A esquerda evangélica
Minoritários e ainda pouco articulados, os evangélicos progressistas estão, no entanto, ativos no Brasil. E substituem a Teologia da Prosperidade da direita pela Missão Integral, que defente a democracia e pratica a solidariedade.
O meio evangélico é estigmatizado politicamente como um bloco homogêneo de direita – a despeito da prodigiosa cissiparidade que resulta na fragmentação em centenas de organizações eclesiásticas. Mas há, sim, saiba-se, evangélicos que militam na esquerda. Talvez o exemplo de maior visibilidade hoje seja o da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, da Assembléia de Deus1.
A ressalva é que tais seres políticos são, de fato, relativamente raros e precariamente articulados. Essa fragilidade da esquerda evangélica é resultado de fatores históricos e teológicos. Durante a época da ditadura militar, em uma trágica paródia do “irmão vota em irmão”, que ainda caracteriza o voto de cabresto em tantas igrejas, imperou o “irmão entrega irmão”. Trata-se de uma história de expurgos, perseguições e até desaparecimentos que vem sendo aos poucos resgatada, mas ainda não foi devidamente apresentada ao grande público.
Porém, o esmagamento de toda uma geração de “crentes” que militavam na esquerda não explica, por si só, o impacto reduzido desse grupo. É a teologia e seu reflexo político que fornece a chave tanto para compreender tal alcance limitado quanto para vislumbrar possibilidades de desenvolvimento.
A ideologia hegemônica no meio evangélico hoje é a Teologia da Prosperidade, uma ênfase no aqui e agora que põe em segundo plano até mesmo temas centrais do discurso protestante histórico – arrependimento de pecados, paz com Deus pelo sacrifício de Cristo na cruz.
Doutrina que ganhou impulso no Brasil na década de 1990, justamente quando o “rebanho de esquerda” tentava se ajuntar, a Teologia da Prosperidade prega que os cristãos, por serem filhos de Deus, têm direito a bens materiais e status. E que as igrejas devem ocupar agressivamente espaços na mídia e na vida política para assegurar a propagação desse evangelho, continuar amealhando fiéis contribuintes e, de quebra, garantir algum tipo de apoio ou retaguarda oficial para seus interesses institucionais.
Em outra paródia, desta vez daquilo que o sociólogo Max Weber definiu no início do século passado como a “ética protestante” (trabalho duro e vida sem luxo nem lazer como marcas do fiel), o pressuposto dessa corrente é que a fé é demonstrada pela capacidade de consumo, saldo na conta bancária e número de carros importados na garagem.
De maneira até agressiva, de preferência em pregações via televisão e rádio, destaca a possibilidade, exclusivamente pela fé pessoal, de resolução imediata de problemas e de se ter uma vida sempre saudável. A aplicação política desse sermão é que tudo se resolve no âmbito do indivíduo – do “indivíduo religioso”. O que vale é o passo de fé mágica de quem doa à igreja para ser recompensado por um Deus que paga dividendos. É como uma transição de modelo: de ‘industrial/protestante’ para ‘financista/ neopentecostal’.
Quando iniciativas como o Movimento Evangélico Progressista (MEP) surgiram, praticamente na mesma época, convidando para uma prática política de solidariedade e justiça, se depararam com uma multidão de crentes hipnotizados pela Teologia da Prosperidade.
Espiritualidade integral
O MEP começou a ser gestado na segunda metade dos anos 1980 como reação de evangélicos que não se viam representados pela bancada evangélica na Assembléia Nacional Constituinte. Formalmente lançado em 1990, está baseado na chamada Teologia de Missão Integral, pela qual a evangelização e a responsabilidade social são inseparáveis2.
Seu lema, definido no Congresso Internacional de Evangelização de 1974, em Lausanne, Suíça, é: “O Evangelho todo, para o homem todo, para todos os homens”. Mais de 2.300 líderes evangélicos de 150 países assinaram o Pacto de Lausanne, que detalha em 15 pontos este lema.
“Só existe uma espiritualidade, a que envolve o ser humano; uma espiritualidade parcial não é espiritualidade, é faz-de-conta de um clube religioso”, resume Geter Borges Sousa, secretário-executivo do MEP para o período 2003-2007 e membro da Igreja Batista3. “Espiritualidade integral é atender às demandas do corpo e da alma, que não podem ser dissociadas”.
A Missão Integral também dá alicerce teológico a uma firme e realista opção democrática. “A democracia é a forma mais sábia de governo, porque leva a sério a Criação (a dignidade do homem como imagem de Deus) e a Queda (a depravação do homem pela separação de Deus). A capacidade humana para a justiça torna a democracia possível; a tendência humana para a injustiça a torna necessária”, escreve o teólogo inglês John Stott, uma das principais referências dessa corrente.
“[Os partidários da Missão Integral] possuem uma perspectiva teológica conservadora, mantendo as ênfases tradicionais do mundo evangélico na Bíblia, na oração, na conversão pessoal, na preocupação missionária. São politicamente articulados e estão plenamente integrados em suas igrejas, de forma que se propõem uma dupla militância: na igreja e na sociedade, por meio dos partidos e movimentos sociais”, explica em sua tese de mestrado o pastor da Igreja Metodista Livre e historiador Ziel Machado, secretário-regional da Comunidade Internacional de Estudantes Evangélicos na América Latina4.
No meio evangélico, um dos líderes mais conhecidos por sua clara postura de esquerda é Ariovaldo Ramos, pastor da Comunidade Cristã Reformada (CCR), ex-presidente da Associação Evangélica Brasileira (AEvB, uma tentativa frustrada de representar o mosaico evangélico no país) e membro do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea)5. A seguir alguns trechos de depoimento de Ramos que sintetizam a crítica e o posicionamento da esquerda evangélica:
“A gente reduziu o Evangelho a uma questão de salvação pessoal, que não tem nenhuma implicação com o próximo, fica só no relacionamento particular entre o camarada e Deus. Um relacionamento que foi involuindo. No começo, o indivíduo ainda se convertia e virava servo de Deus. Era um negócio intimista, mas ele queria ser santo, queria fazer a vontade de Deus, reconhecia que tinha sido perdoado por seus pecados. Mas aí a coisa involuiu. Continua sendo particular, só que, ao invés de o indivíduo ser servo de Deus, Deus é que passou a ser servo dele. Ele quer ser abençoado, vem à reunião para buscar sua bênção. O santo do passado não incluía o próximo em sua salvaç&
atilde;o, mas, por querer ser servo de Deus, acabava amando o próximo. Este agora nem inclui nem ama. Não tem a menor idéia de que o Evangelho é a recuperação do conceito de humanidade. E muito menos de qual é o conceito de humanidade nas Escrituras”.
“A minha base de fé é que o Evangelho é a recuperação do conceito de humanidade; que o planeta, a vida são dons para a humanidade, e não para determinados indivíduos; e que qualquer movimento na História que segregue seres humanos é um movimento contra Deus. Para mim, nosso papel é corrigir isso. Passa pela questão econômica, logo de saída. Passa pelo ataque à pobreza, pela recuperação da dignidade do ser humano. É necessário apoiar todos os movimentos que tentam corrigir tais anomalias”.
O que Jesus viveu e ensinou
“É claro que o camarada tem o direito de pensar diferente de mim, ele pode ser contra a reforma agrária, ser contra as cotas: isso é um direito dele. Mas, se nós nos sentarmos para conversar, de cristão para cristão, considerando o que Jesus Cristo viveu, fez e ensinou, eu acho que ele vai ter dificuldade de se explicar. É muito difícil um cristão explicar por que é contra a redistribuição das terras quando o profeta Isaías diz: ‘Ai dos que juntam casa sobre casa e terra sobre terra até serem os únicos moradores do lugar’6. O que isso significa? Que tem limite. Eu não posso ter tudo que quero. Eu só posso ter aquilo que não imponha ao próximo viver embaixo da ponte, em casas de papelão e de madeira. Tem de ter limite”.
*Ricardo Muniz é jornalista, bacharel em Direito pela USP (1993) e mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo.