Recuperação econômica: a luz no fim do túnel
Vivemos em uma economia da depressão, caminhando aos trancos e barrancos e tropeçando sem parar sob o fardo da globalização liberal e do domínio das finanças sobre a empresa e o trabalho. As previsões de crescimento parecem não levar em conta o saldo de 39 a 59 milhões de desempregados a mais no mundo
Enquanto a crise econômica e financeira não para de disseminar seus malefícios, em meados de 2009 começaram a ser praticados todos os trabalhos de magia imagináveis, destinados a esconjurar a crise e a promover o rápido retorno do amado crescimento. Nenhum sinal do destino foi menosprezado: o frêmito (precário) dos índices da Bolsa; a recuperação (cambaleante) das cotações das matérias-primas e das energias fósseis; a desaceleração da supressão de empregos nos Estados Unidos e as animadoras previsões de crescimento da Reserva Federal (FED); a atualização (de + 0,1 ponto!) das previsões do Banco da França no que diz respeito ao produto interno bruto (PIB) do país em 2009; a melhora das perspectivas divulgadas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) relativas ao crescimento mundial em 2010; a recuperação da produção industrial em maio na Alemanha; o resultado “levemente positivo” do faturamento do banco Société Générale no segundo semestre de 2009 e os lucros do banco de investimentos Goldman Sachs no segundo trimestre; o reembolso antecipado das ajudas federais pelos bancos americanos etc.
Seria inútil perder tempo tecendo considerações sobre a indecência dessas predições. Mais vale perguntar se a luz que elas anunciam no final do túnel não seria a do farol de um trem que está vindo em nossa direção a toda velocidade. Mesmo se os cenários mais otimistas acabassem se concretizando,1 o desemprego seguiria crescendo sem parar no decorrer dos anos 2009 e 2010, justamente por causa da incipiência prevista da retomada da atividade. A Zona do Euro poderia conhecer no decorrer de 2010 uma taxa de desemprego oficial de 11,5% (contra o percentual de 7,5% em seu momento mais favorável, no início de 2008). Nos Estados Unidos, em que 7 milhões de pessoas já perderam seu cargo, o ritmo assustador de 600 mil demissões por mês no primeiro semestre de 2009 leva a considerar uma taxa de desemprego na casa de 10% para o final deste ano, a qual deverá perdurar pelo próximo período.
No cômputo geral, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), tudo indica que a crise econômica e financeira vai acabar deixando um saldo de 39 a 59 milhões de desempregados no mundo, aos quais irão se somar 200 milhões de trabalhadores suplementares que terão de se acostumar a viver com menos de US$ 2 por dia. Ora, se as perspectivas de crescimento moderado anunciadas por praticamente todos os institutos de previsão estiverem acertadas, esses prejuízos não serão absorvidos tão cedo.
Não há dúvida de que o terreno ainda está apinhado de bombas de efeito retardatário das quais não conhecemos nem o comprimento do pavio nem a capacidade da carga explosiva. Ao provocar um crescimento significativo da inadimplência, a deterioração da situação econômica poderia muito bem alimentar uma segunda rodada de reveses financeiros para os bancos, os quais deverão estar preparados para absorver novas perdas em breve – da ordem de 283 bilhões de euros, segundo o Banco Central Europeu. Nem será preciso perguntar se eles conseguirão suportar tal desfalque, pois todos nós sabemos que essas instituições sempre poderão contar com a “generosidade” dos Estados.
A esta altura da crise, também não podemos excluir o risco de um crash do mercado de títulos públicos,que resultaria em uma desconfiança crescente dos “investidores”. Por temer, acertadamente ou não, que os montantes astronômicos dos empréstimos que os Estados deverão contrair em 2009 e 2010 para financiar seus déficits acabem provocando aumentos das taxas de juros – e querendo se antecipar a esse fenômeno –, os que vivem dos rendimentos do seu capital poderiam se mostrar mais e mais reticentes em possuir títulos públicos.
A queda do preço dos títulos que resultaria dessa venda maciça acabaria por sufocar os Estados, aumentando seus encargos com juros no mesmo momento em que a sua dívida estivesse explodindo. A menos que os políticos redescubram as virtudes do imposto, ou que as autoridades monetárias aceitem refinanciar as dívidas públicas por meio de taxas quase nulas, a saída invariavelmente acabará prejudicando as camadas mais pobres da sociedade, quer por meio de cortes drásticos nos serviços públicos, quer nos programas sociais.
Tudo isso é, na verdade, previsível. Mas, onde estarão as outras bombas? Na falência anunciada do Estado da Califórnia, cujo orçamento está engessado pela obrigação de reunir uma maioria parlamentar de dois terços para aprovar todo e qualquer aumento de taxa ou de impostos, e que começou a pagar seus fornecedores com os próprios títulos da dívida? Na derrocada iminente dos fundos de pensão dos funcionários de Nova Jersey e de Illinois, que foram indevidamente subdotados e saqueados ao longo de duas décadas por dirigentes políticos incapazes de aumentar os impostos, e então laminados pela derrocada do mercado financeiro em 2008, por causa da qual eles teriam perdido 30% do valor dos seus ativos?2 Ou ainda no castelo de cartas constituído pelos cerca de US$ 500 trilhões de contratos amarrados em produtos derivados (destinados a cobrir, na teoria, riscos de câmbio, taxas de juros ou de inadimplência) que vêm sendo usados como moeda de troca, conforme as circunstâncias, pelas instituições financeiras? O seu desmoronamento, em caso de novo abalo financeiro, poderia ocasionar novas perdas de cerca de US$ 3,5 trilhões,3 ou seja, mais ou menos o montante da crise dos subprimes.4
Para nos tranquilizar, gostamos de acreditar na ideia de que os Estados Unidos e a Europa vêm tentando regulamentar esses mercados, criando autoridades de supervisão e de regulação, e prevendo mecanismos de compensação. Contudo, foram justamente instituições desse tipo que se mostraram incapazes de prevenir quer a crise dos subprimes, quer os escândalos do tipo Enron, WorldCom ou Madoff. A Securities and Exchange Commission (SEC), a comissão que regulamenta o mercado de capitais e as praças financeiras dos EUA, conduziu três inquéritos, em 1992, 2005 e 2007, sobre as práticas duvidosas de Bernard Madoff: todos eles fracassaram. Essa nobre instituição, que até então passava, dizem, por uma agência modelo de regulação e supervisão, volta e meia recorria aos serviços deste último por causa da sua experiência no campo da organização dos mercados. E como sempre ocorre em caso de fracasso, as capacidades financeiras e em recursos humanos da SEC foram ampliadas,5 o que nos leva a acreditar que, em matéria de regulamentação financeira, a regra de ouro do absurdo se aplicaria ainda melhor nos Estados Unidos do que em outros lugares: “Quanto mais algo dá errado, mais este algo reúne chances de dar certo no futuro!”.
Essa inconsequência é subproduto de outra, que constitui o alicerce da doutrina liberal: nada deve ser feito para tolher a inovação financeira da qual o planeta ainda espera tantos milagres. Foi o que lembrou Ben Bernanke, o presidente do Fed, temendo que o Congresso americano se deixe levar pelo seu notório afã regulador: “Não se deve tentar impor aos fornecedores de créditos restrições tão pesadas a ponto de impedir o desenvolvimento de novos produtos e serviços no futuro”. Para preservar quais grandes benfeitorias? “A inovação financeira melhorou o acesso ao crédito, reduziu os custos e aumentou as alternativas”6, responde. Isso aconteceu oito meses depois do começo da crise. Como não temer então a explosão de bombas de efeito retardado, quando os seus manipuladores ainda estão operando no local?
Mesmo sem ceder à paranoia, vale alimentar seríssimas dúvidas em relação à capacidade de as economias capitalistas “avançadas” se recuperarem num futuro próximo. De fato, subsiste um bom número de fatores de sujeição e obrigações de ordem macroeconômica que não foram superados durante a crise. Longe disso: essas limitações são tão sólidas que deveriam renunciar ao qualificativo de “conjunturais” que lhes é atribuído com tanta frequência.
Endividamento das famílias
Os níveis de endividamento público que, vale reconhecer, ainda estão longe de alcançar os recordes históricos registrados após a Segunda Guerra Mundial, poderiam, segundo o FMI, beirar ou ultrapassar os 90% do PIB em 2014; e isso, em países tais como os Estados Unidos, Reino Unido, França, Bélgica – e até mesmo, mais de 200% no Japão –, sob os efeitos conjugados da diminuição das receitas fiscais provocada pela recessão, das políticas repetidas de redução de impostos e diminuição do ritmo da inflação. O próprio endividamento das famílias, que funcionou durante 20 anos como um substituto à progressão dos salários na formação da demanda de bens de consumo, vem alcançando níveis nunca vistos.
Consequentemente, as despesas públicas e o consumo popular, dois pilares essenciais da formação da demanda global na economia, não estarão muito bem das pernas nos próximos anos. Já no que diz respeito à demanda externa, que vem sendo constantemente travada por uma moeda supervalorizada (ao menos na Zona do Euro), ela passa a funcionar como um freio mecânico tão logo começa a desenhar-se uma perspectiva de retomada, por menor que seja, por causa da volatilidade exacerbada dos preços das matérias-primas e da energia.
Em razão da diminuição das reservas facilmente acessíveis, reforçada por políticas de investimentos quase capitalistas na exploração, extração e refino das energias fósseis, e por efeito da especulação que passou a tomar conta maciçamente desse tipo de mercado ao longo dos últimos anos, a conta energética começa a explodir antes mesmo que se materializem as esperanças de retomada nas quais se baseiam essas especulações.
Ora, os dividendos gastos no exterior para importar o precioso líquido não são compensados, em curto prazo, por uma demanda vinda no sentido inverso dos países produtores e dirigida às empresas dos países consumidores. A Agência Internacional da Energia (AIE) avaliou, em 2004, que um aumento duradouro do preço do barril de petróleo de US$ 25 a US$ 35 poderia engendrar uma diminuição de 0,4 ponto do crescimento nos países-membros (e de 0,45 na Europa).7 O que acontecerá então quando o preço do barril passar novamente de US$ 60 para US$ 150?
A mesma pergunta vale para os excedentes comerciais gigantescos que a China vem cultivando com os Estados Unidos e a Europa. Esse fenômeno provém, em parte, da taxa de poupança estruturalmente elevada das famílias; mas, de maneira ainda mais efetiva, no decorrer dos últimos seis ou sete anos, durante os quais o excedente comercial chinês foi multiplicado por três (de 3% para 10% do seu PIB), ele tem sido gerado pelos lucros gigantescos das firmas industriais instaladas na China, voltadas para a exportação ou para a substituição das importações passadas. A captação que elas operaram sobre a demanda mundial veio inchar os lucros do setor industrial, os quais levaram a um aumento de 7 pontos da taxa de poupança bruta das empresas desde o começo dos anos 2000.
Esses lucros transformados em poupança, e essa poupança geradora de excedente das famílias chinesas, criam, pelo fato de não retornarem para a demanda mundial, os déficits comerciais que eles se dedicam então a financiar. Esse jogo está cavando dentro da demanda global, em detrimento de cada tentativa de retomada econômica, um buraco de 168 bilhões de euros para a Europa, e de US$ 268 bilhões para os Estados Unidos.8
Já ficou fácil perceber aqui a dificuldade de classificar os obstáculos macroeconômicos descritos acima na categoria dos problemas “conjunturais”, considerando o seu papel estruturador nas distorções da demanda efetiva em nível mundial. O que dizer então dos fatores que configuraram durante mais de um quarto de século uma espécie de economia da depressão – para retomar os termos do Prêmio Nobel de Economia, Paul Krugman –, caminhando aos trancos e barrancos e tropeçando sem parar sob o fardo da globalização liberal e do domínio das finanças sobre a empresa e o trabalho?
A pedra angular do regime de acumulação financeira foi, e continua sendo, a restauração do poder dos acionistas sobre as grandes firmas cotadas em Bolsa. Esse retorno da figura do acionista, que se concretizou na esteira da recuperação dos mercados durante os anos 1980, foi impulsionado pelo crescimento acelerado dos grandes fundos de poupança coletiva, os quais conseguiram concentrar, a partir da virada do milênio, mais de 50% das ações das empresas cotadas. Esses organismos de aplicação coletivos – fundos de auxílios mútuos, fundos de pensão, companhias de seguros – competem entre si para drenar a poupança das categorias abastadas da população. As suas opções de aplicações em Bolsa e participações nos órgãos de “governança” das firmas os transformaram numa verdadeira polícia dos mercados de ações, sancionando aqui as empresas que não t
eriam colocado os acionistas no centro da sua política, e recompensando ali aquelas que conseguiram alcançar os famosos 15% ou 20% de lucros sobre os fundos próprios.
Demanda interna atrofiada
Vale acrescentar que essas exigências exorbitantes não foram favoráveis nem para o investimento nem para o consumo. Em consequência disso, os pilares da demanda interna permaneceram atrofiados na maioria dos países desenvolvidos, enquanto as firmas “ocidentais” partiram em busca de novos eldorados sob outras latitudes. Ora, seria um equívoco afirmar que essa lastimável dinâmica da demanda global está em processo de inversão por efeito das virtudes autorredentoras de uma crise que, repentinamente, estaria transformando uma economia sujeitada pela exploração dos acionistas, num capitalismo das partes recebedoras, socializando novamente a empresa para a felicidade dos seus assalariados, consumidores, territórios que os acolhem e da natureza.
O mesmo deveria ser dito no que se refere à liberalização sistemática das transações internacionais de mercadorias e de capitais que vem sendo promovida nos últimos 20 anos por efeito das regras estipuladas, primeiro pelo Acordo Geral sobre as Tarifas Alfandegárias e o Comércio(GATT) e mais tarde pela Organização Mundial do Comércio (OMC). A instauração de uma situação de concorrência para todos os produtos, projetos de investimento e trabalhadores do planeta, transformou a mão-de-obra dos países em desenvolvimento num formidável exército de reserva, permitindo puxar constantemente os salários para baixo. Também neste caso, nada permite vislumbrar o que seria suscetível reverter nessa tendência, em curto prazo.
Por fim, esta enumeração seria incompleta se não incluísse, entre os fatores estruturais que contribuíram para configurar essa economia da depressão, o pensamento dominante em economia há mais de um quarto de século, o qual negligenciou constantemente a demanda para focalizar os problemas que porventura venham a tolher a oferta. Afirmar que as ideias acadêmicas têm sua parte de responsabilidade na crise atual não equivale a atribuir-lhes importância excessiva. Conforme lembra Krugman: “O corpus de ideias quiméricas que alimentava pretensões de ser denominado de ‘economia do lado da oferta’ é uma doutrina esdrúxula que não teria exercido tão grande influência se não tivesse sido favorecida pelos preconceitos das redações de veículos de comunicação e de homens ricos”9.Uma vez deixadas para trás as exuberâncias keynesianas, é de temer que o esdrúxulo volte a ficar na moda. Quem atesta esse fato é o presidente do Banco Central Europeu, Jean-Claude Trichet, retornando às fontes da sua inspiração para enumerar as principais orientações da política macroeconômica a ser aplicadas:
“No que diz respeito às políticas estruturais, convém intensificar cada vez mais os esforços, visando sustentar o crescimento potencial na Zona do Euro. Em particular, a reforma dos mercados de produtos é necessária para favorecer a concorrência e acelerar a reestruturação e o crescimento da produtividade. Além disso, a reforma dos mercados de trabalho deve facilitar um processo apropriado de definição dos salários e a mobilidade da mão-de-obra entre os setores e as regiões. Ao mesmo tempo, muitas medidas que foram adotadas ao longo dos últimos meses para apoiar determinados compartimentos da economia deverão ser canceladas progressivamente e em momento oportuno. É essencial que seja priorizada, daqui para frente, a consolidação da capacidade de ajuste e da flexibilidade da economia da Zona do Euro, em conformidade com o princípio de uma economia de mercado aberta e no âmbito de um regime de livre concorrência”10. Ou seja, a luz no fim do túnel…
*Laurent Cordonnier é economista e mestre de conferências da Universidade Lille-I. Autor de Pas de pitié pour les gueux (Nenhuma piedade para os miseráveis), Paris, Raisons d’Agir, 2000 e de L’Economie des Toambapiks, Raisons d’Agir, Paris, 2010.