Ivone Lara: a dona da melodia

Não é fácil escrever sobre um mito. O mito se impõe, sua grandeza esconde fraturas, a idolatria obscurece a reflexão. Conheci Dona Ivone Lara na década de 1990, quando tive o prazer de dividir o palco duas vezes com sua figura transcendental. Foram experiências de tirar o fôlego.
O desafio de narrar a trajetória de Dona Ivone Lara é enfrentado por Kátia Santos, a partir de sua posição de fã, e produzindo um texto “confessadamente romântico”. Kátia percorre a trajetória de Dona Ivone desde os tempos de criança, a escola de enfermagem, o trabalho, o casamento, os filhos e sua vitoriosa carreira artística, segurando na mão mística do Encantado e inebriando-se com o mundo do samba e as melodias da sambista. No caminho, passa por figuras lendárias como Silas de Oliveira, Delcio Carvalho (a quem dedica um lindo capítulo) e Bruno Castro; descreve histórias, casos, shows e discos, seduzindo o leitor pela figura mágica da compositora. A melodia aparece como signo de seu “dom divinal” (de novo o romantismo), apesar de não haver maiores explicações sobre esse elemento estilístico, que pode confundir o leitor pouco íntimo do repertório da sambista.
Mesmo tendo Dona Ivone Lara como tema de sua tese de doutorado, a autora desvia de academicismos e produz um texto fluente e bastante emocionado. Contudo, tal opção pode frustrar o leitor que porventura esteja em busca de uma reflexão mais aprofundada sobre o samba e a compositora, uma vez que as lacunas sobre sua trajetória são plenamente assumidas pela autora. É possível notar também, no tom romântico adotado, pouco espaço para tensões e contradições na trajetória de Dona Ivone, sobretudo aquelas relacionadas às restrições machistas do universo do samba.
Mas Kátia não escreveu, neste livro, um trabalho acadêmico. Escreveu uma não-biografia (ela mesmo frisa) de fã para registrar o enorme talento da compositora, e para encantar novos e velhos ouvintes de suas melodias magistrais.