A alta velocidade tem ceifado a vida de 1,35 milhão de pessoas por ano
Estima-se ainda que de 20 a 50 milhões de pessoas permaneçam com lesões não fatais que reduzem a sua produtividade custando aos países até 3% de seu PIB anual
Os últimos dois meses foram importantes para refletirmos sobre a segurança viária no Brasil. Em maio, levantamento que realizamos em diversas regiões do país revelou que 8 em cada 10 pessoas conhecem alguém que perdeu a vida no trânsito. A pesquisa foi feita para a União de Ciclistas do Brasil, associação responsável pelo projeto de segurança viária “Vias Seguras” com o apoio da International Federation of Red Cross and Red Crescent Societies (IFRCS), no programa GRSP – Global Road Safety Partnership. Descobrimos que 53,7% das mortes com motociclistas envolvem automóveis e que 48,5% de pedestres e ciclistas também são mortos em acidentes provocados por automóveis.

No Brasil, temos um dos trânsitos mais violentos do mundo e o país ocupa a quinta posição no ranking mundial de vítimas de trânsito, atrás apenas da Índia, China, Estados Unidos e Rússia, segundo dados de 2021 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Foram cerca de 15 mortes por 100 mil habitantes em 2020 e mais de um terço dessas ocorreram por acidentes envolvendo motociclistas. Em 2019, segundo dados do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DataSus), ocorreram mais de 32 mil óbitos em decorrência dos sinistros de trânsito.
As desigualdades raciais também se refletem nessas mortes: estima-se que 58,2% delas sejam de pessoas negras, sendo que para motociclistas, o número de pessoas negras mortas sobe para 63,7%. Levando-se em conta que as pessoas negras no Brasil correspondem a 56,3% da população, verificamos a disparidade de mortes em função da raça, revelando que a violência no trânsito incide de maneira diferente entre pessoas brancas e negras. Por outro lado, levantamento feito pelo Instituto de Pesquisa Multiplicidade Mobilidade Urbana (IPMMU) revelou que, no Brasil, 70% dos domicílios formados por somente negros não possuem automóveis, enquanto esta é a situação de apenas 38% dos domicílios formados por somente brancos, o que revela que o uso do automóvel também apresenta componentes transversais à questão racial e que precisam ser mais investigados.
Mas é evidente que a tragédia no trânsito é uma questão global e que interfere na vida de todas as pessoas. A OMS estima 1,35 milhão de óbitos, anualmente, e de 20 a 50 milhões de pessoas que sobrevivem com lesões graves. Ainda segundo a OMS, a morte por sinistro envolvendo o trânsito é a segunda causa de morte entre pessoas jovens, entre 10 e 19 anos. Tais eventos representam um problema de saúde pública, ônus para as vítimas e suas famílias e um impacto nas economias dos países da ordem de 3% de seu Produto Interno Bruto.
A economia é importante e um fator a ser levado em conta nas metas de redução dos sinistros de trânsito no Brasil, entretanto, mais do que questões econômicas, deveríamos desejar uma vida mais saudável e em cidades onde possamos nos deslocar com segurança, principalmente quando falamos de modos ativos de transporte como andar a pé e pedalar.
Além disso, não é apenas um bom planejamento urbano e boa gestão da cidade que podem mudar esse cenário tenebroso. Existem fatores culturais que impedem a construção de cidades mais humanas, como o excesso de velocidade. De acordo com dados do IPMMU, 44% das pessoas entrevistadas afirmaram já ter sofrido pelo menos uma multa por excesso de velocidade.
Se grande parte dos sinistros acontece em função da velocidade, porque ela ainda é incentivada? O que é dito nas propagandas de automóveis, o que se sinaliza na impunidade, na lentidão dos processos e na falta de punição célere e adequada às pessoas que provocam esses sinistros revelam uma rede de proteção vergonhosa quando o assunto é automóvel e velocidade. Isso acontece, em grande parte, porque a velocidade é uma ideologia, o que pretendemos explicar nos próximos parágrafos e, sendo assim, precisa ser combatida. Sendo uma ideologia, precisamos levar em consideração uma série de atributos sentimentais e identitários ligados ao uso do automóvel, como o seu incentivo nas brincadeiras de infância, aos componentes masculinos tóxicos ligados ao seu uso como símbolo de status social e também o culto à velocidade.
Não se nasce veloz, ensina-se e estimula-se a velocidade
Já diziam os nossos mais velhos que a pressa é inimiga da perfeição. O grande geógrafo Milton Santos (1926-2001) falou da força dos lentos na construção das cidades. Milton se referia às pessoas comuns que resistiram à força da modernidade e da sua filha contemporânea, a globalização. Pessoas lentas são aquelas que não se iludem, não são adeptas nem da velocidade, nem da ideia de eficácia, propagadas como fundadoras da civilização.
Por sua vez, Paul Virilio (1932-2018), filósofo francês, demonstrou no seu clássico “Velocidade e Política”, de 1977, que a velocidade passou a ser um valor com a revolução industrial e que a redução de distâncias teve consequências econômicas e políticas incalculáveis. Viver em estado de emergência, como diz o filósofo, não apenas nos levou a produzir mais depressa, mas também a destruir mais depressa.
Sabemos que a cultura, dentre várias definições, são práticas que se transmitem pela repetição e que ela também se conecta nos corpos, se impregna territorialmente, materialmente. Tudo que existe no planeta sofre interferência da cultura e da produção humana. Até mesmo a ideia de natureza, pura, independente, destituída da interferência humana, foi colocada em xeque com a chegada do Antropoceno e a ascensão do ser humano enquanto força geológica.
Sendo fruto da produção humana, a cultura também simboliza práticas sociais de classes e de grupos específicos da sociedade. Sabemos que as culturas também se constituem de visões de mundo, de formas diferentes de experimentar a vida e de ideologias diferentes. Sobre a ideologia, não pretendemos fazer uma genealogia do conceito, mas basta lembrar que Karl Marx dizia que a ideologia invertia as relações entre a ideia e o real. Por sua vez, a filósofa Marilena Chauí mostrou como a ideologia se relacionava com a ideia de dominação de classe, na tentativa de se perpetuar determinada hegemonia.
Quando se defende a ideia de velocidade nas propagandas de carro, quando pessoas louvam a rapidez como um atributo do capitalismo, exaltando a máxima “tempo é dinheiro”, estamos reiterando a velocidade como um valor a ser cultuado, um produto notadamente ligado à ideologia da modernidade, do lucro, das cidades que nunca param.
A velocidade sempre povoou a mente humana. Mas é curioso pensar que é apenas com a Revolução Industrial que, de fato, a velocidade entra no cotidiano das pessoas. A invenção do pedal e do sistema de correntes possibilitou a criação de máquinas como um carrossel patenteado por uma empresa inglesa no final do século XIX. Diversas pessoas se sentavam em mecanismos fixos, bastante semelhantes às bicicletas, e juntas, faziam a engenhoca girar a uma velocidade de 60 km/h, um recorde para a época, já que o cavalo, considerado a mobilidade mais rápida até o momento, atingia uma média de 30 km/h. Dessa forma, a primeira experiência humana com uma velocidade acima dessa média surgiu de um objeto estático, objeto de diversão e entretenimento bastante difundido na França.
No final do século XIX, diversas invenções estavam disponíveis para as classes mais abastadas, e obviamente brancas, a exemplo da própria bicicleta. Mas de fato, é com o automóvel, como afirmou André Gorz, que as hierarquias foram criadas, permitindo que as pessoas que tinham mais poder econômico pudessem andar com mais rapidez que os outros. Antes disso, a velocidade não era uma questão de classe, pois todos se locomoviam no mesmo ritmo.
Nos últimos 150 anos, o mundo passou por transformações radicais e muitas delas dizem respeito ao modo como nos movemos. As ruas das cidades, que antes eram território relativamente livre, não levando em conta, é claro, as diferenças históricas entre gênero e raça que de alguma forma balizaram a ocupação do espaço, foram dominadas pelos carros. O espaço antes público e múltiplo passou a ser dominado por um ente privado e um personagem crucial da modificação urbana: o automóvel.
Existem muitos aspectos negativos do uso do transporte privado e apontados por diversas pessoas que pesquisam mobilidade urbana, mas a velocidade é a mais danosa porque ela não apenas impacta o ritmo das nossas vidas, a nossa eterna “falta de tempo”, ela mata, principalmente, aqueles que estão fora das carruagens modernas.
Outro dado importante da pesquisa que realizamos para a União de Ciclistas do Brasil foi o impacto de boas práticas de redução de velocidade no número de mortos e feridos. Levantamos dados sobre a percepção popular sobre sinistros de trânsito e velocidades regulamentadas e os resultados mostraram a gravidade da cultura da velocidade: quase metade das pessoas entrevistadas já foram multadas por excesso de velocidade, um quinto das pessoas entrevistadas já perderam familiares no trânsito e um terço delas já perderam amizades próximas.
É hora de retomar as ruas: criando novos paradigmas
Nós que pesquisamos neste campo, sabemos que é crucial para a construção de cidades mais humanas a readequação das velocidades. Um exemplo prático de como a velocidade nos afeta é o grau de ameaça que um carro em alta velocidade pode oferecer às pessoas caminhantes e também ciclistas. Quando falamos dessas ameaças, quase sempre o foco é desviado ou a mirada da questão é equivocada. Um exemplo rápido: a maioria das pessoas insiste no uso do capacete para quem pedala, mas poucas sabem que não há capacete eficiente se formos atropeladas por um carro que trafega numa velocidade de 50 km/h. Por isso é muito importante pensar que as vias urbanas, principalmente aquelas que não foram projetadas para serem arteriais, devem ter o limite máximo de 30 km/h.
A cidade de Bilbao, na Espanha, que tem mais de 300 mil habitantes, tomou uma decisão certa em 2019: readequou a velocidade dos veículos motorizados para 30 km/h em todas as ruas da cidade. A lei passou a valer em setembro de 2020. O resultado não foi apenas surpreendente, mas se converteu em um excelente exemplo de boas práticas em mobilidade urbana. O caso está registrado no guia de boas práticas do projeto Acesso Cidades – Cidades Mais Acessíveis e Conectadas, lançado em junho pela Frente Nacional de Prefeitos com apoio do Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes de Mobilidade Urbana e cofinanciamento da União Europeia. O objetivo do projeto Bilbao 30, além de melhorar a segurança viária, era reduzir a poluição sonora e ambiental, e promover o transporte ativo e sustentável, a exemplo da bicicleta. Como resultado, houve uma diminuição de 22,9% no número de sinistros de trânsito nos 30 dias após a implantação da medida. A cidade espanhola também emitiu 46,6% menos multas por ultrapassagem no vermelho e a poluição atmosférica foi reduzida em 11,4% nas emissões.
No Brasil, temos algumas iniciativas de boas práticas em mobilidade urbana que também estão relatadas no guia e nos enchem de esperança. Dez anos após a aprovação da Política Nacional de Mobilidade Urbana (PNMU), começamos a ver, mesmo que de maneira ainda tímida para a nossa urgência, o cumprimento da lei e o desenvolvimento de planos municipais de mobilidade nas cidades com mais de 20 mil habitantes. Como afirma a PNMU, as políticas públicas de mobilidade urbana devem priorizar a mobilidade ativa, o transporte público e, se isso for feito, podemos modificar as cidades agora e também para as futuras gerações.
A pesquisa que realizamos para UCB mostra que 9 em cada 10 pessoas entenderam que o nível de mortes no trânsito é alto e que é uma questão urgente resolvê-lo. Esse dado nos mostra que as pessoas compreendem a urgência do problema.
Ao redor do globo, uma era sem carros se anuncia e desponta no horizonte. O parlamento europeu aprovou o fim da venda de automóveis novos movidos a gasolina a partir de 2035. Na França, houve recentemente uma mudança para que as propagandas de automóveis sejam obrigadas a veicular imagens de personagens utilizando modos ativos e outros modos que não seja o carro, e ainda precisarão incluir a hashtag #SeDéplacerMoinsPolluer (“Desloque-se com menos poluição”, em tradução livre). Tais decisões indicam que o mundo tem compreendido que para transformar as cidades, precisamos trabalhar com ações de trânsito, planejamento, mas também no campo da cultura.
Em 2021, a ONU declarou uma nova Década de Ação pela Segurança no Trânsito 2021-2030, com a meta de reduzir mortes e lesões no trânsito em pelo menos 50% durante esse período. Temos certeza que se todos perceberem os benefícios coletivos da redução das velocidades, podemos, de fato, construir cidades mais humanas, nas quais a vontade coletiva e o valor da vida sejam premissas básicas das sociedades definitivamente justas e solidárias. Discutir a readequação das velocidades é um passo decisivo para irmos em direção a este objetivo.
Glaucia Pereira é mestre em administração pela Universidade de São Paulo, especialista em mobilidade urbana, fundadora e pesquisadora do Instituto de Pesquisa Multiplicidade Mobilidade Urbana. E-mail: [email protected]. Marcelo de Trói é jornalista, doutor em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia e analista de informação no mesmo instituto. E-mail: [email protected]