CLARICE,
“Tudo no mundo começou com um sim.” A máxima que abre A hora da estrela foi o primeiro contato de Benjamin Moser com Clarice Lispector. O americano estudava português no Texas quando leu o último livro publicado em vida pela escritora. Anos depois, o sim de Moser a Clarice pode ser experienciado nas 648 páginas da biografia Clarice, (lê-se “Clarice vírgula”), que a Cosac Naify lança no Brasil, com foto de Claudia Andujar e texto da crítica Yudith Rosenbaum.
O relato de Moser humaniza o “monstro sagrado”, sem simplificações, ao apresentar Clarice em diversos papéis: judia, filha, irmã, estudante, jornalista, não correspondida no amor, mulher de diplomata, divorciada, mãe, amante, amiga, dona de casa, patroa, no divã dos psicanalistas, linda, marcada pelas cicatrizes de um incêndio… Numa narrativa envolvente –, em tradução de José Geraldo Couto, o autor parte de dados concretos para ir além do episódico num salto de interpretação.
Baseado em pesquisa inédita, o biógrafo reconstitui o percurso da família Lispector, na Ucrânia, na virada da década de 1910 para 1920. No cenário brutal dos pogroms, a mãe de Clarice é vítima de um ataque que a deixa com sífilis, doença incurável na época. Movida por uma crença local que prescrevia a gravidez para tais casos, Mania concebe Chaya, que significa “vida”. Sob o peso da missão falhada de salvar a mãe da morte anunciada, nasce aquela que se tornaria a maior escritora do Brasil e uma grande culpa. O fato até então desconhecido inspira em Moser uma leitura sensível sobre a polêmica relação entre vida e obra literária, e que aponta laços com a tradição mística judaica na busca e recusa de Deus via escrita.
“Meus Deus, só agora me lembrei que a gente morre. Mas – mas eu também?!” Tomando a pergunta feita no final do mesmo A hora da estrela como se fosse da própria Clarice (se é que não é), essa biografia responde desde o título: “Clarice vírgula”, nunca um ponto final.