Política Externa Conservadora: uma nova matriz no Brasil?
O governo Bolsonaro apresenta uma guinada radical na inserção externa do Brasil. Essas mudanças devem ser compreendidas através do entendimento da visão de mundo do chanceler e do presidente, bem como de seus ideólogos, como Olavo de Carvalho. O movimento conservador no Brasil é bastante incipiente e fortemente influenciado pela tradição conservadora dos EUA. Porém, isso representa uma grande fragilidade: é possível que se desenvolva uma política externa amarrada a um ponto de vista social e internacional desenvolvido fora do Brasil?
“A Divina Providência uniu as ideias de Olavo de Carvalho e a determinação e o patriotismo do novo presidente eleito Jair Bolsonaro”, escreveu o novo chanceler Ernesto Araújo em publicação na revista conservadora “The New Criterion”. Mesmo que não se admita, para entender a nova política externa brasileira é preciso compreender as ideias defendidas pelo youtuber, e dito filósofo, Olavo de Carvalho, responsável por indicar o atual chanceler à pasta das Relações Exteriores ao presidente Bolsonaro. Uma breve análise das ideias centrais que orientam a visão internacional de Olavo de Carvalho e Ernesto Araújo revela um padrão inteiramente novo pelo qual a política externa está sendo conduzida. Mesmo em períodos de guinada na política externa, como no Governo Dutra, na ditadura militar e no Governo Collor, houve uma manutenção de diversos princípios tradicionais que fazem parte da história do Itamaraty. O que está sendo feito agora, porém, é uma transformação radical, difícil de ser compreendida e que, portanto, necessita uma atenção e cuidado redobrado por parte dos analistas de política externa, pois configura claramente uma nova matriz de atuação internacional.
A política externa brasileira tradicionalmente fora conduzida por princípios consolidados a partir do trabalho do Ministério das Relações Exteriores e da prática diplomática, destinada a garantir uma inserção externa soberana, autônoma, pacifista e voltada ao desenvolvimento. O Itamaraty, historicamente, por seu insulamento burocrático, resistiu a mudanças bruscas na gestão da política externa, sobretudo devido ao domínio (ou monopólio) da informação sobre as questões internacionais. Isso dificultou aos presidentes uma condução personalista das relações externas, baseada em preferências pessoais ou opiniões sem embasamento. Além da racionalidade burocrática, o pragmatismo e a continuidade têm sido marcas da diplomacia brasileira há muito tempo. O pragmatismo baseia-se na ideia de desenvolver relações pautadas no interesse de adquirir maior poder e desenvolvimento ao país, sem considerações de caráter ideológico. A continuidade afirmou-se no sentido de garantir uma coerência à atuação diplomática para além das trocas de governo, preservando a estabilidade e a confiança no estabelecimento de acordos e contratos com o país. Por último, vale destacar, constantemente a política externa brasileira voltou-se a uma de suas “matrizes” de inserção – o paradigma ‘americanista’ – que, diferentemente do paradigma ‘globalista’, centra suas atenções nas relações privilegiadas e próximas com os Estados Unidos, porém com o interesse pragmático de auferir ganhos através do contato mais próximo com a principal potência global. Mesmo essa última característica, que recorrentemente é invocada nas relações externas, está ameaçada pelo governo atual por este enxergar na relação atual com os EUA apenas o interesse em se aproximar da peculiar visão de mundo de Donald Trump, algo que pode ser efêmero.
Portanto, os princípios tradicionais da política externa brasileira mencionados acima estão postos em xeque com a mudança de governo no país em 2019. Em primeiro lugar, a racionalidade burocrática do Itamaraty está sendo substituída por uma gestão baseada na crença em teorias da conspiração pouco acadêmicas e pouco reconhecidas como válidas no mundo intelectual e político. Soma-se a isso um caráter de religiosidade e um olhar civilizacional na condução das relações externas, algo totalmente inédito. Olavo de Carvalho, autor do livro de cabeceira de Bolsonaro, e inspiração do chanceler Araújo, acredita que o internacionalismo liberal, o livre-comércio e a economia transnacional são fenômenos vinculados ao ideal do socialismo fabiano (uma vertente liberal socialista advinda da Inglaterra, comprometida com os valores do Bem-Estar Social, da paz e da justiça a nível internacional). Para ele, mesmo os grandes empresários internacionais estariam dispostos a reorganizar o mundo estabelecendo um grande Leviatã, acima das soberanias nacionais, impedindo o nacionalismo e a condução autônoma das políticas internas pelos Estados. Ao lado destas tendências estariam a ONU, a União Europeia e a China. Para além disso, a esfera internacional seria um ambiente de luta pelo combate à difusão do marxismo cultural, atrelado ao movimento gay e de gênero. A lógica por trás seria a seguinte: “já que a esquerda não conseguiu extinguir a propriedade privada, tal qual recomendava Marx em sua obra, ela aposta agora na subversão dos valores da família, pois destruindo a família estaria automaticamente destruindo a propriedade privada, como fim último”. Outro termo bastante debatido atualmente é o “globalismo”, utilizado por teóricos conservadores para descrever a soma de todos estes fenômenos entrelaçados.
Um adendo importante a ser feito aqui é que, quem é afeito ao estudo histórico, sabe em que contexto e em que local o uso de teorias da conspiração foi usado para orientar políticas externas e internas: Alemanha nazista dos anos 1930 e 1940. Hitler acreditava que os judeus estavam por trás da crise de 1929, da destruição da pátria alemã, bem como conduziam a revolução socialista na União Soviética. Isso fez com que sua política externa fosse conduzida tanto para a destruição do socialismo quanto do capitalismo liberal dos ingleses e norte-americanos. No âmbito interno, sabe-se bem no que resultou essa oposição aos judeus.

Um segundo princípio através do qual o Brasil conduziu sua política externa foi o pragmatismo, somado à visão de continuidade. Ambos se encontram ameaçados e por motivos semelhantes. O pragmatismo, na linguagem de relações internacionais, refere-se à prática de enfatizar o ganho, a melhoria, a utilidade, através de relações pontuais, objetivas, despidas de considerações morais e ideológicas. Entretanto, por mais contraditório que pareça, aquilo que mais é dito se combater no atual governo (a “ideologização” da política externa), é exatamente o que se faz. Ora, priorizar relações com Israel, Itália e Hungria, tradicionalmente fora das prioridades da política externa brasileira, por motivos de política interna, é a mais pura ideologização da diplomacia. Caso os governantes desses países sejam substituídos por novos, em eleições, de posição política diferente, as ‘relações especiais’ irão ser mantidas? Já os laços com Israel, importante parceiro econômico, fornecedor de tecnologias, deve ser mantida mesmo com as denúncias de corrupção recaindo sob o governo Netanyahu? E as inestimáveis perdas com a exportação de carnes para os países árabes em função da proximidade com Israel, não são exatamente a subversão do princípio do pragmatismo?
Com relação à continuidade e à visão de longo prazo, elementos basilares da política externa brasileira, ocorre o mesmo problema. As alianças temporárias por motivos de afinidade política, religiosa ou civilizacional, estão se sobrepondo aos laços tradicionais e históricos do país com parceiros que lhe fornecem, muitas vezes, mais do que “afinidade moral”, ganhos em economia, tecnologia, política, etc. Uma das crenças do atual chanceler brasileiro é de que o Brasil cumpre um papel importante em preservar os valores cristãos ocidentais, e para isso deveria se associar em um projeto global com a Rússia e os EUA[1]. Para além da crença cristã passar a ser elemento importante na condução da política externa, agora se acredita, também, que deve-se preservar a civilização judaico-cristã. Essa constituiria uma mesma matriz civilizacional vinculada ao ocidentalismo, supostamente ameaçado pelo multiculturalismo e pelas migrações. Para além disso, a transferência da embaixada brasileira de Tel-Aviv para Jerusalém possui motivações religiosas vinculadas à crença da Frente Parlamentar Evangélica brasileira de que o palco do apocalipse será a cidade de Jerusalém, bem como a conversão dos judeus ao cristianismo será sucedida da volta de Cristo[2]. Estas crenças estão longe de constituir uma visão pragmática da realidade internacional, que é cada vez mais múltipla e multipolar, com a ascensão da China e das economias asiáticas.
O terceiro ponto a ser destacado é a inauguração de um novo tipo de americanismo: o americanismo ideológico, em contraste com os tradicionais americanismos pragmáticos que permearam a política externa brasileira. A noção difundida em parte do imaginário popular de que, para que o país se desenvolva, deve seguir os passos dos americanos, se concretiza na tomada de decisão política, o que pode ser fatal dada a ausência de pragmatismo nesse alinhamento. No plano instrumental, ao observar-se o ascendente protecionismo dos EUA, as relações econômicas do Brasil com a potência podem ser pouco proveitosas, sobretudo no setor agrícola americano, fortemente subsidiado, concorrendo com a produção brasileira. A aproximação do Brasil com um país em que seu governo tende ao isolacionismo pode custar caro sob o olhar de outros países da comunidade internacional, justo em um momento em que a ordem liberal está cada vez mais debilitada, e a ascensão de um suposto “eixo iliberal” (conservador) pode não soar bem para potências europeias como França e Alemanha. Além disso, o americanismo ideológico brasileiro é longe de ser desejável para Rússia e China, podendo ter consequências institucionais no âmbito do G-20 e BRICS.
Em 2020 ocorrerão eleições presidenciais nos EUA. Caso Trump saia do poder, o maior pilar que sustenta as tendências internacionais atuais pode vir a desmoronar, e não restará ao Brasil legitimidade e influência para assumir essa função, sendo necessária toda uma reformulação estratégica, caso o Itamaraty não queira se tornar meramente ornamental nos últimos dois anos de governo. A perda de legitimidade americana perante os tradicionais parceiros europeus abre brechas para o Brasil contestar a ordem global e o domínio institucional junto de outros países intermediários. Diante disso, a equidistância entre China e EUA podeaia prover ganhos muito maiores do que o alinhamento normativo.
Apesar de todos estes distanciamentos da atual gestão externa do Brasil com o passado diplomático do país, os fundamentos da chancelaria atual estão conectados com uma tendência recente das relações internacionais, e bastante discutida por acadêmicos e intelectuais: o suposto fim da ordem liberal e a ascensão de uma nova ordem conservadora. A ordem liberal significa a amálgama de instituições internacionais criadas no pós-Segunda Guerra e a governança que estas ajudam a conduzir. Enquanto potência dominante dessa ordem, os Estados Unidos a moldaram de acordo com seus interesses e princípios – como a promoção da democracia liberal e do livre mercado -, com mais acentuado sucesso a partir do fim da Guerra Fria[3]. Um dos motivos para o suposto fim da ordem liberal e ascensão de uma ordem conservadora seria a desconfiança da população em relação às instituições que governam a primeira. A ruptura entre governantes e governados, que leva à deslegitimação da representação política, faz surgir lideranças políticas que se autodeclaram anti-establishment, em um movimento que traz como opção à democracia liberal um “autoritarismo leve”. Neste processo, se torna fundamental reconstruir as instituições que foram os pilares da democracia liberal: esta reconstrução geralmente parte da ascensão de um líder que surge em contradição com as instituições legitimadas. A partir disso, se constrói uma nova legitimidade, baseada na oposição ao estado das coisas e que promete a salvação por meio da ruptura com o sistema vigente[4]. É possível perceber o quanto a eleição de Bolsonaro se relaciona com este discurso, que tem ganhando força em escala global, reacendendo nacionalismos e mudando orientações internacionais de diversos países, como Hungria, Polônia e Itália.
Mais do que fenômeno doméstico, a crise da ordem internacional liberal também possui um aspecto geopolítico. O fim da ordem liderada pelos Estados Unidos e a ascensão de uma nova ordem, pós-ocidental, muda profundamente os arranjos de poder globais, em uma transição que poderia beneficiar o Brasil enquanto potência emergente. O principal candidato a líder da nova ordem é a China, que além de seu exorbitante crescimento econômico nas últimas décadas, tem ampliado sua influência política em diversos cantos do globo. Mesmo assim, a nova política externa do Brasil, em suma, se mostra empenhada em ser guardiã dos interesses de uma potência decadente, que se mostra cada vez mais protecionista e menos interessada no desenvolvimento de parcerias, principalmente com países subdesenvolvidos, como é o caso do Brasil. Diferentemente de outrora na história da política externa brasileira, o alinhamento com os Estados Unidos não parece oferecer benefícios que compensem os esforços feitos em prol desta aliança.
Por fim, todos esses fatores somados indicam uma guinada radical na inserção externa do Brasil, nunca antes vista. Essas mudanças devem ser compreendidas através do entendimento da visão de mundo do chanceler e do presidente, bem como de seus ideólogos, como Olavo de Carvalho. O movimento conservador no Brasil é bastante incipiente e fortemente influenciado pela tradição conservadora dos Estados Unidos, esta sim bastante desenvolvida enquanto corpo teórico e político. Porém, isso representa uma grande fragilidade: é possível que se desenvolva uma política externa amarrada a um ponto de vista social e internacional desenvolvido fora do Brasil?
Toda essa guinada na política externa apresenta mais uma série de fragilidades: baseia-se em uma interpretação incipiente da realidade internacional, bastante conjuntural e inspirada por uma visão específica que permeia a política de Donald Trump (a ideia de “declinismo liberal”). Se nas eleições de 2020 Trump perder e Bernie Sanders ganhar a eleição, por exemplo, o alinhamento aos EUA será mantido? Além disso, qual a conexão destes novos princípios que orientam as relações externas com a realidade de equilíbrio de poder global, para além da lógica de divisão civilizacional e religiosa que norteia a concepção de mundo do atual chanceler brasileiro? E o Brasil, país tido por intelectuais norte-americanos como pertencente à ‘civilização latino-americana’, não estaria de fora do grupo de sociedades destinadas a proteger a civilização judaico-cristã? Todas essas questões precisam ser respondidas para que se produza um entendimento mais racional da linha que conduz a política externa no momento, sob o risco de colocarmos em cheque a credibilidade do Brasil no âmbito internacional, resultando em ostracismo e isolamento.
Klei P. Medeiros é Professor de Relações Internacionais na PUC-Minas e doutorando em Relações Internacionais no PPG San Tiago Dantas (Unesp-Unicamp-PUCSP); Vinícius Vilas-Boas e Enrico Andrade são Acadêmico de Relações Internacionais na PUC-Minas
[1] STEFANONI, Pablo. El teórico de la conspiración detrás de Bolsonaro. Nueva Sociedad, enero, 2019.
[2] DUCHIADE, André. Frente Evangélica apoia Israel pela por crença no Apocalipse e na volta de Cristo. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/mundo/frente-evangelica-apoia-israel-por-crenca-no-apocalipse-na-volta-de-cristo-23348539>. Acesso em 24.fev.2019.
[3] MEARSHEIMER, John J. The Rise and Fall of the International Liberal Order. Chicago: University of Chicago Press, 2018.
[4] CASTELLS, Manuel. Ruptura: a crise da democracia liberal. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.