Segurança alimentar: programas de governo são incomparáveis
Quando o assunto é segurança alimentar, os programas são incomparáveis. O Brasil de Bolsonaro não sente fome. Ciro fala rapidamente sobre o assunto e o programa de Lula desce a um nível de profundidade muito maior.
Quando o assunto é segurança alimentar, os programas são incomparáveis. O Brasil de Bolsonaro não sente fome. Ciro fala rapidamente sobre o assunto e o programa de Lula desce a um nível de profundidade muito maior. A principal razão disso é, provavelmente, a centralidade dada pelo programa de Lula à questão. Logo na primeira página, o programa afirma que o principal compromisso da chapa de Lula é com a “restauração das condições de vida da imensa maioria da população brasileira” já afirmando da necessidade urgente do combate à fome. Ciro, por outro lado, aponta para um objetivo parecido, mas cuidou mais de conectar o assunto à renda, falando bem menos sobre o tema especificamente. Bolsonaro ignora o tema. A palavra fome aparece uma vez nas 48 páginas do programa, e ainda sim em uma citação de um relatório da ONU de 1994.
O desequilíbrio das citações nesse texto será inevitável. Também é inevitável perceber o desprezo de Bolsonaro pela questão. Seu diagnóstico inicial, aquele que afirma que seu governo foi exitoso no combate a miséria, não fala dos 125 milhões de brasileiros que vivem em insegurança alimentar. O assunto aparece de forma completamente protocolar, em um subitem do capítulo “Segurança e defesa”. A palavra “orgânico” também não aparece no programa. Não há nenhum indicador do que seria uma alimentação saudável, e isso é tudo o que o atual presidente disse sobre o assunto.
Ciro, por sua vez, é preciso destacar, tem um esforço de deixar o texto mais fluido. Mas ele trata pouco do assunto. O programa cita logo no início os dados alarmantes sobre a questão no Brasil, afirma que a implementação da renda mínima será decisiva para combater a fome e afirma a necessidade de outras medidas como a retomada dos estoques reguladores e o acesso ao gás de cozinha. Mas para por aí. O programa se dedica, por exemplo, a falar mais sobre o combate à corrupção do que à fome. E quando fala do assunto, integra de forma automática à questão da renda, o que já se mostrou, por si só, insuficiente na experiência do auxílio Brasil.
É evidente que a questão da renda é preponderante para o combate à fome. A queda da renda média do brasileiro aconteceu ao mesmo tempo que o país voltou para essa tragédia. Há a necessidade de intensa articulação entre as políticas de redistribuição de renda e segurança alimentar, mas há outros assuntos que precisam ser abordados, em especial para capacidade de sustentação do cenário de um país sem fome a longo prazo.
Lula aponta para uma concepção mais estruturante sobre o tema. Tanto é que o assunto aparece em diversas partes do programa. Para Lula, a fome é uma questão de política de desenvolvimento econômico, ambiental, social e até mesmo de relações internacionais. Lula é o único dos três candidatos que trata o combate à fome como uma questão de soberania nacional.
O programa do ex-presidente traz a necessidade de uma política nacional de abastecimento, citando também a retomada dos estoques reguladores e políticas de financiamento para a produção de alimentos por pequenos agricultores. Trata ainda da necessidade de estímulo à agricultura orgânica, inclusive através das compras públicas. E aponta que é necessário “um novo modelo de ocupação e uso da terra urbana e rural, com reforma agrária e agroecológica, com a construção de sistemas alimentares saudáveis, incluindo a produção e consumo de alimentos saudáveis”. com destaque à importância do pequeno agricultor e da agricultura familiar para isso.
Lula defende ser necessário “repensar o padrão de produção e consumo e a matriz produtiva nacional, com vistas a oferecer alimentação saudável para a população” através de medidas que visem a redução de custos de produção e preços de alimentos frescos e de boa qualidade. O programa ainda conecta a questão ambiental e da transição ecológica com o modelo de produção e consumo de alimentos.
A opção por citar o “lado positivo” das políticas é uma opção absolutamente natural em programas de governo, em especial daquele que lidera as pesquisas. Mas é preciso dizer que, apesar de sinalizar uma leitura absolutamente consistente sobre o tema, há dilemas práticos que precisam ser enfrentados.
O principal deles é o desequilíbrio do agronegócio brasileiro com relação à produção de proteína animal. 40% da soja brasileira é destinada à produção de farelo, ração animal, tanto para o mercado brasileiro quanto para o mercado exterior. Ainda, 44% da produção é destinada à exportação do grão em natura. Pode-se afirmar que mais da metade do principal produto da pauta de exportação brasileira serve à produção de proteína animal. Soma-se a isso os problemas do setor com o desmatamento e o uso excessivo de agrotóxicos.
A pecuária, que toma conta de outra parte importante da responsabilidade pelo desmatamento, conta ainda com a questão de ser uma das principais emissoras de gases de efeito estufa no Brasil. Os excessos da indústria da carne podem custar caro ao futuro do Brasil, têm responsabilidade sobre o avanço inaceitável do desmatamento e não contribuíram para evitar a volta da fome no país.
O programa de Lula desvia desses temas reafirmando a necessidade do incentivo a um sistema de produção voltado à transição ecológica, com vistas à agroecologia. Mas isso não será suficiente se não houver um esforço concentrado ao menos de uma visão de médio prazo para aumentar a tecnologia, poupar o solo e diminuir o impacto ambiental do modelo agroindustrial. É crucial afirmar que o modelo de produção e consumo abusivo de carne e alimentos ultra processados não auxiliam na implementação de um modelo sólido de soberania alimentar e segurança nutricional a médio e longo prazo.
É evidente que o combate à fome deve ser a prioridade zero na realidade política brasileira. É bastante provável que o assunto seja um elemento prioritário para a definição do resultado eleitoral deste ano. Não há tempo para reestruturar o modelo de produção de alimentos para que se acabe com a fome só depois disso. A fome tem pressa, a fome dói, a fome provavelmente é o retrato mais cruel da desigualdade em um país que produz mais do que precisa para que a população inteira possa se alimentar dignamente. Uma criança com fome tem o seu desenvolvimento motor e intelectual comprometido. Um povo com fome é um povo sem saúde. Uma sociedade que não é capaz de evitar uma tragédia dessa precisa rever o seu sentido de existir. É preciso evitar essa tragédia hoje. É preciso evitar que as gerações futuras vivam essa tragédia.
E a segurança alimentar e nutricional, a longo prazo, precisa da rediscussão do modelo do agronegócio predatório que prejudica o meio ambiente, e da correção dos abusos do consumo e da produção de proteína animal e de alimentos ultra processados com baixíssimo valor nutricional. A longo prazo, a soberania alimentar será garantida se ainda houver solo para plantar, meio ambiente para dar condições para as lavouras existirem, florestas para garantir a biodiversidade e o ecossistema. A extinção definitiva da fome passa pela emergência da questão ambiental e tomara que isso ainda seja possível.
Antonio Carlos Souza de Carvalho, advogado e cientista político, especialista em Economia do Trabalho e Sindicalismo.
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O mês de outubro revelará as escolhas do povo brasileiro para a composição dos governos dos estados e do país, assim como das câmaras estaduais, da câmara dos deputados e de 1/3 do senado federal. Isso se dará em um dos momentos sociais e políticos mais difíceis do Brasil após a sua redemocratização. Os indicadores sociais, de emprego e renda, a violência e a intolerância política revelam faces assombrosas de um país historicamente atingido pela desigualdade, pelo racismo e pelo machismo. Nesse cenário tão delicado, poucos serão os momentos de debate de ideias e de projetos de nação. Esse especial, feito em parceria com Juliana Borges e Antonio Souza de Carvalho, tem o objetivo de analisar e comparar os programas de governo dos principais candidatos na disputa presidencial a partir de temas essenciais ao presente e ao futuro do povo brasileiro.
Foram escolhidos os programas de governo dos candidatos com mais de 5% de intenção de votos nas principais pesquisas, e os documentos utilizados para análise são os disponibilizados por cada um dos candidatos no site do TSE, junto ao registro de cada candidatura.