Perigos reais e imaginários
Aids, gripe aviária e vírus A (H1N1) são nomes conhecidos por boa parte da população mundial. Seguindo a lógica dos organismos vivos, as doenças souberam se adaptar à era da tecnologia, contornando os antibióticos e outros progressos da medicina. Mas por que algumas dessas patologias tiveram mais destaque que outras?
Há 26 anos, espalhava-se uma nova epidemia entre a humanidade: a Aids. Desde então, pelo menos quatro alertas máximos de saúde foram lançados, o último deles sobre a gripe A (H1N1). Essas patologias possuem diversos pontos em comum: decorrem de vetores então desconhecidos – como o HIV no caso da Aids, ou a proteína príon na doença da vaca louca – ou de mutações inesperadas de vírus comuns; são oriundas de zoonoses; todas elas são caracterizadas pela superação da barreira imunitária que separa as espécies e pelo fato de se tornarem contagiosas entre seres humanos.
Por outro lado, importantes características as diferenciam. A Aids matou 25 milhões de pessoas desde 1983 (dos quais dois terços na África Subsaariana), enquanto o mal da vaca louca, na sua variação humana, deixou 214 vítimas fatais desde 1996 (dos quais 168 na Grã-Bretanha), e a SARS (ou síndrome respiratória aguda grave) fez 916 mortos entre 2003 e 2009 (quase todos no sudeste da Ásia). A gripe aviária (H5N1) contabilizava apenas 240 casos letais no fim de 2008, dos quais 80% ocorreram no sudeste asiático. Quanto à gripe A, atualmente espalhada pelo planeta – por mediação suína, como as influenzas pandêmicas do passado –, são contabilizadas “apenas” 1.250 mortes em oito meses, muito menos que a taxa de mortalidade de uma gripe estacional (300 mil vítimas fatais por ano em todo o mundo). Contudo, esses números não diminuem o perigo de sua letalidade no inverno, já que o vírus da influenza é muito resistente ao frio.
Passou-se, assim, de um perigo que se revelou massivo e durável, a riscos potenciais e recorrentes, mas aparentemente fracos. Essa mudança de perspectiva está atrelada a atitudes muito diferentes na maneira de apreender um fenômeno como esse. No caso da Aids e do mal da vaca louca, a opinião pública se atemorizou com a maneira como as autoridades e interessados subestimaram os perigos, omitiram realidades inquietantes e tentaram postergar ao máximo um escândalo inevitável.
Vacinação obrigatória
No entanto, para a SARS, gripe aviária e gripe A aconteceu o inverso: as instituições sanitárias e os poderes públicos foram acusados de alarmismo. São criticados, por exemplo, por utilizar essas ocasiões para desviar a atenção da crise econômica, demonstrar seu poder de intervenção, incentivar a prevenção num nível desproporcional ao perigo real e, finalmente, colocar em marcha uma gestão mundial da saúde ao mesmo tempo mesquinha, autoritária e higienista, denunciada há muito tempo por Rony Brauman,1 principalmente no que se refere a campanhas questionáveis de vacinação obrigatória em países pobres.
O período parece, então, propício para evitar a angústia generalizada, sem subestimar o que está em jogo e separar o fantasma do verdadeiro perigo.
A amplificação dos riscos de epidemias novas é real: segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), 39 agentes patogênicos foram descobertos desde 1967. A população mundial cresce rapidamente – cerca de um bilhão a mais de pessoas a cada dez anos – e concentra-se em áreas urbanas.
Os meios de comunicação, distribuição e difusão foram consideravelmente desenvolvidos, acentuando tanto a propagação de vetores de doenças (os mosquitos são excelentes clientes de companhias aéreas) como a resposta a eles. Já em 1918, a gripe espanhola (que apresentava também os subgrupos H1N1), trazida da China por um batalhão americano, não demorou mais que 15 dias para se espalhar pelos Estados Unidos e dois meses para dominar os campos de batalha. Essa epidemia acabou matando 30 milhões de pessoas no mundo.
Inútil, no entanto, esperar pelo pior. Como observa o historiador de medicina, Patrick Zylberman, “dispomos de conhecimentos científicos sobre o vírus, antiviróticos e vacinas. Os antibióticos permitem tratar as infecções decorrentes. Sem mencionar a vigilância epidemiológica, em funcionamento desde 1995, e planos de resposta às epidemias previamente formulados2”. Contrariamente ao início do século passado, o período atual não enfrenta mais guerras em grande escala ou ondas de fome, apesar da crise econômica, o que dificulta o triunfo da infecção sobre as defesas imunitárias. Além disso, a maioria dos habitantes do planeta tem acesso a água corrente, ainda que haja disparidade. A história mostra que a virulência das grandes pestes do século XIV, que deixou mais de 50 milhões de mortos, se deve a uma série de fatores: proliferação de animais de carga, crescimento demográfico, concentração de população nas cidades, mau estado psicológico em função da miséria, beligerância geral e crônica etc.
As doenças, seguindo a lógica dos organismos vivos, souberam se adaptar à era da tecnologia. A eficácia imemorial da seleção natural não joga a nosso favor ao contornar os antibióticos e outros progressos da medicina: nos Estados Unidos, a cada dois estafilococos dourados, um já não é sensível à eritromicina, meticilina, penicilina ou tetraciclina. Na França, a metade dos pneumococos resiste à penicilina.3 Esse fenômeno torna mais aleatório o tratamento de doenças pós-gripais e explica, em parte, as diferenças consideráveis de “letalidade” pelo H1N1 de um país para outro.
Não é preciso nenhuma teoria da conspiração para admitir que as estratégias humanas de erradicação de doenças se aproveitam dos mecanismos de adaptação bacterianos e virais em curso há bilhões de anos.4 Disseminado pelos médicos, o entusiasmo do público pelos antibióticos nunca havia sofrido restrições até recentemente. Foi preciso enfrentar esse aumento da resistência de organismos patológicos para conceber a necessidade de elaborar linhas de ação mais específicas. E o homem, por sua vez, deve responder ao desafio, o que pode, inclusive, implicar novíssimos tratamentos genéticos.
Combinação genética
No que se refere à gripe, levou-se em conta a possibilidade de mutação, e vacinas eficazes foram produzidas em grande quantidade para tentar “prever”novas formas do vírus. Assim, de acordo com especialistas dignos de confiança, o verdadeiro ri
sco apresentado pelas novas gripes está na combinação genética do H1N1 (alto índice de contágio e baixa mortalidade) e do H5N1 (baixo índice de contágio e alta mortalidade). A probabilidade é pouca, mas se acontecer, o perigo de se fundirem as duas variações seria o de gerar uma alta taxa de mortalidade em um grande número de pessoas, sobretudo nas populações do sudeste asiático.
É possível, desse modo, entender a ansiedade crescente dos Estados cujo primeiro dever é proteger suas populações, e o tom cada vez mais enérgico das instituições internacionais, inquietas com a rápida circulação de doenças.
Contudo, se é um dever reconhecer a necessidade de compartilhar responsabilidades, também é um direito considerar seus aspectos inevitavelmente problemáticos. A partir de agora, para controlar a epidemia de uma bactéria, gripe ou resfriado perigoso, será preciso tomar um conjunto de medidas: quarentenas e fechamento de fronteiras, proibição de aglomerações, “consignações” em domicílio, tratamentos obrigatórios etc. Porém, as populações ocidentais perderam o hábito de atos coercitivos em massa e têm tendência a interpretar essas regulações coletivas como um atentado às liberdades individuais.
Outra dimensão do problema: as autoridades parecem menos capazes de frear a aparição de situações favoráveis à emergência de novas doenças do que intervir a posteriori, obrigando as pessoas a se submeter a controles ou campanhas de vacinação. Essa relativa impotência em tratar o problema na raiz não data de hoje: as autoridades europeias e americanas não dominavam as técnicas de preparação de produtos da transfusão de sangue, fato que, hoje sabemos, contribuiu para a difusão da Aids. A mesma coisa aconteceu com a fabricação de farinhas animais, cuja ingestão pelos bois favoreceu a passagem dos príons, possivelmente oriundos de outras espécies.
Os três últimos grandes alertas apontaram para a questão da extensão da criação industrial de aves e porcos, deslocada de uma região a outra, sem, no entanto, estimular a profilaxia5 – da China à Malásia, passando pelo México e até mesmo pelos países ditos “desenvolvidos”. Ora, o porco dispõe de receptores de vírus aviários e humanos e pode servir de intermediário para combinar os dois. A esses animais foram atribuídas 1,5 milhão de mortes nas pandemias de origem aviária em 1957 (A/H2N2) e 1968 (A/H3N2)6. Não se pode deixar de mencionar que o hiato entre o baixo nível de prevenção geral e a pressão mais forte exercida sobre o comportamento do público a posteriori podem ter sido acentuados pela concepção liberal e pelo laisser faire que prevaleceram no mundo desde os anos de 1980.
Especialista em doenças infecciosas e membro da Academia de Medicina, o professor Marc Gentilini se mostrou indignado: “O peso que atribuímos à gripe A é indecente em comparação ao conjunto da situação sanitária do mundo. É uma pandemia da indecência. Quando olho a situação do planeta, tenho vergonha de ver o esforço para evitar uma gripe da qual sabemos pouca coisa, enquanto a malária mata um milhão de pessoas perante a indiferença quase geral do mundo”7. Sem contar doenças como a diabetes, exemplo atual de grande risco à saúde, mas quase ignorada pelo grande público: na ordem de 4 milhões de mortes por ano, sua letalidade está em aumento constante e é atribuída essencialmente aos modos de vida modernos.
Sobre a balança das fobias, as patologias não têm o mesmo valor – sobretudo nas populações que padecem delas. Por que a gripe aviária ou a gripe suína provocaram tal mobilização das autoridades sanitárias, enquanto a simples gastroenterite (bacteriana ou principalmente viral) mata cerca de um milhão de crianças e 600 mil adultos por ano nos países pobres, sem que esses números pareçam gerar preocupações?
Enfatizar demais os perigos, apresentando-os como apocalípticos, reforça inquietudes das mais manipuláveis (as sondagens indicam que, na França, as classes mais baixas têm mais medo da gripe A que as classes mais altas)8 e favorece o imaginário do pior, multiplicando rumores alarmistas. Assim, Catherine Austin Fitts, sub-secretária de Habitação no primeiro mandato de George W. Bush prevê, com tristeza e horror, que a gripe e suas vacinas serão utilizadas para diminuir a população humana, atualmente “fora de controle”.9
Efeitos colaterais
O tema da vacinação, livre ou obrigatória, foi objeto de receios populares desde o início do século XIX. De fato, a vacina já salvou ou prolongou milhões de vidas, mas também houve ocasiões de “iatrogenia”,10 como ocorre com todas as técnicas de cura. Esses casos de vacinas com efeitos colaterais contribuíram, muitas vezes, para o surgimento de verdadeiros terrores.
O nó da questão parece ser a intervenção através da pele, já que o antibiótico, por exemplo, por ser um medicamento de via oral parece não suscitar esse tipo de reação. O risco maior, na realidade, nem sempre é aquele no qual mais pensamos. O desvio de nossas sociedades em direção à obsessão pela segurança pode ser um dos mais graves, notadamente porque impede qualquer política de saúde racional e organizada.
Quanto mais a sociedade se comportar como incubadora para as pandemias, mais teremos que lidar com uma autoridade que pretende representar essa espécie: um biopoder universal mais preciso que o constatado por Michael Foucault.11 Aí está uma contradição irredutível com a qual será preciso conviver: aceitar nossa realidade biológica e, ao mesmo tempo, exigir que sejamos respeitados como sujeitos políticos e privados, como seres singulares. A necessidade de recorrer a arbitragens entre esses dois aspectos contrários implica tolerar suas consequências (às vezes mortais).
Mas seria uma pena, para não dizer estupidez, deixar que a poliomielite voltasse a assolar as crianças, como na Nigéria, simplesmente porque se desenvolveu uma desconfiança paranoica em relação a “vacinas envenenadas”.12 Seria também pouco racional esperar passivamente que se produza um eventual “casamento” entre os vírus H5N2 e H
1N1, sob o risco de ver exterminada boa parte de nossa população em plena idade produtiva. Por outro lado, o direito de colocar em discussão a obrigação de uma vacina poderia ser admitido no caso de patologias pouco dominadas ou de técnicas polêmicas.
Em relação à denúncia de intenções de manipulação de vírus para que se tornem ainda mais mortais (por exemplo, num cenário de “bioterrorismo” privado ou estatal), é importante sublinhar seu caráter irrealista: não que os vírus patogênicos não possam ser manipulados em laboratório, mas eles teriam poucas chances de obter a eficácia de uma mutação natural. As disseminações acidentais de organismos modificados geralmente acontecem em contextos quase sempre desfavoráveis para sua sobrevivência.
Além disso, para conseguir fabricar a doença exatamente adequada aos interesses desse ou daquele grupo terrorista, seria necessário empreender inúmeras experiências em grande escala, que logo atrairiam a atenção de todos os serviços secretos do mundo. Em resumo, se as intenções contra a nossa espécie forem as piores, é melhor se valer da natureza e de um contexto de superpopulação do que se debruçar sobre tentativas duvidosas.Acelerada pela internet, a propagação de rumores infundados e insensatos acusando a OMS, Barack Obama, David Rockefeller ou Georges Soros mobiliza desejos mortíferos que reforçam o caráter opressivo, perigoso, incerto e desorientado da sociedade. Contribui também com fenômenos de agitação demagógica (como acusações a estrangeiros e judeus como vetores de epidemias) e acentua a tendência das mídias clássicas a precipitar o deslumbramento ou a desconfiança na opinião pública.
Como mostra Pascal Froissart, a propósito das teorias da conspiração,13 “o direito à dúvida” é importante e saudável, mas quando se transforma em algo crônico, assustador e alarmista, entramos numa outra lógica, a dos períodos sombrios da história.
*Denis Duclos é antropólogo e diretor de pesquisa do Centre National de la Recherche Scientifique – CNRS, na França. Autor de Éloge de la pluralité – Conversion entre cultures et continuation de l’humanité, Bibliothéque de la Revue du Mass permanente, Paris, 2012.