A arquitetura da destruição: versão tropical
Estávamos enganados quando acreditávamos que nosso conjunto de políticas e instituições ambientais era um patamar a partir do qual só poderíamos avançar ou, no pior dos cenários, ficar estacionados. O governo Bolsonaro provou que estávamos enganados. A novidade é um governo cuja agenda é destruir o meio ambiente
Nesses 27 anos de existência do Ministério do Meio Ambiente (MMA), acreditávamos que tínhamos visto de tudo, de ministros mais atuantes com políticas eficientes a governos pouco comprometidos com o tema, nos quais só havia discurso. Estávamos enganados…
No primeiro trimestre deste ano, a maior floresta tropical do mundo, a Amazônia, e o Cerrado, uma das savanas mais ricas do planeta, perderam algo em torno de 80 mil campos de futebol de vegetação nativa. Desse total, estima-se que mais de 90% seja fruto de desmatamento ilegal. Entre altos e baixos, é isso que vem acontecendo ao longo dos últimos anos, com exceção do período entre 2004 e 2012, quando o desmatamento na Amazônia caiu sistematicamente, de 27.772 km2 para 4.571 km2, resultado de um conjunto orquestrado de políticas públicas.
As emissões brasileiras de gases de efeito estufa, majoritariamente derivadas do desmatamento e das queimadas, também seguem a mesma rota. Sem políticas efetivas, não há redução significativa. O descaso com a área ambiental tem sido a regra no Brasil. Florestas exuberantes e ecossistemas únicos são tratados como uma maldição a ser ultrapassada, atrás da qual se esconderia um paraíso de desenvolvimento. A destruição da Mata Atlântica, bioma do qual resta menos de 12%, é um lembrete e uma prova para quem duvida da finitude do que parece infinito.
Ainda assim, o país construiu um importante conjunto de áreas protegidas, somando mais de 2,3 mil unidades de conservação, que abrangem quase 30% do território continental. Mesmo estando sempre ameaçadas de desmatamento, degradação, desconstituição e redução de limites, essas áreas representam um gigantesco patrimônio para o povo brasileiro.
A regra também tem sido uma fiscalização ambiental deficiente, por falta de recursos, atenção e pessoal. O licenciamento de obras de infraestrutura enfrenta historicamente problemas, como a hidrelétrica de Belo Monte (PA) e as barragens de rejeitos de mineração, em Mariana e Brumadinho (MG), não nos deixam esquecer. Apesar de tudo isso, estávamos enganados quando pensávamos já ter visto de tudo. Estávamos também enganados quando acreditávamos que nosso conjunto de políticas e instituições ambientais era um patamar a partir do qual só poderíamos avançar ou, no pior dos cenários, ficar estacionados.
O governo Bolsonaro nos provou que, de fato, estávamos enganados. A novidade, nunca vista antes, é um governo cuja agenda do MMA é destruir o meio ambiente. A estrutura de fiscalização e regulação da área ambiental do país foi desmontada e o pouco que sobrou está paralisado. Não há mais agenda de clima nem de combate ao desmatamento no Ministério nem em nenhuma outra pasta. O Fundo Amazônia, principal financiador de projetos de combate ao desmatamento e desenvolvimento sustentável, formado principalmente por doações internacionais, está em xeque. Agendas ligadas à gestão ambiental de territórios indígenas, bem como aquelas relacionadas com extrativistas e outras comunidades locais, desapareceram ou estão esvaziadas.
As unidades de conservação são ameaçadas pelo próprio ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. No entanto, o mais grave de todo o cenário talvez seja a narrativa que o circunda. Uma narrativa que prega o aniquilamento sem rodeios e funciona como a vanguarda da destruição. A sensação de que não há mais normas ambientais ou que, se elas forem infringidas, a impunidade está garantida funciona como o motor da destruição em âmbito local. Naturalmente, a destruição não se traduz apenas em árvores derrubadas. Com elas, vidas humanas são ceifadas e a violência no campo explode.
Neste momento em que completamos seis meses de governo Bolsonaro, não é possível mais evitar a pergunta: a que interesses serve a agenda ambiental do atual governo?
Brumadinho: a pedagogia da lama
O desastre ambiental, social, econômico e emocional que foi o rompimento da barragem de dejetos minerários no Vale do Córrego do Feijão, no município de Brumadinho, no dia 25 de janeiro, deveria ter sido um marco. Ainda mais depois do rompimento da barragem de rejeitos no Rio Doce, perto da cidade de Mariana, também em Minas Gerais, a questão do licenciamento das barragens, bem como da responsabilidade pelo dano causado por seu rompimento, deveria ter se tornado uma das prioridades do governo federal.
A flexibilização do licenciamento e o enfraquecimento da fiscalização, tão desejados pelo presidente e por seu ministro, equivalem a um tapa na cara dos brasileiros, que deveriam se sentir protegidos pelo governo de desastres dessa dimensão. Em termos ambientais, ambas as tragédias causaram prejuízos que levarão dezenas de anos para ser mitigados. O Vale do Rio Doce é um vale morto, e os dejetos do desastre de Brumadinho já alcançam o Rio São Francisco, levando à contaminação de toda a sua bacia.
A lama de Brumadinho revela os verdadeiros contornos do atual governo: quem não toma providências sobre situações que podem ocorrer a qualquer momento e matar centenas de pessoas certamente não tem nenhuma intenção de combater a crise climática ou o desmatamento, pois suas consequências podem ser ignoradas – neste momento – com mais facilidade.
Neste governo, porém, não tem bastado uma atitude negligente. A destruição das políticas, estratégias e instituições ambientais é uma prioridade e vem sendo realizada de forma ativa e célere. Um exemplo é a paralisação das atividades do Fundo Amazônia, por iniciativa do próprio MMA. Esse fundo, resultante do êxito do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm), foi criado em 2008. Sua lógica é de que, quanto mais dióxido de carbono o Brasil economizar com a conservação da floresta, maiores seriam as quantias depositadas a longo prazo pelos doadores. Paralelamente, o Brasil comprometeu-se a realocar esses fundos para a proteção das florestas.
O fundo é gerido pelo BNDES e vem apoiando projetos de governos estaduais da Amazônia Legal, órgãos federais, instituições de pesquisa e organizações da sociedade civil. Em um primeiro momento, o ministro do Meio Ambiente tentou acusar as organizações da sociedade civil de irregularidades na gestão dos recursos, simulando uma auditoria e vazando informações sobre supostos problemas. Esse processo paralisou a equipe do fundo, mas não foi seu único ataque. Agora, Salles quer diminuir a participação dos diversos segmentos da sociedade no Fundo Amazônia e desviar seus recursos para outras atividades, tais como o pagamento de indenização pela desapropriação aos que têm terras em áreas protegidas. Além de essa atividade não ser permitida pelas regras atuais do BNDES, em muitos casos a posse dessas terras é fruto de grilagem. Tais pagamentos poderiam funcionar como um convite à ampliação do roubo de terras públicas. Estranhamente, esse parece ser o objetivo de fato.
“Quero explorar a região Amazônica em parceria com os Estados Unidos”
Não foram poucas as ocasiões nas quais o presidente Bolsonaro insistiu que sua intenção em relação à Amazônia seria uma exploração em parceria com os Estados Unidos. Ainda que pese a tremenda estranheza que tal afirmação causa, é interessante avaliar as possibilidades de “exploração” da região, a eventual contribuição dos Estados Unidos e se nós, brasileiros, teríamos algo a ganhar com isso.
É possível imaginar, entre outras, quatro grandes frentes de “exploração”. A primeira é a dos recursos madeireiros, que vem sendo feita de maneira desordenada, mas que poderia ser realizada de outra forma, uma vez que reunimos um conjunto relevante de conhecimentos sobre manejo florestal e ecologia tropical. Nessa área, historicamente, há uma parceria acadêmica com universidades estrangeiras, resultando em pesquisas e desenvolvimento de novas técnicas, dentro de uma relação bastante equilibrada.
O grande avanço de que essa frente poderia se beneficiar seria o aumento da fiscalização e de ações de controle ao desmatamento ilegal. Vale lembrar que já houve políticas nesse sentido, com efeitos muito significativos, e que seria possível investir em estratégias de manejo florestal, já desenvolvidas e testadas no Brasil, criando cadeias produtivas de produtos madeireiros bastante mais sustentáveis. O atual governo, porém, tem feito justamente o contrário, desmontando as estruturas de combate ao desmatamento e insistindo em enfraquecer a legislação florestal.
Outra frente possível de “exploração” na Amazônia é a mineração. Não há dúvidas, porém, de que essa atividade exige cautela, pois causa grandes impactos ambientais. Para uma mineração mais racional, o licenciamento, a fiscalização e o controle das atividades são fundamentais. Os desastres de Mariana e Brumadinho apenas revelam o lado mais midiático dos efeitos nefastos dessa atividade sem controle e sem monitoramento. Apesar de não estar claro o que significaria uma eventual parceria com os Estados Unidos, vale lembrar que já existem diversas mineradoras estrangeiras atuando no Brasil, seguindo, muitas vezes ainda, uma lógica colonial: explora-se a colônia em benefício quase que exclusivamente da metrópole. Nesse caso, a flexibilização do licenciamento, o enfraquecimento da fiscalização e do monitoramento, bem como a falta de políticas claras sobre as regras de exploração minerária, só prejudicam o país. Como temos condições de executar cada uma dessas ações, permanece a dúvida sobre os benefícios que uma parceria com os norte-americanos nos traria.
Além disso, há o garimpo ilegal. Há estimativas que vão de 100 mil a 800 mil garimpeiros atuando de forma ilegal no Brasil. O presidente já manifestou diversas vezes sua simpatia em relação ao garimpo e sua vontade de flexibilizar a legislação, diminuindo as restrições ambientais e liberando a atividade, que destrói a vegetação e os rios, em terras indígenas. Dados da Polícia Federal apontaram, em 2018, que a cada onze anos o garimpo de ouro no Pará despeja nos corpos de água dejetos equivalentes aos do desastre de Mariana. E a fiscalização, em vez de ser reforçada, está sendo desmantelada.
Outra possibilidade de “exploração” são as atividades agropecuárias. Isso já é feito em diversos locais da Amazônia. Se por um lado é um absurdo que chega às raias da imoralidade desmatar uma floresta tropical, com infinitas potencialidades, para plantar soja e outras commodities, por outro há um compromisso claro do governo com o agronegócio. Fica a dúvida se essa parceria com os Estados Unidos, nosso concorrente comercial, seria bem-vinda nesse campo.
Por fim, resta a melhor aposta na Amazônia: produtos não madeireiros e potencial cosmético, farmacológico e para o desenvolvimento de produtos com inovação tecnológica, usando a biodiversidade como base. O investimento nessas cadeias produtivas poderia alavancar uma nova economia na Amazônia. O atual governo, porém, tem desmontado as políticas de apoio aos extrativistas e outras comunidades locais e restringido os recursos para pesquisa nas universidades. Ademais, as atividades ligadas ao acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional, no MMA, estão paralisadas.
Uma colaboração, nesse âmbito, significaria parceria com empresas norte-americanas que se beneficiariam largamente do acesso à nossa biodiversidade, sem que houvesse compensação possível para isso, uma vez que o Brasil detém capacidade e tecnologia para desenvolver tais cadeias produtivas por si só.
A dimensão das consequências
Nunca antes o ditado “quem planta vento colhe tempestade” foi mais adequado. Os ventos da destruição das políticas ambientais brasileiras vão se materializar em tempestades em todos os lugares. Não há mais tempo a perder no combate à crise climática, umbilicalmente ligada, no caso brasileiro, ao desmatamento. Eventos climáticos extremos já vêm ocorrendo com mais frequência em diversos lugares do Brasil.
De inundações a crises hídricas, a população brasileira paga o preço da irresponsabilidade na área ambiental. Não custa lembrar que a Floresta Amazônica, ao lado da Mata Atlântica e do Pantanal, é patrimônio nacional. Não deveria ser projeto de um governo dilapidar o patrimônio de todos os brasileiros de forma irreversível. O desmonte radical da agenda ambiental do país não deve ser tratado apenas como vicissitudes limitadas ao período do atual governo. Seus reflexos recairão sobre o país por muitas décadas e algumas das consequências nos acompanharão para sempre. A transformação das paisagens pode ser drástica e irreversível. Basta lembrar que o Deserto do Saara já foi uma savana entremeada de bosques e cursos de água… As vidas perdidas em desastres ambientais, passíveis de ser evitados, e nos conflitos crescentes no campo são irrecuperáveis. O potencial imenso de nossa biodiversidade de gerar riqueza para os brasileiros também pode se perder de forma irrevogável.
O vento da destruição sopra para muito além do que o aqui descrito. Sopra na perseguição aos servidores dos órgãos ambientais, no favorecimento de setores com modos arcaicos de produção, sopra no Parque Nacional de Abrolhos, quando a exploração de campos de petróleo à sua volta passa a ser uma possibilidade. Sopra nos parques que o MMA quer desconstituir, como Campos Gerais, no Paraná, e Lagoa do Peixe, no Rio Grande do Sul.
Mas sopra também em outras paragens, como na redução do gelo do Ártico, no aumento do nível do mar e no aquecimento excessivo de diversas regiões do planeta. Não resta alternativa para interpretar a agenda de destruição ambiental do atual governo: ou se trata de uma visão excepcionalmente tacanha, ou essa destruição serve a interesses que visam submeter o Brasil definitivamente, tomando dos brasileiros seu maior patrimônio.
Nurit Bensusan é especialista em Biodiversidade do Instituto Socioambiental (ISA).