A América que vota em Bush
O desafio da esquerda norte-americana é que os republicanos foram bem sucedidos em identificar como elite os esnobes intelectuais “progressistas” que comem sushi e têm carro importado, a léguas de distância do povo simples do Meio-OesteTom Frank
No momento em que os candidatos à Presidência pelo Partido Democrata se enfrentavam nas primárias do Estado de Iowa, um comercial de televisão atacava o favorito das pesquisas, Howard Dean. Apresentava-o como a opção das “elites culturais”, as quais gostam de “aumentar os impostos, expandir o poder do Estado, tomar cafés cremosos, comer sushi, dirigir carros Volvo, ler o New York Times, usar piercing, vibrar com Hollywood e assistir a espetáculos esquerdistas”. Ou seja, resumindo, pessoas que nada têm a ver com a gente boa do Meio-Oeste.
A publicidade era paga pelo Clube pelo Crescimento, uma organização sediada em Washington e que tem o objetivo de aproximar os ricos que veneram o mundo dos negócios dos políticos que, partilhando dos mesmos princípios, estejam em condições de transformá-los em leis lucrativas. Os membros do Clube são economistas neoliberais, celebridades bordadas a ouro, assim como alguns dos grandes pensadores da Nova Economia, que dedicaram uma década inteira a descrever a desregulamentação e a queda dos impostos como se isto fosse a segunda vinda do Messias à terra. Aqueles que identificaram Jesus Cristo no boom das ações da Nasdaq e determinações divinas nas políticas de mercado divulgam, agora, comerciais para a televisão fustigando a maldita “elite”.
É neste paradoxo que reside, em parte, o mistério norte-americano de 2004. Devido à guinada para a direita dos últimos 30 anos, a fortuna está atualmente mais concentrada, nos Estados Unidos, do que desde a década de 20, os assalariados gozam de menos direitos sobre as condições de trabalho e a empresa se tornou o mais poderoso ator do mundo. Mas esta onda conservadora – que continua – ainda consegue persuadir de que se trata de uma guerra contra as “elites”, de uma insurreição virtuosa dos “pequenos” contra uma odiosa classe dirigente.
Discurso para os grotões
Bush dirige seu discurso aos grotões do país, só fala com pessoas comuns que, por seu lado, o apreciam
No topo desta improvável revolta encontra-se o presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, ex-industrial do petróleo, graduado na Universidade de Yale, filho de um ex-presidente dos Estados Unidos, neto de um senador e beneficiário direto, a cada etapa de sua vida, de todos os privilégios com que a alta sociedade norte-americana sabe presentear seus descendentes. Bush também é o homem que invoca sua “fibra populista”, o que faz por um único motivo: o “desprezo” com que são tratados a sua terra e seus compadres texanos pelos pretensiosos manda-chuvas da Costa Leste.
E o populismo do presidente não é completamente fictício. Seu ressentimento para com os esnobes da Costa Leste pode ser burlesco, mas é sincero. O homem sabe enfrentá-los com o discurso dos grotões do país, só fala com pessoas comuns que, por seu lado, o apreciam. No próximo mês de novembro, é bem provável que ele volte a obter uma fração considerável dos votos dos brancos assalariados. Há quatro anos, conseguiu a maioria dos votos desse eleitorado (em compensação, 90% dos negros votaram no Partido Democrata, no ano 2000).
Antigamente, o populismo era a língua materna da esquerda norte-americana1 . Os trabalhadores procuravam confirmar a força dos sindicatos, regulamentar a economia, generalizar a previdência social. Contra eles, o partido dos patrões e o porta-voz das elites sociais: resumindo, o Partido Republicano. Os republicanos não mudaram de lugar, mas passaram anos preparando, minuciosamente, uma forma de populismo que lhes pudesse ser associada. Uma forma antiintelectual, uma evocação exuberante de Deus, homilias nostálgicas dos grotões do país e de seu povo humilde. Richard Nixon foi o primeiro a ter acesso a essa mistura (ainda que a espiritualidade não fosse seu forte…). A partir dele, todos os presidentes republicanos acabaram revelando sua faceta populista. Se George W. Bush é apenas o último dessa estirpe, não deixa de ser um dos que melhor desempenham o registro de um homem público que, ao mesmo tempo, consegue passar a imagem de submissão às prioridades dos meios empresariais e a capacidade de se expressar com a voz dos condenados da terra.
Populismo de mercado
Em vez de atacar diretamente os poderosos, o populismo dos partidários de Bush vitupera os objetos sofisticados e esnobes que usam esses poderosos
A fórmula funciona. E até triunfa. É adotada por políticos, colunistas, agentes de relações públicas, corretoras de Wall Street, publicitários e jornalistas da área econômica. Até Hollywood, ícone de tudo o que a direita pretende abominar, acabou adotando-a. Durante a década de 90, prevaleceu um “populismo de mercado” inspirado nas estratégias de comunicação de Wall Street. A idéia central era simples: o mercado é a essência da democracia, a qual é inconcebível sem ele. Uma vez que todos participamos do mercado – comprando ações, optando entre duas marcas de creme de barbear ou entre um dos filmes em cartaz -, o mercado expressa a opção do povo. Ele proporciona o que desejamos, derruba os princípios do antigo regime e dá o poder ao consumidor. Portanto, tentar regulamentar o mercado ou pretender contrariar seus efeitos só pode constituir arrogância e a tentação tirânica das elites educadas que querem continuar passando à frente de todo mundo2 .
Em épocas de vacas gordas, como ocorreu há alguns anos, o populismo de mercado associava sistematicamente o destino do norte-americano médio à prosperidade dos acionistas de sua empresa. Os telespectadores da década de 90 assistiram constantemente, por exemplo, a minisséries publicitárias em que a Bolsa era o precursor de uma “revolução”: velhinhas trocavam conselhos sobre investimentos, crianças se emancipavam graças às marcas que usavam… Durante o período do boom, um canal de televisão acompanhava, todas as tardes, a evolução da fortuna dos norte-americanos mais ricos. Em seguida, todo mundo venerava os novos bilionários, eleitos com as aplicações do povo. Até a muitíssimo republicana Enron associou seu lobby pela desregulamentação da energia elétrica ao movimento dos direitos civis da década de 603 … A desregulamentação e a privatização eram comparadas com poder popular. Após o fracasso de cada greve, o que implicava no esmagamento de mais um sindicato, os colunistas descreviam a alegria dos trabalhadores, libertados, a partir daí, de qualquer forma de servidão.
O velho populismo de volta
A vantagem da insistência na guerra ao consumo é que ela orienta à direita a dinâmica do ressentimento de classe
Em tempos difíceis, a comercialização do populismo de mercado torna-se mais delicada. Passa, então, a ceder espaço, como vem ocorrendo agora, ao velho “populismo” revanchista, com sua lista de recriminações aos “esquerdistas” – não devido à sua falta de fé no mercado e, portanto, na democracia, mas porque teriam imposto todo tipo de monstruosidades culturais ao povo tranqüilo dos grotões dos Estados Unidos. Após terem conseguido legalizar o aborto e proibido orações nas escolas públicas, esses arruaceiros vêm agora com a ameaça de legalizar o casamento homossexual. Aqui, de novo, o inimigo do povo é essa satânica “elite progressista”, identificada com intelectuais cuja arrogância seria sua eterna marca registrada. Aqui, de novo, o Partido Republicano encarnaria o lado dos pequenos, dos obscuros, dos iletrados, voltados contra uma classe dirigente que despreza seus “valores”.
Onipresente na rádio e na Fox News4 , esse “populismo” rançoso, reacionário, é obcecado pelos símbolos da cultura de consumo. Em vez de atacar diretamente os poderosos – muitas vezes, republicanos… – ele vitupera os objetos sofisticados e esnobes que usam esses poderosos: os cafés especiais, os restaurantes refinados, a educação em grandes universidades, as férias na Europa e, principalmente, os carros importados.
Incomodado por estes gostos “efeminados”, o populismo rançoso expõe as supostas preferências dos grotões do país (em novembro de 2000, os democratas foram surrados em quase todos os Estados afastados do litoral, enquanto ganhavam na Califórnia, em Nova York e em Massachusetts, símbolos do cosmopolitismo conspurcado). E quais seriam essas preferências? Os norte-americanos de verdade gostam de grandes bifes texanos, do mundo rural (Bush tem um rancho, como Ronald Reagan também tinha, antes dele), bebem cerveja comum (não importada), trabalham com as mãos e dirigem carros fabricados no país. A idéia de que os bilionários barões do petróleo de Houston ou de Wichita passem as férias na Europa, gostem do aroma de cafés delicados ou dirijam Jaguares é considerada, aparentemente, inverossímil.
Esnobes versus comuns
A direita norte-americana consegue superar as contradições de seu próprio discurso, em parte, graças à esquerda
A vantagem dessa insistência na guerra ao consumo é que ela orienta à direita a dinâmica do ressentimento de classe. É verdade que os objetos identificados com a “elite” são normalmente mais utilizados por pessoas graduadas e que se dizem progressistas. A eles, portanto, a etiqueta de “esnobes”; aos republicanos, apenas a majestade dos milhões de pessoas comuns. Porque os bons norte-americanos detestam as “elites” e seus gostos, o que explica o fato de terem votado em homens que falam de modo simples, como o atual presidente, como seu pai, como Ronald Reagan e como Richard Nixon – o qual aproveitou tudo o que pôde da raiva dos intelectuais da Costa Leste (região mais “européia” do país) e do clã Kennedy. Uma vez eleitos para a Casa Branca, todos esses “homens do povo” se empenharam em inundar os privilegiados de favores…
As ridículas deformações dessa versão republicana da elite talvez fascinassem um cego. Começando pelo postulado absurdo que pretende que o establishment seja composto por gente de esquerda. Em seguida, se os partidários de Bush criticam os “progressistas” por comer sushi e usar piercing, não hesitam em aplaudir os consumidores de sushi e fanáticos de piercing quando vêem neles “empresários” intrépidos e consumidores suficientemente liberados para se identificarem consigo. Se, de um lado, desprezam Hollywood, que inundaria a cultura nacional com seus valores falsificados, de outro, enaltecem em Hollywood sua criatividade, seus lucros, seu faro para determinar o que o povo quer ver. Sem esquecer Ronald Reagan e o governador Schwarzenegger, egressos dali. Pouco importa: os estrategistas republicanos navegam indiferentemente entre estes dois pólos, manipulando tanto os recursos de um quanto do outro.
Patologia intelectualizada
Alguns progressistas realmente detestam o povo norte-americano quando este não se identifica com eles
A direita norte-americana consegue superar as contradições de seu próprio discurso, em parte, graças à esquerda. Incapazes de compreender o “populismo” cultural, muitos progressistas norte-americanos (mimados pelos meios de comunicação europeus) limitam-se a ver nele um racismo camuflado e, em sua opinião, simbólico de uma epidemia nacional. A menor manifestação desse populismo leva-os a pensarem em Timothy Mc Veigh e nas milícias de extrema-direita. Fiz um teste dessa patologia intelectualizada por ocasião de uma recente reunião de militantes de esquerda em Chicago.
Após ter escutado uma crítica, severa e justa, do universo da mídia, de suas manipulações e mentiras, levantei-me para salientar que milhões de norte-americanos “comuns”, muitas vezes religiosos praticantes, partilhavam dessa crítica da mídia, mas cometiam o erro de associar ao “progressismo” os poderes econômicos e financeiros que dominam o país e seu sistema de informação. Sugeri ao orador, então, que fizesse um esforço no sentido de estabelecer contato com essa América do Norte, que tentasse transformar o ressentimento de classe que ela sofre em proveito da esquerda. Na mesma hora, fui veemente criticado por uma das participantes que, “ofendida” por essa proposta, alegou que logo seria o caso de… tentar convencer os adeptos do Ku Klux Klan.
O declínio da esquerda
Algumas formas de ação política se tornaram o apanágio das classes médias superiores educadas, para quem a política é, muitas vezes, mais um exercício de terapia individual
Isto porque os “populistas” de direita, em parte, têm razão. Alguns “progressistas” gostam de passar as férias na Europa, de tomar cafés cremosos e de dirigir um Volvo. Mas, principalmente, realmente detestam o povo norte-americano quando este não se identifica com eles. Comparecer a um comício em defesa dos direitos dos animais ou passear num campus universitário significa descobrir, rapidamente, que algumas formas de ação política se tornaram o apanágio das classes médias superiores educadas, daquela “minoria civilizada” que estigmatizava o historiador Christopher Lasch. Ou seja, pessoas para quem a política é, muitas vezes, mais um exercício de terapia individual, de realização pessoal, do que um esforço destinado a construir um movimento5 . Para elas, a esquerda representa uma espiritualidade tranqüilizante, um sentimento de empatia para com a “autenticidade” dos pobres e dos imigrantes, um meio de lhes dizer que se pensa neles, de tempos em tempos. Os broches e os adesivos nos pára-brisas proclamam ao mundo a bondade dos progressistas, um pouco como a opção por produtos de consumo “éticos” e a preocupação em reciclar garrafas de vidro. Para algumas lojas de esquerda, a contestação
até se tornou uma atividade sedutora, com suas estrelas. Não seria por isso que uma água de colônia tem o nome de “Ativista”?
Às vezes, as pessoas são de esquerda porque nascem de esquerda. Uma nobreza herdada permite desfiar orgulhosamente seu pedigree. O catastrófico declínio da esquerda norte-americana enquanto movimento social e seu esgotamento pouco importam, neste caso. Com demasiada freqüência, a esquerda encarna a simpatia da classe alta pelos desfavorecidos e não o movimento visando transformar a sociedade. Quando seus militantes se tornam mais esclarecidos – o que deveria significar que vai ser mais difícil obter uma assistência médica universal ou um direito de representação sindical -, tal fato, ao contrário, atesta, para uma parte da esquerda norte-americana, o aumento do não-conformismo a que está apegada e a “criatividade” das idéias “rebeldes” que ela defende.
Fortes símbolos
Ser de esquerda não significa fazer de sua causa uma causa comum ao povo norte-americano, mas, sim lhe passar sermões
Criticar os “matutos” que agitam bandeiras com estrelinhas torna-se, assim, mais importante do que tentar convencê-los a se unirem a um combate político no qual poderiam ser majoritários. Isto porque, muitas vezes, ser de esquerda não significa fazer de sua causa uma causa comum com o povo norte-americano, mas, sim lhe passar sermões, corrigi-lo, apontar insistentemente cada uma de suas insuficiências.
Por ocasião do debate, nas Nações Unidas, que precedeu a invasão do Iraque, Dominique de Villepin avaliou, com toda certeza, que conseguiria persuadir os partidários de Bush a cada vez que desmontava as falsas afirmações feitas pelos norte-americanos. Bem vestido, sofisticado, poliglota, aplaudido pelos embaixadores do mundo inteiro, ele repreendia, com a condescendência de um aristocrata seguro de seus argumentos, um secretário de Estado norte-americano estóico, imóvel em sua cadeira. O que Dominique de Villepin não compreendeu é que milhões de norte-americanos não se deixam levar por fatos, pois se alimentam de símbolos. Ora, nesses termos, Bush não poderia esperar por uma dramaturgia mais apropriada a seu populismo do que o choque entre um norte-americano pobre e desajeitado e um francês, seguro de si, citando poetas.
A cada quatro anos, quase sempre, ocorrem enxurradas eleitorais nos locais mais improváveis, surgem eleitores de direita onde se imaginava que seriam de esquerda, a raiva eclode onde se esperava que reinasse satisfação. Enquanto os progressistas norte-americanos não se debruçarem seriamente para perceber as causas culturais desta dinâmica, ficarão condenados – e, com eles, o resto do mundo – às políticas e às guerras decididas por uma América do Norte que eles já não se esforçam por compreender.
(Trad.: Jô Amado)
1 – Sobre o populismo norte-americano, ler, de Serge Halimi, “Le populisme, voilà l?ennemi”, Le Monde diplomatique, abril de 1996. Ler também o dossiê “Os descaminhos da democracia”, Le Monde diplomatique, novembro de 2003.
2 – Ler, de Tom Frank, Le Marché de droit divin, ed. Agone, Marselha, 2003.
3 – Ler “Enron aux mille et une escroqu