NÓS QUE ADORAMOS UM DOCUMENTÁRIO

É possível um livro de poemas ser autobiográfico? Parece que não totalmente, já que o poema é a representação de algo, uma imitação da realidade, o que coloca o poeta como o tal “fingidor”, um falsário. Nesse sentido, o terceiro livro de poemas da escritora paulista Ana Rüsche, Nós que adoramos um documentário: uma autobiografia, se apresenta, de cara, como uma provocação. A alusão irônica ao gênero audiovisual “documentário” já nos dá a pista sobre essa falsa autobiografia, sobre o impasse de trazer a memória à superfície e transformá-la em realidade.
A partir dessa intenção autobiográfica, com a escolha de elementos reais, e também da impossibilidade de a poesia realizar um documentário, a autora tece considerações sobre sua infância, se coloca em um cotidiano do seu tempo presente e faz previsões para o futuro.
Dividido em três partes, “I – Município de Ubatuba, janeiro de 1983”, “II – Município de São Paulo, outubro de 2009”, “III – Município de Ubatuba, janeiro de 2037”, o livro traz belos poemas, de uma melancolia latente, em que a chuva e as cores de tons cinzas ou um “amarelo solitário” são presentes do início ao fim: “Rogamos tanto às noites que se faça novamente escuro”.
Nessa Ubatuba da infância, é a menina cor-de-rosa que não usa biquíni, não quer ficar “falada” e é invisível aos meninos, uma água-viva translúcida. A questão do corpo feminino segue suas problemáticas no tempo presente da escrita, em São Paulo (2009), com as intervenções cirúrgicas, ou um corpo etéreo, virtual do futuro.
Ana Rüsche, neste novo livro, mantém a questão do feminino como um eixo temático de sua obra, com dicção própria, em que a clareza e, às vezes, a crueza de seus versos abrem diversas leituras e provocam o leitor. Mas aqui, diferentemente de seus livros anteriores, a complexidade de seus poemas é buscada por meio das pequenas tristezas de uma vida, quem sabe real, mas também inventada como forma de enfrentamento de uma personagem inquieta e incomodada.