Um supersoldado saído dos laboratórios
A corrida armamentista se diversifica. Além dos equipamentos convencionais e nucleares, os autômatos de combate conhecem um desenvolvimento fulgurante. Mas as máquinas não são tudo. Nas coxias, pesquisadores trabalham para aumentar a performance do soldado humano, demasiado humano, e portanto muito frágil aos olhos dos Estados. A que preço?
Diante de armas cada vez mais aperfeiçoadas, o soldado “se torna o elo mais fraco” dos sistemas defensivos. Essa constatação da Agência Norte-Americana para os Projetos de Pesquisa Avançada da Defesa (Darpa), formulada num relatório não confidencial datado de 2002,1 faz pensar em outra: ainda que os robôs tomem o campo de batalha, o Exército não pode funcionar sem soldados. A agência, portanto, mobilizou o know-how disponível para melhorar o corpo e a mente dos combatentes, e produzir um “soldado aumentado”.
Desde os anos 1990, a Darpa começou a se interessar pela biologia com a intenção de transformar o corpo humano e prepará-lo para a guerra. Em 2014, ela reuniu profissionais das ciências da vida e físicos no Escritório das Tecnologias Biológicas (Biological Technologies Office). “A partir deste dia”, anunciou a agência, “a biologia se junta às ciências fundamentais, que representam o futuro das tecnologias de defesa.” A iniciativa visa sobretudo desenvolver os procedimentos destinados a “otimizar as capacidades de combate”2 do soldado. Se os Estados Unidos dominam, e de longe, a corrida dos investimentos nesse campo, os montantes permanecem obscuros. Em 2017, a Darpa dispõe de um orçamento de US$ 2,97 bilhões. Mas a pesquisa e o desenvolvimento do supersoldado são financiados por meio de um emaranhado complexo de projetos conduzidos pela agência. Por exemplo, o programa Análise e Adaptação da Resiliência Humana, com uma dotação de US$ 18 milhões a fim de “otimizar a saúde do combatente”, encontra-se num subconjunto chamado Ciências Médicas Operacionais de Base.3
Outros países, como a Rússia e a China, interessam-se bastante por essas questões, mas se mostram mais avaros em informações confiáveis. A provável proliferação das técnicas de otimização biológica numa estrutura militar ao longo das décadas que estão por vir convida a se debruçar sobre as questões éticas e jurídicas, e, antes de tudo, a definir “homem aumentado”. A expressão designa um conjunto de tecnologias destinadas a melhorar o corpo humano para além de seus parâmetros naturais. Por exemplo, se medimos a visão humana numa escala de 1 a 10, qualquer medida tomada para corrigir uma vista inferior a 10 corresponde a um “tratamento”, enquanto uma melhora da vista para além desse valor indica “aumento”. O termo não inclui os dispositivos externos que não implicam alteração biológica, como os exoesqueletos, os óculos de visão noturna e os equipamentos que permitem aos soldados escalar superfícies verticais como se fossem lagartos..
Eliminar as emoções?
O Exército busca “aumentar” seus soldados não apenas para melhorar o desempenho deles, mas também para reduzir custos: um pequeno número deles poderia, assim, realizar as mesmas missões que grandes unidades “normais”, o que criaria menos ex-combatentes para cuidar. Enfim, numa época em que a opinião pública vê com maus olhos o envio de tropas de solo, esses soldados de infantaria aperfeiçoados limitariam as perdas humanas. No entanto, especialistas em ética se colocam na defensiva em relação às dificuldades a longo prazo de sua reintegração na vida civil.
Vários projetos de aumento das capacidades físicas se concentram na engenharia metabólica, na vigília prolongada, na resistência à perda de sangue e nas terapias genéticas (sobretudo para suprimir a dor). O programa que visa criar um “soldado com metabolismo superior” coloca ênfase na otimização das funções fisiológicas, como “modificações nutricionais” que permitem aos soldados sobreviver por longo tempo sem se alimentar. A Darpa igualmente financiou pesquisas universitárias sobre bactérias que ajudariam os humanos a digerir e a tirar nutrientes de substâncias habitualmente não comestíveis. À medida que a genética avança, as possibilidades de aperfeiçoar os processos neurofisiológicos também se multiplicam.
Essa obsessão não é nova. O Exército sempre tentou melhorar o desempenho de seus soldados, com métodos que, vistos em retrospecto, parecem rudimentares. Na Batalha de Austerlitz, em 1805, duas divisões de infantaria napoleônicas, encarregadas de tomar o Planalto de Pratzen, receberam uma “ração tripla de licor”, o que despertou um “surto de entusiasmo” nas tropas. Quando combatiam contra os britânicos, no século XIX, os zulus da África do Sul recebiam de seus xamãs uma variedade de uma erva semelhante à Cannabis sativa que os ajudava a lutar com “fanatismo, dedicação e fúria”.4 Os psicoestimulantes, especialmente as metanfetaminas, que permitem lutar contra a fadiga, foram administrados maciçamente aos soldados nazistas e japoneses durante a Segunda Guerra Mundial. Em altas doses, eles podem provocar reações negativas, como excitação ou pânico. Durante a Guerra do Vietnã, o recurso maciço às anfetaminas, apelidadas de go pills, provocou uma onda de vício no Exército. Ao longo das últimas décadas, a pesquisa produziu soluções mais seguras, como a Ritalina e o Modafinil (vendido sob a marca Provigil). O Ministério da Defesa britânico encomendou 5 mil comprimidos em 2001, ano em que as forças aliadas lançaram sua ofensiva no Afeganistão, e 4 mil no ano seguinte, antes da invasão do Iraque.5
Os avanços da neurologia e das técnicas que dela decorrem poderiam muito bem apressar a data de validade dessas pílulas. Desde abril de 2013, a Darpa se associou ao gigantesco projeto de pesquisa sobre o cérebro por meio de técnicas avançadas inovadoras (Brain Research through Advancing Innovative Neurotechnologies, Brain) lançado pelo ex-presidente Barack Obama. As neurociências constam hoje de seus principais centros de interesse. A agência explora a neuroestimulação, que consiste em estimular o cérebro dos soldados com eletricidade a fim de facilitar a tomada de decisão, a assunção de risco e a disposição para enganar um interlocutor – uma faculdade útil para prisioneiros interrogados pelo inimigo. Outro programa trata das intervenções cognitivas, comportamentais e farmacológicas suscetíveis a “prevenir os efeitos deletérios do estresse dos combatentes”.6
Mais resistente, mais animado, menos estressado: o soldado sonhado deve também aumentar suas capacidades intelectuais. Trabalhos sobre a neuroplasticidade almejam acelerar o processo de aprendizagem ativando nervos periféricos de forma indolor. Isso reduziria o tempo e o dinheiro consagrados ao treinamento dos soldados, os quais poderiam, assim, aprender uma língua estrangeira, guardar as instruções ou memorizar mapas das zonas de posicionamento muito mais rapidamente. Como explicam com prazer seus líderes, esse programa “não se contenta em recuperar funções perdidas: ele tende a desenvolver nossas capacidades para além do padrão”.7 Esse é igualmente o caso do sistema de engenharia neural (Neural Engineering System Design) promovido pela agência. Trata-se, no caso, de conceber uma interface que permita a transferência de dados entre o cérebro e aparelhos eletrônicos. Uma vez implantado, esse “dispositivo biocompatível” sem fio e com 1 centímetro cúbico “serviria de tradutor entre a linguagem eletroquímica dos neurônios e a linguagem informática”.8
Mas como justificar, num plano ético, o desenvolvimento de um soldado aumentado? Como regra geral, os pesquisadores militares apresentam a melhora dos desempenhos humanos como servindo a fins morais: uma menor presença humana no campo de batalha e, portanto, menos perdas; uma melhor tomada de decisão, em especial para o pessoal que trabalha por longas horas a fio. Mas, para além dessas considerações, os motivos de preocupação são muitos.
O primeiro tem a ver com o direito internacional humanitário. A Convenção de Genebra e seus protocolos adicionais exigem que os Estados submetam a um exame jurídico todas as novas armas e métodos de guerra. Ora, na maior parte dos casos, os aumentos alteram apenas o corpo dos soldados e não entram na categoria “armas”. Mas as dificuldades vão surgir quando certas tecnologias de aumento comportarem uma capacidade ofensiva – por exemplo, uma interface cérebro-computador que comanda drones –, fazendo do soldado aumentado cujo corpo abriga esse aparelho um alvo legítimo para o inimigo.9
Do ponto de vista da doutrina da “guerra justa”, que impõe o respeito às regras de combate, o aumento da capacidade humana contém em si consequências nefastas. O especialista em ética militar Ned Dobos se pergunta sobre as repercussões de uma eliminação das emoções, com frequência acusadas de provocar “crimes de raiva”. Os esforços dos farmacologistas para conceber betabloqueadores que impeçam a formação de lembranças traumatizantes colocariam os soldados num estado de “morte emocional” que os tornaria insensíveis ao assassinato?10
A própria noção de tortura poderia evoluir com um corpo de soldado modificado para suportar um patamar de dor mais elevado. Em teoria, a tortura se define pela intenção do torturador; mas os processos judiciários se mostram complexos se o combatente que é vítima dela não guarda lembranças precisas a respeito, com nenhuma ou quase nenhuma dor física estando associada a ela. O oficial da Força Aérea australiana, Ian Henderson se preocupa com o tratamento reservado a um prisioneiro de guerra dotado de uma visão superdesenvolvida e de uma audição que integre, por exemplo, um receptor de rádio.11
As noções de consentimento esclarecido e de respeito aos direitos humanos suscitam também um debate que acabará por ser tema da competência dos tribunais nacionais. Nos Estados Unidos, por exemplo, um soldado que se recuse a ser vacinado incorre em sanções em virtude do código de justiça militar. Esse texto proíbe também desobedecer aos superiores e às ordens militares. Se a lei colocasse o aumento da capacidade no mesmo plano dos cuidados médicos, os soldados dificilmente poderiam escapar a ele. É bem verdade que se alistar no Exército implica renunciar a uma parte de sua autonomia; mas no futuro poderia ser instaurado um direito de concordar ou não com as intervenções irreversíveis que afetariam de maneira adversa a “liberdade cognitiva” do soldado.12
No entanto, permitir aos militares recusar os processos de aperfeiçoamento daria ensejo a outras complicações. As tropas fisiologicamente modificadas combateriam ao lado das outras? Como essa diferença repercutiria na solidariedade e na coesão necessárias no Exército? Em 1997, um grupo de militares defendia o uso de psicoestimulantes para as operações aéreas, reafirmando o princípio segundo o qual “a utilização de drogas para melhorar o desempenho esportivo é talvez ‘imoral’, mas a guerra não é um evento esportivo”.13 Esse ponto de vista, no entanto, subestima a importância do sentimento de igualdade no seio de um mesmo contingente.
O Ministério da Defesa dos Estados Unidos considera a honra e a lealdade como os princípios fundamentais do direito da guerra: “um certo respeito mútuo entre as forças antagonistas” e o reconhecimento do fato de que os combatentes pertencem à mesma profissão”.14 Um soldado modificado seria condecorado se sua coragem resultasse de intervenções neurais? Se não tomarmos cuidado, o aumento corre o risco de perturbar valores militares essenciais.
Mais fundamentalmente, ele reforçará as assimetrias tecnológicas mundiais, já agravadas pelos drones. Numa entrevista concedida em 2013, o general da reserva Stanley McChrystal admitiu que o uso dessas máquinas no Afeganistão tinha deixado uma impressão desastrosa. Além de suas inúmeras vítimas, elas dão origem a um ódio visceral contra os Estados Unidos.15 O posicionamento de soldados aumentados poderia aprofundar ainda mais essa desigualdade e exacerbar a violência.
*Ioana Puscas é pesquisadora do Centro de Política de Segurança de Genebra.