqueza e colocam a sociedade a serviço da acumulação de capital, dos interesses das grandes empresas, especialmente do setor financeiro.
Mas, então, qual é a sociedade que queremos? Qual utopia é capaz de mobilizar as energias sociais de mudança? Uma utopia é uma obra coletivamente imaginada, conquistada e construída politicamente, é um esforço de muitos. E, no nosso caso, fundada nos valores básicos da democracia como liberdade, igualdade, solidariedade, vida em comunidade. Construir uma nova sociedade, novas relações de produção e consumo, novas formas de convivência social, uma democracia radical onde os cidadãos possam se reapropriar do governo e do poder em seus territórios e produzir uma convivência harmoniosa entre os seres humanos e deles com a natureza. Tudo isso não é uma tarefa fácil.
A quebra dos paradigmas atuais é o primeiro passo. Descolonizar nossa mente nos âmbitos político, social, econômico e cultural. Pensar a sociedade de superação do capitalismo. Gerar uma nova proposta civilizatória. Passar da sociedade organizada para atender às necessidades da acumulação para uma sociedade orientada para atender às necessidades de seus cidadãos. Um exemplo: se tomarmos as políticas agrárias e agrícolas, a soberania alimentar e a preservação da biodiversidade deverão ser o ponto de partida, e não o fortalecimento do agronegócio.
Os questionamentos do modelo atual consumista e predatório estão presentes há anos. A teoria do decrescimento da produção e do consumo nos países do Norte, a mudança da matriz energética com o fim do uso dos combustíveis fósseis e da energia nuclear, a estatização dos bancos privados e a afirmação dos bens públicos comuns estão na agenda das mudanças necessárias.
Experiências importantes mostram o caminho das mudanças. A importância da economia solidária, a luta dos ambientalistas pela preservação das espécies e da natureza, a solidariedade entre os povos para com os migrantes etc. Recentemente, mais de cinquenta importantes cidades no mundo recusaram a gestão privada de bens públicos. A prefeitura de Paris retoma a gestão da água declarando que a gestão privada de bens públicos é incompatível com o interesse coletivo.
O desafio é distribuir desde já riqueza e renda de modo a reduzir substantivamente a pobreza e a desigualdade. Um projeto de nova sociedade pautado no respeito aos direitos humanos requer essa redistribuição em favor dos pobres e marginalizados. Assegurar água, soberania alimentar, soberania energética, a desmercantilização da natureza, a valorização de bens públicos comuns como educação, saúde e transporte está entre as metas da nova sociedade.
O local é o espaço de construção de um novo sistema econômico, sobre bases comunitárias, voltado para o desenvolvimento das forças produtivas presentes no território, suas capacidades humanas e recursos produtivos.
A conquista de crescentes graus de liberdade e a vigência dos direitos humanos requerem uma ação política sustentável e estratégica para construir tantos espaços de poder contra-hegemônico quantos forem necessários. Para a promoção dessas mudanças no padrão civilizatório é necessária a radicalização da democracia, de uma democracia inclusiva, respeitosa da diversidade, bem como a construção de contrapoderes com crescentes níveis de influência no âmbito local. A democracia radical exige a participação de atores organizados em seu território concreto, expressando vontade e direção política.
Um novo pacto de convivência social e ambiental para a promoção de uma vida centrada na autossuficiência e na autogestão dos seres humanos vivendo em comunidade requer um novo tipo de Estado, muito mais horizontal nas decisões e aberto à participação cidadã, que deverá corrigir as deficiências dos mercados e atuar como promotor das mudanças.
Silvio Caccia Bava, diretor e editor-chefe do Le Monde Diplomatique Brasil
{Le Monde Diplomatique Brasil – edição 115 – fevereiro de 2017}