Eles eram muitos cavalos
Um livro com cheiro de cidade. Setenta microcontos, setenta microvidas, sob o olhar atento da metrópole. Degusta melhor o texto o leitor que estiver sentado em um banquinho da Praça da República, no centro de São Paulo, ou balançando dentro do ônibus ou do metrô (lotado de preferência e, se puder, de pé, equilibrando o livro com uma das mãos).
É o esforço do mineiro radicado paulistano, Luiz Ruffato, de retratar vidas invisíveis da monstruosa São Paulo. O morador de favela, o cachorro sarnento, um rato, um pregador evangélico do centro da cidade, um pai burguês incapaz de dar atenção ao filho, a óbvia classe média e seus preconceitos, um panfleto, um horóscopo ou um índio alcoólatra. É a volta ao dia em setenta mundos, já que as narrativas se desenvolvem ao longo do dia 9 de maio de 2000. Ao cotidiano da metrópole, misturam-se neologismos, palavras inglesas, marcas, onomatopéias variadas e experiências lingüísticas e gráficas (no meio do livro há uma página em preto).
A obra deve muito de sua inspiração a outras formas de arte, como o cinema, a música e, em especial, a fotografia. O sujeito do livro, seu personagem principal, é a cidade por onde passam as vidas. A narrativa é estilhaçada, confundindo prosa, poesia, conto e quase qualquer forma textual possível. Este livro, por sua natureza, é capaz de irradiar algo para além de si mesmo.
Nas palavras de Julio Cortázar, o conto deve “fazer com que até um vulgar episódio doméstico, como ocorre em tantas admiráveis narrativas de uma Katherine Mansfield ou de um Sherwood Anderson, se converta no resumo implacável de uma certa condição humana, ou no símbolo candente de uma ordem social ou histórica. Um conto é significativo quando quebra seus próprios limites”. Ou seja, quando chega à ruptura do cotidiano.
Por cumprir com maestria essa premissa e por sua preocupação e comprometimento social, no retrato de um tempo que precisa ser transformado, a obra de Ruffato é um importante instrumento de reflexão e crítica.