Retratos de família
As vitórias de Obrador e Petro, a derrota do fujimorismo e o regresso do PT e do MAS renovam os projetos de justiça social. Porém, a ascensão de Milei, as limitações de Boric e a permanência do entulho bolsonarista evidenciam o engrossamento das direitas na região. Diante disso, prever o ritmo e a amplitude das marés políticas é impossível; resta-nos buscar compreendê-las
O cambiante cenário político latino-americano trouxe novos dilemas para os analistas: onde alguns veem a retomada do ciclo progressista ou uma “maré rosa”, à imagem da acontecida na virada de século XXI, outros alertam para o fortalecimento de uma nova direita que vem minando os horizontes democráticos na região. Sem dúvida, a vitória de Andrés Manuel López Obrador no México e de Gustavo Petro e Francia Márquez na Colômbia, a derrota do fujimorismo no Peru e o regresso do Partido dos Trabalhadores (PT) à presidência do Brasil e do Movimiento al Socialismo (MAS-IPSP) na Bolívia renovaram com ares de esperança os projetos de justiça social e integração regional após as crises, golpes e perigos latentes representados por Donald Trump no comando dos Estados Unidos.
No entanto, o destaque alcançado pelo anarcocapitalista Javier Milei nas campanhas eleitorais na Argentina, as evidentes limitações do governo kirchnerista e do governo de Gabriel Boric no Chile, a volta do Partido Nacional ao Executivo uruguaio, a continuidade do Partido Colorado no Paraguai e a permanência de certo entulho bolsonarista fora e dentro do sistema político brasileiro evidenciam que a cada fotograma os prognósticos mudam e os alertas para o engrossamento das direitas na região se apresentam como um obstáculo para os que acreditam em fluxos supostamente naturais e contínuos de avanços e retrocessos. Diante do cenário atual, prever o ritmo e a amplitude das marés políticas é impossível; resta-nos buscar compreendê-las.
Retratos de família
Para começar uma análise das diretas na região poderíamos enfocar nas similitudes entre fenômenos passados e presentes, e entre casos nacionais. A parecida excentricidade de Milei e Trump também foi notada em Bolsonaro. O uso das redes sociais digitais como forma de comunicação direta com seus apoiadores, bem como do escândalo, da disseminação de ofensas, de frases de impacto e de teorias da conspiração para ganhar seguidores são outro ponto em comum dessa tríade, reforçada pela vinculação com influenciadores como o ex-Fox News Tucker Carlson, que recentemente entrevistou Milei, ou marqueteiros como Fernando Cerimedo, que já atuou pela rejeição à nova Constituição durante o plebiscito no Chile, prestou serviços ao clã Bolsonaro para questionar a validade das últimas eleições e atualmente serve à campanha do anarcocapitalista argentino.
Contudo, as semelhanças não se resumem ao comportamento e aos circuitos de comunicação. Poderíamos dizer que elas estão também nos direcionamentos geopolíticos (como Trump, Milei promete transladar a embaixada argentina de Tel Aviv para Jerusalém) e nos tradicionalismos inspirados nos supostos gurus Steve Bannon, de Trump, e Olavo de Carvalho, de Bolsonaro, o que tem provocado interessantes estudos que dão conta da profundidade histórica de um fenômeno que, pela aparência, é tachado como ridículo.
Se nos detivermos no acontecido nos últimos anos, poderíamos dizer que o negacionismo se apresentou como um dos sintomas de perigo encobertos de grotesco. No Brasil, fomos testemunhas dos riscos da omissão propositiva da grave crise ambiental e da emergência sanitária no contexto da pandemia de Covid-19. E é igualmente alarmante quando o negacionismo tenta rasgar as feridas regionais do passado ditatorial mais ou menos cicatrizadas nas lutas por Memória, Verdade e Justiça. Como mostram os casos do próprio Bolsonaro, rodeado de militares formados nos anos de chumbo e louvador de torturadores; do ex-candidato chileno José Antonio Kast, abraçado aos escombros do pinochetismo; e da atual candidata argentina à vice-presidência pelo partido La Libertad Avanza, Victoria Villarruel, defensora e divulgadora de teorias que recusam as comprovadas violações dos direitos humanos durante a ditadura.
Entretanto, é o antiprogressismo traduzido para as variantes locais a bandeira aglutinadora das direitas atuais. Esta se ancora nos reciclados significantes em torno do anticomunismo como suposto perigo aos valores ocidentais, baseados na liberdade individual, na propriedade privada e no livre mercado. Se partirmos dessa chave de compreensão, não deveríamos nos surpreender diante da amálgama de conservadorismo religioso, militarismo e liberalismo que tinge as direitas que vêm protagonizando os debates políticos na região, e igualmente, diante das continuidades históricas.
Entre os gritos de dolarização nas numerosas aparições públicas, Milei enumera as referências intelectuais que dão sustento à exuberante proposta de passar a motosserra no aparelho de Estado. Os nomes de Ludwig von Mises, Friedrich Hayek e Milton Friedman são apresentados como a velha novidade. Os primeiros, fundadores da Escola Austríaca, e o último, da Escola de Chicago, tiveram uma participação destacada nos debates do pós-guerra contra os modelos keynesiano e soviético e, no caso de Friedman, com importante influência na formação dos chamados Chicago Boys e no desenho das políticas neoliberais durante a ditadura no Chile, respingando inclusive no Brasil, com figuras como o ex-ministro Paulo Guedes.
E se de lembranças se trata, vale mencionar as conferências oferecidas por Mises em Buenos Aires em 1959 e as visitas regionais de Hayek durante a segunda metade dos anos 1970 e início dos anos 1980, que não poderiam ter acontecido sem articuladores como Alberto Benegas Lynch, fervoroso antiperonista e precoce divulgador do ideário neoliberal na Argentina, deixando o legado para seu filho homônimo dedicado à formação e atuação em think tanks, agora transferido para o neto, Bertie Benegas Lynch, candidato a deputado federal pelo La Libertad Avanza. Para Milei, Alberto Benegas Lynch (filho) é “um prócer”; para Benegas Lynch (filho), as propostas de Milei são “um orgasmo intelectual”. Tudo em família.
Embora de forma metafórica, parece útil pensar nas direitas como famílias com matrimônios, separações, enganos e descendência com modulações históricas em momentos específicos. O desafio é tentar desentranhar o atual retrato familiar.
Legendas de uma foto familiar
Na atualidade regional é possível observar o crescimento e a consolidação de duas “famílias” de direitas que convivem (por momentos de forma conivente) fortalecendo a capacidade de incidência no cenário regional e fazendo que a autoidentificação com o campo político da direita deixe de ser uma referência pejorativa, como outrora.
Sinteticamente, podemos caracterizar a primeira família como uma direita liberal-conservadora, hegemonizada pelo campo liberal, germinada ao final da Guerra Fria e dos processos ditatoriais, e consolidada a par dos frágeis e tutelados processos de transição democrática. Trata-se de uma direita que, sem perder os valores católicos conservadores, priorizou a defesa de um Estado subordinado aos interesses do capital internacional e de democracias limitadas. Uma direita associada a esse capital e que segue a cartilha desenhada pelos Estados Unidos para assuntos estratégicos de segurança hemisférica que recicla a Doutrina Monroe ao cenário de pós Guerra Fria. Sua consolidação implicou a ressignificação da ideia do inimigo comunista e o desenho de outros tipos de ingerência política, econômica e militar na região. As guerras não convencionais, o soft power e o controle por meio das dívidas externas se expandiram junto do modelo neoextrativista, que redesenhou o problema da segurança e do controle territorial; com isso, vieram os novos perigos, como o chamado narcoterrorismo, os indigenismos, o marxismo cultural, a teologia da libertação e os movimentos camponeses, mas sem perder a mira no processo revolucionário cubano.
É possível afirmar que parte da articulação em torno dessa primeira família liberal-conservadora é resultado do trabalho acumulativo realizado principalmente por agências públicas e privadas norte-americanas, embora a influência europeia não deva ser subestimada. A National Endowment for Democracy (NED), a United States Agency for International Development (Usaid) e fundações como Atlas Network e Heritage Foundation cumpriram um papel destacado na articulação e no financiamento de uma série de organizações e pessoas que, ao ritmo da porta giratória, foram ocupando cargos no âmbito público, empresarial, acadêmico, cultural e midiático. Seu caráter conservador apela não apenas aos costumes, mas, sobretudo, ao perfil moderado em relação às mudanças que ameaçassem a desigual ordem internacional de livre mercado e os privilégios de classe. Trata-se de uma direita aparentemente adaptada ao frágil jogo da institucionalidade democrática, porém revitalizada após os anos 2000 na contraofensiva em tempos de “maré rosa”. Nesse processo destacam-se figuras como Sebastián Piñera, Guillermo Lasso, o novelista Mario Vargas Llosa, velhos think tanks como o Centro de Difusión del Conocimiento Económico de Venezuela, a Fundación Libertad de Argentina, o Instituto de Ciencia Política da Colômbia e, mais recentemente, o Instituto Millenium do Brasil.
Embora possa gerar alguns debates, poderíamos dizer que foi essa a direita que se viu abalada pelo ciclo de impugnações ao neoliberalismo e governos progressistas, mas que, de forma resiliente, se esforçou para colocar os primeiros obstáculos ao avanço da “maré rosa” encabeçada pela Venezuela, levantando as bandeiras anticorrupção e aprimorando os esquemas de lawfare. Essas direitas não apenas rasgaram as constituições em Honduras, Paraguai, Brasil e Bolívia, mas também abonaram o nascimento de outra direita, uma direita alternativa e radicalizada. Talvez a irrupção de Milei após o fracasso da reeleição de Macri na Argentina exemplifique esse deslocamento. Contudo, foi a vitória de Bolsonaro que trouxe à luz alguns dos traços de novidade da segunda “família de direitas” que completa a análise.
Essa novidade vem sendo associada ao fenômeno conhecido como alt-right [em português, “direita alternativa”], popularizado após a vitória de Trump nos Estados Unidos. Um fenômeno que, com ecos também em países da Europa (Vox na Espanha, Fratelli d’Italia na Itália e Fidesz na Hungria), permitiu que uma série de vozes e grupos reacionários até então marginalizados canalizassem suas ideias, tendo alcance exponencial. Associado ao boom das redes sociais digitais, à consolidação de contrapúblicos com espaços virtuais de socialização política, à nova crise do capitalismo e a reacomodações geopolíticas, evidenciou a quebra dos consensos em torno do “politicamente correto” que essas novas figuras e movimentos vieram representar. Com especificidades nacionais, a irrupção dessas vozes significou um deslocamento da direita para a direita. Grupos neonazistas, racistas, xenófobos, antifeministas, homofóbicos, fundamentalistas, tradicionalistas, armamentistas e antiambientalistas foram amplificando seus canais de difusão e, em alguns casos, se amalgamando ao antiestatismo ultraliberal. Um contexto favorável para a disseminação de teorias conspiratórias – como a QAnon, associada à ideia de uma elite mundial que comanda um esquema de tráfico internacional sexual de crianças – que têm crescido de modo alarmante e vêm sendo manipuladas na batalha contra a ampliação e o respeito dos direitos das mulheres e sujeitos LGBTQIA+, embandeirada em chave neopentecostal pela atual senadora e ex-ministra Damares Alves.
E, assim como a “família liberal-conservadora” tem canais de conexão global, o Foro de Madrid e a Conservative Political Action Conference (CPAC), renovada com a gestão de Matt Schapp, têm cumprido um importante papel na articulação e internacionalização, mas sem perder as tramas do poder histórico nacional. Vale lembrar que a realização do CPAC Brasil 2022 contou com o patrocínio da rede social norte-americana GETTR, que buscava sem êxito ser uma alternativa para disseminação de fake news, mas também da Associação de Produtores de Soja de Mato Grosso (Aprosoja-MT), defensora dos interesses do agronegócio e implicada nos atos antidemocráticos após a vitória de Lula.
Como proposto pelos cientistas políticos Christian Lynch e Paulo Henrique Casimiro, entender a trama dessas outras direitas da óptica do populismo reacionário permite capturar não apenas a performance política expressa no líder ou a referência desse fenômeno nos diferentes casos nacionais, mas, sobretudo, o caráter destrutivo das ideias mobilizadas. A proposta não é conservar, como professa a primeira família de direitas, e sim destruir. Trata-se de uma direita que busca conter o avanço das pautas de justiça e inclusão social e acabar com a débil institucionalidade democrática. Como repete Milei, contrariando o aforismo peronista, “viemos para terminar com a falácia de que onde há uma necessidade nasce um direito”.
Essa direita à direita, ou direita radicalizada, é produto de um clima que entrelaça a expansão da comunicação digital a uma nova crise generalizada dos horizontes prometidos pela social-democracia e as esquerdas estranguladas quando alcançaram o governo. Como argumenta o sociólogo Pablo Stefanoni, essa direita se apresenta como rebelde à ordem, num jogo discursivo tingido de antissistema que parece efetivo para canalizar a indignação diante da falta de respostas das democracias atuais às descumpridas promessas de ascensão ou de justiça social. Isso não significa que atuem por fora do sistema político, que silenciem os passados autoritários e menos ainda que desprezem a mobilização dos imaginários anticomunistas. Pelo contrário, é a mobilização radicalizada de enquadramentos dissonantes e contraditórios entre passados, presentes e futuros que resulta efetiva para capturar com utopias regressivas e antidemocráticas a atenção social indignada, canalizando espasmos de rebeldia antissistema e alimentando a contraditória percepção de que o avanço dos direitos significa uma ameaça às frágeis conquistas e/ou privilégios individuais. Enquanto isso, setores da esquerda comportada no jogo da democracia tolerada são colocados como expressão do status quo a destruir.
Como a esfinge de Tebas, a presença dessas direitas alternativas parece ameaçar com o ultimato “decifra-me ou te devoro”, enquanto a direita da geração anterior, esgotada do abate, aguarda as sobras do banquete familiar.
*María Julia Giménez é doutora em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com bacharelado e licenciatura em História pela Universidad Nacional del Sur, mestrado em Historia y Memoria pela Universidad Nacional de La Plata e mestrado em Ciências Sociais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Realizou instâncias de pesquisa na Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales, no México, e na Université de Toulouse, na França.
Referências bibliográficas
Christian Lynch e Paulo Henrique Casimiro, O populismo reacionário: ascensão e legado do bolsonarismo, Contracorrente, São Paulo, 2022.
Pablo Stefanoni, ¿La rebeldía se volvió de derecha? [A rebeldia virou para a direita?], Siglo XXI, Buenos Aires, 2021.