A ascensão do bolsonarismo e a tempestade perfeita da sindemia de Covid-19
A ascensão do bolsonarismo no Brasil do século XXI promoveu uma reorganização da estrutura social brasileira, não somente nos âmbitos político e social coletivo, mas no cerne das famílias e das relações afetivas das amizades mais próximas
O descrédito do modelo de democracia indireta, a ganância desmedida de partidos políticos pela manutenção das suas hegemonias a qualquer custo, a influência da mídia brasileira, as manobras de poderes corporativos e da República, uma recessão econômica, todos os tipos de elitismos histórico-culturais, a sagacidade de grupos internacionais que são especialistas em utilizar o medo e a ojeriza como forma de promover a instabilidade ou criar coesão política entre as massas, o dogma religioso e novas ferramentas e estratégias de comunicação: a ascensão do bolsonarismo no Brasil do século XXI promoveu uma reorganização da estrutura social brasileira, não somente nos âmbitos político e social coletivo (trabalho, clube, mercado etc.), mas no cerne das famílias e das relações afetivas das amizades mais próximas. Melhores amigos brigaram. Tios e sobrinhas discutiram. Pais e filhos se desentenderam aos gritos. Foi um período muito conturbado para a sociedade brasileira em geral.
Essa reestruturação, que aconteceu de forma mais acentuada entre 2016 e 2020, foi especialmente traumática por conta da intensidade de ambos os elementos que colidiram nesta quadra histórica no que tange as mudanças sociais e a participação política do povo brasileiro. De um lado, o conservadorismo histórico que se aliou ao conservadorismo religioso e venceu as eleições ilegítimas em 2018. Do outro, a intensificação de tendências globais e inexoráveis, como a globalização, a ciência moderna, o combate ao racismo e o feminismo (esta última tendência compreendida como a busca da equidade total, considerando o tratamento destinado às pessoas de todos os gêneros).
Trata-se de um período na história do Brasil quando as forças políticas e sociais que representam esses raciocínios antagônicos travaram um embate sobre a plataforma do descrédito do modelo de democracia representativa. Isso foi catalisado em muitas sociedades civis modernas do planeta pela internet – com o surgimento de um novo paradigma de comunicação, principalmente desde a popularização dos smartphones, entre 2010 e 2013, via redes sociais, aplicativos e novas estratégias de construção de narrativas, que passaram a oferecer um protagonismo maior aos cidadãos comuns – e pela exacerbação da racionalidade neoliberal, por meio dos seus discursos, práticas e dispositivos, que visam organizar um novo modo de governo segundo o pseudoprincípio universal da concorrência irrestrita.
Nesse sentido, em outubro de 2018, cinco grandes forças motivaram a votação maciça que o então deputado federal Jair Bolsonaro recebeu nos dois turnos da eleição presidencial brasileira: o antipetismo, estimulado com voracidade ímpar por alguns dos principais grupos empresariais e de comunicação; o elitismo histórico-cultural, reforçado principalmente por boa parte da “classe média” e algumas camadas mais empobrecidas e ascendentes da população; o dogma religioso, neste caso, mais especificamente por meio da notória adesão dos evangélicos à candidatura de Bolsonaro; o sentimento antissistema, em virtude de uma imensa descrença no modelo de democracia representativa (31 milhões de abstenções e 11 milhões de votos brancos ou nulos); e o uso de novas ferramentas e estratégias de comunicação, tais como Facebook, Twitter, Instagram e WhatsApp, para a disseminação de notícias falsas e discursos de ódio ou medo.
Cerca de um ano e meio depois, a pandemia de Covid-19 desorganizou abruptamente as dinâmicas de funcionamento das sociedades civis em todo o planeta.
Entre 2020 e 2021, as principais nações do mundo, por meio das suas respectivas administrações federais, adotaram medidas legislativas restritivas considerando o fluxo de pessoas, produtos e serviços para conter o avanço do patógeno. Jair Bolsonaro correu atrás de uma ema com uma caixa de hidroxicloroquina nas mãos.
No Brasil, portanto, a crise causada pela Covid-19 combinou-se com o bolsonarismo e a instabilidade política preexistente e ganhou novos contornos, o que gerou múltiplos planos de um conflito institucional: (1) dentro do próprio governo federal; (2) entre os níveis federativos (com governadores e prefeitos estaduais); (3) com os demais poderes da República (Judiciário e Legislativo); e (4) junto à sociedade internacional.
Apesar de ser uma questão social extremamente ampla e complexa, os vetores centrais do agravamento do que se tornou uma sindemia (crises sanitária, política, econômica e, em última instância, social agindo simultaneamente) no Brasil entre os anos de 2020 e 2021 foram: a) o simbolismo presidencial, que ao longo de toda a crise sanitária negou a ciência e as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS) junto à população brasileira; b) a ausência do federalismo cooperativo, como resultado da falta de liderança e articulação da administração Bolsonaro nos âmbitos federal, estadual e municipal para a formulação de políticas públicas eficazes: c) a gestão (corrupta e criminosa) do Ministério da Saúde do Brasil, que teve as suas lideranças alteradas diversas vezes ao longo da pandemia; e d) a subdiagnosticação/subnotificação de casos, devido aos baixíssimos níveis de testes que foram realizados na população brasileira, à morosidade do governo federal em adquirir os reagentes necessários para viabilizar o processo em ampla escala e a politização irrestrita que o bolsonarismo imprimiu ao tema.
O resultado foi a formação da tempestade perfeita para o Brasil. Um cenário de incertezas, colapso sanitário e social, descrédito internacional, falta de harmonia institucional, insegurança pública, destruição do meio-ambiente e recessão econômica poucas vezes – ou talvez jamais – verificados na história da Nova República, justamente durante a maior pandemia dos últimos cem anos.
Dessa forma, nenhum outro tema é mais relevante para entendermos o atual cenário sociopolítico e econômico do Brasil – bem como o caráter e os níveis das mudanças sociais que vêm ocorrendo no país – do que refletir sobre a interação entre o bolsonarismo (com os seus diversos instrumentos políticos, administrativos e sociais) e a crise causada pela Covid-19.
Em uma das suas recentes obras, a terceira edição do livro intitulado Toward a New Legal Common Sense: law, globalization and emancipation, que foi lançado pela Cambridge University Press no segundo semestre de 2020, o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos faz uma analogia entre as ascensões do bolsonarismo no Brasil e do nazismo, na Alemanha.
Dadas as devidas idiossincrasias dos povos, suas culturas e de cada ocasião histórica, a comparação é extremamente pertinente, principalmente analisando os processos de ativismo judicial que precederam os governos de Hitler e Bolsonaro, as filosofias de ambos os regimes, o enrijecimento e os danos que eles produziram em suas respectivas sociedades.

No segundo semestre de 2021, após todas as ações e omissões da administração criminosa de Bolsonaro e do seu secto de lunáticos ao longo dos últimos 33 meses, mas, sobretudo, durante a crise da Covid-19, o Brasil finalmente encontra-se no vórtice da tempestade perfeita: mais de 600 mil mortes em decorrência da pandemia, escândalos de corrupção e desvios do governo, um colapso econômico, com desemprego recorde acima de 14%, atingindo mais de 14 milhões de pessoas, especialmente a parcela mais jovem, taxa de conversão do dólar em R$ 5,50, litro da gasolina sendo vendido por até R$ 7, o botijão de gás de cozinha de 13 quilos em R$ 120, aumento da desigualdade social de forma expressiva na comparação com os anos anteriores (processo que se acentuou em virtude de medidas econômicas neoliberais adotadas antes da pandemia sequer chegar ao Brasil), pobreza assombrando quase 52 milhões (menos de R$ 5,50 por dia), pobreza extrema afetando 13,7 milhões e a destruição acentuada do meio-ambiente e do parque industrial nacional, com demissões maciças nas iniciativas pública e privada, além de grandes empresas multinacionais deixando o mercado brasileiro.
Com a economia devastada, o segundo maior número de óbitos registrados em decorrência da doença em todo o planeta, a explosão da violência, da criminalidade e da intolerância, escândalos de corrupção do governo federal, desavenças internas e externas de todas as ordens, todos os indicadores sociais apontando a deterioração dos padrões de vida e o desmatamento recorde das suas florestas e regiões de preservação, a nação viu-se confrontada com os efeitos práticos que utilizar o ódio, o medo e os elitismos histórico-culturais combinados às redes sociais digitais para eleger os seus líderes representativos acarretam, invariavelmente. Assim, lamentavelmente para o Brasil, a ascensão do bolsonarismo ainda coincidiu com a pior pandemia do século.
Apesar do jogo político se dar com base no embate de narrativas muitas vezes antípodas, fatos sempre serão fatos e os indicadores sociais existem para demonstrá-los. Ou seja, não se pode “discordar” das mortes causadas pela doença, do valor da gasolina, das reservas internacionais, do Produto Interno Bruto, do gás de cozinha, dos alimentos ou do dólar, por exemplo.
Esses indexadores refletem parâmetros práticos e concretos da vida social cotidiana que independem da interferência de quem os observa de forma imediata. Portanto, não são questões abstratas ou partidárias, sujeitas a diferentes interpretações nesse sentido. O bolsonarismo potencializou amplamente os estragos da pandemia no Brasil. Fato. Cabe avaliar a extensão dos danos e as possíveis saídas e implicações dessas ações criminosas nos próximos anos.
Contudo, o bolsonarismo será superado. Estamos em um processo social evolutivo e histórico-cultural. Apesar de não acontecer de forma linear, essa marcha humana não será interrompida por nenhuma força social. Muitos déspotas fizeram uso desses elitismos históricos, do ódio e do medo para realizar a manutenção dos seus poderes durante certo período em diferentes lugares do mundo ao longo dos milênios.
Ainda assim, essa dinâmica não parou porque todas essas figuras autoritárias que precederam a nossa época existiram. Pelo contrário, esses ideólogos do caos foram parte do processo de desenvolvimento, porque foi preciso que as crises se agudizassem para que em seguida o avanço se consolidasse. Vale ressaltar, além disso, que essa luta deve ser respaldada por uma “análise racional das evoluções históricas passadas, com tudo que elas encerram de positivo e negativo”, conforme sugere Thomas Piketty, no livro Capital e ideologia. Em suma, precisamos aprender com a nossa própria trajetória humana para sermos capazes de construir realidades distantes do que rechaçamos considerando o passado.
De muitas maneiras, do médio para o longo prazo, a eleição de Bolsonaro e a ascensão do bolsonarismo servirão propósitos elementares para fomentar o desenvolvimento das forças sociais contra hegemônicas e progressistas ao longo deste século. O problema mais sério diz respeito ao cenário que pode se produzir nas próximas três décadas com base nessas filosofias sociopolíticas, a exemplo do que aconteceu na primeira metade do século passado na Europa.
Conforme aponto nos livros Tempestade perfeita: o bolsonarismo e a sindemia covid-19 no Brasil (Contracorrente) e A ascensão do bolsonarismo no Brasil do século XXI (Kotter), o Brasil vem se transformando em uma espécie de teocracia evangélica de caráter miliciano, fragmentada em todos os sentidos, com ênfase absoluta no agronegócio e no trabalho informal, frágil e a serviço do capital financeiro estrangeiro, fundamentalmente.
O golpe organizado pela direita liberal e setores do Poder Judiciário e da mídia brasileira em 2016 acelerou esse processo de forma alarmante, empobrecendo a subjetividade e estimulando ainda mais a racionalidade neoliberal entre a população brasileira.
A administração Bolsonaro representa a manifestação mais agressiva desse processo, porque, a partir de 2019, o bolsonarismo evoluiu as forças obscurantistas que o criaram para o nível seguinte de degradação e despolitização social. Os elitismos histórico-culturais e os sentimentos de antipetismo, antissistema e o ativismo judicial (Lava Jato) foram catalisados no projeto que destruiu o Brasil e agora ameaça, derradeiramente, a democracia nacional em 2022.
Apoiado por uma parcela do empresariado, pelas alas mais fisiologistas da política nacional e pela terceira parte mais radical, dogmática e elitista do eleitorado brasileiro, o bolsonarismo, frente à iminência da derrota, deverá seguir a cartilha de Donald Trump para tentar judicializar as eleições de 2022 ou até mesmo declarar uma espécie de Lei Marcial, Estado de Defesa ou Estado de Sítio para estabelecer o controle militar da nação, aprofundando a ruptura da democracia brasileira que foi iniciada com o golpe parlamentar de 2016 e avançando o projeto teocrático, dogmático e miliciano que assombra o futuro.
Evidentemente, estudos, livros, artigos, dados ou fatos não serão capazes de esclarecer a perspectiva de pelo menos algumas dezenas de milhões de eleitores antes do próximo pleito presidencial. Caberá, portanto, aos cidadãos que se omitiram nas últimas eleições – e que representam uma parcela significativa da população brasileira – garantir que o projeto do bolsonarismo seja definitivamente derrotado em 2022 de forma a caminharmos rumo ao processo de reconstrução nacional, após a tempestade perfeita que foi causada pela interseção entre o próprio bolsonarismo e a Covid-19 no Brasil, com base em um modelo de democracia mais participativa do que representativa ao longo das próximas décadas.
Cesar Calejon é jornalista, mestrando em Mudança Social e Participação Política pela Universidade de São Paulo (EACH – USP) com especialização em Relações Internacionais pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), e escritor, autor dos livros Tempestade Perfeita: o bolsonarismo e a sindemia covid-19 no Brasil (Contracorrente) e A ascensão do bolsonarismo no Brasil do século XXI (Kotter).