Amuleto

Auxilio Lacouture, narradora e protagonista do romance, tem a densidade onírica e o colorido tristonho das figuras de Remedios Varo. Essa comparação provavelmente não vai funcionar, pois no Brasil quase ninguém sabe quem foi essa pintora. Sorte nossa que o Google esteja aí justamente para, com um clique, encher o monitor dos curiosos com dezenas de suas pinturas delirantes. A pintora visionária que, além do próprio Bolaño e de vários escritores e artistas de carne e osso, também é personagem desse romance sobre a corrosão da Cidade do México pela acidez do tempo.
Se 1968 foi o ano em que os universitários declararam guerra ao totalitarismo, também foi o ano em que este revidou com o dobro de determinação. Em setembro de 1968 as tropas militares invadiram a Universidade Autônoma do México, a maior da América Latina. O episódio é a moldura que sustenta os devaneios da heroína. Auxilio Lacouture não é mexicana nem universitária, é a andarilha uruguaia que se autoproclama “a mãe de todos os poetas”, faz diversos bicos pra viver e se esconde no banheiro da Faculdade de Filosofia e Letras quando os militares chegam. Para escapar da violência, fica nesse banheiro por muito tempo, apenas com suas memórias, recompondo o passado e o futuro.
Auxilio é dessas personagens ingênuas e cativantes, que ficam na memória por muito tempo. “Penso nas coisas mais descabidas e inoportunas nos piores momentos”, reconhece. Suas descrições e seus comentários são sempre certeiros e luminosos, como o de uma criança tocada pela poesia. Acompanhando sua aventura, de repente a capital mexicana torna-se a cidade mais literária do mundo, acendendo em nós a vontade de viver lá.
Terminada a leitura, fica certa saudade, sinal de que a personagem é consistente, viva. Auxilio também aparece no romance anterior do autor, o célebre Os detetives selvagens, de 1998. Mas em Amuleto, como protagonista, suas ruminações são muito mais violentas, dolorosas e selvagens.