Porta do Sol


    É tentador ler um livro como este do libanês Elias Khoury de um fôlego só. Construído com base em diálogos fundamentalmente narrativos, o romance deixa-se vazar por rompantes preciosos de poesia que o leitor talvez deva enfrentar com mais tempo. Quem lê bons livros de poemas sabe do que falo. Se os textos se revelam bem concebidos, ele é impelido a ler o conjunto de uma sentada. Ao fim, terá experienciado, num tempo deveras curto, o tempo deveras grande que cristalizou o poema perfeito, com seu fundo sem fim, dimensão do que em geral se identifica como a vida, os significados profundos da existência. Este premiado Porta do Sol, mais um romance árabe bem traduzido por Safa Jubran, pede a seus leitores o bom tempo da temperança. A narrativa emerge dos idos de 1947, quando assentamentos judeus nas colônias inglesas da Galiléia e de Jerusalém dão início ao desbaratamento da existência material e cívica dos palestinos, e percorre o tempo de idas e vindas da memória dos seus narradores, testemunhas protagonistas de carne, osso e nervos dos propalados conflitos israelo-palestinos. Ao fim de cada dia, o enfermeiro Ayyub narra, à moda de Sherazade, um pouco das histórias de Yunis, velho combatente da resistência palestina, engastando, de relato em relato, personagens e episódios de uma existência hostil, mas nunca esvaziada do sentido de vida, confrontando o amor com a sensação de perda. O insólito, para o bem e para o mal do romance, é que o ouvinte das narrativas é o mesmo combatente, herói mudo, em coma no leito do hospital. O enfermeiro luta para conservar-lhe a dignidade asseando-o, alimentando-o e ungindo-lhe o corpo, como que a evitar que o heroísmo veja-se reduzido ao simbolismo de um galho de laranja já apodrecido na parede: “Devemos comer a laranja da Palestina… em vez de pendurar sua pátria na parede, derrube a parede e vá. Devemos comer todas as laranjas do mundo sem temer; nossa pátria não são laranjas, somos nós”.