A Ásia de volta à cena mundial
A recente trajetória ascendente da China recupera a posição de destaque já ocupada pelos países asiáticos antes da devastadora colonização ocidentalPhilip S. Golub
Na seqüência do Japão e dos países recém-industrializados do Nordeste asiático, a China passou, no espaço de vinte anos, por uma dinâmica de crescimento que transformou o país em ator principal da economia mundial. Ela está em vias de se tornar o pólo estruturador de uma rede regional de trocas.
Essa transformação desmente o etnocentrismo ocidental segundo o qual determinismos culturais impediriam para sempre o “Oriente”, extremo ou não, de ter acesso a uma modernidade concebida, desde a revolução industrial européia, como uma singularidade ocidental. Aliás, a amplitude das mudanças suscita, há anos, questões e preocupações no “Ocidente” sobre uma eventual nova centralização da economia mundial em torno da Ásia e, a longo prazo, uma nova configuração dos grandes equilíbrios internacionais.
Nesse sentido, o New York Times Magazine questiona, em julho de 2004, se o século XXI seria um “século chinês1“. Na verdade, a transição chinesa está em curso, e sua trajetória de desenvolvimento está longe de ser uniforme. Supondo-se, entretanto, que a dinâmica de crescimento se mantenha sem grande ruptura social ou política, a China se tornará incontestavelmente, no decorrer do século, um dos atores preponderantes no sistema econômico e financeiro internacional.
Passado próspero
Esse movimento de fundo, tectônico, encontra suas fontes longínquas na posição que a Ásia ocupava no sistema mundial antes da fratura “Norte-Sul” e da criação dos “terceiros mundos2“, fratura induzida pela revolução industrial européia e pela colonização. Numa perspectiva de longo prazo, a China, como aliás toda a Ásia, estaria, portanto, em vias de reatar com sua história pré-colonial e reencontrar progressivamente o lugar que ocupava antes de 1800, quando era um dos corações da economia mundial e a primeira potência manufatureira do planeta. A China estava, então, no centro de uma densa rede de trocas regional, estabelecida há séculos, e a Ásia era a principal zona de produção e de lucro do mundo.
A Ásia está em vias de reencontrar o lugar que ocupava antes de 1800, quando era um dos corações da economia mundial
Em 1776, Adam Smith escrevia a esse respeito que “a China é um país bem mais rico que todas as regiões da Europa3“, realidade que os jesuítas já conheciam há muito tempo. Por sua vez, o padre Jean Baptiste du Halde, cuja enciclopédia sobre a China influenciou os comentários favoráveis de Voltaire, observava, em 1735, que o império chinês, florescente, tinha um comércio interno incomparavelmente superior ao da Europa4.
Cem anos mais tarde, tendo conquistado uma posição novamente dominante, a Europa acreditou redescobrir uma Ásia imóvel, fechada para sempre na pré-modernidade. Os filósofos alemães, Hegel dentre outros, imaginavam a China como um mundo fechado, cíclico, singular5. Para Ernest Renan, a “raça chinesa” era uma “raça de operários […], de uma habilidade manual maravilhosa, sem quase nenhum sentimento de honra”. Ele sugeria que fosse governada “com justiça, cobrando dela […] amplas arras em proveito da raça conquistadora6“. Essas linhas foram escritas, evidentemente, no auge da colonização.
Domínio tecnológico
Antes de 1800, os fluxos comerciais entre chineses, indianos, japoneses, siameses, javaneses e árabes eram de muito longe superiores aos fluxos intra-europeus; o nível dos conhecimentos científicos e técnicos era elevado, superando em muitos domínios o dos europeus. “Em termos tecnológicos, [a China] encontrava-se numa posição dominante antes e depois do Renascimento na Europa7“, destaca Joseph Needham, historiador das ciências. Esse avanço se confirmava em setores como os do aço e do ferro, os relógios mecânicos, a engenharia (pontes suspensas), as armas de fogo e os equipamentos para perfurações profundas.
Em 1750, a China tinha produtividade superior à média européia, considerando-se as populações da época
Não surpreende, portanto, que a Ásia tenha tido um lugar preponderante na economia manufatureira mundial da época. Segundo as estimativas do historiador Paul Bairoch8, em 1750, a parcela relativa da produção manufatureira chinesa era de 32,8% enquanto a da Europa era de 23,2% – suas populações respectivas eram avaliadas em 207 milhões e 130 milhões de pessoas. Tomadas em conjunto, as parcelas da Índia e a da China atingiam 57,3% da produção manufatureira global. Se à Índia e à China se acrescentassem as parcelas dos países da Ásia do Sudeste, da Pérsia e do Império Otomano, a parcela da Ásia no sentido amplo (não incluindo o Japão) aproximava-se dos 70%. A Ásia dominava particularmente no setor de produção dos têxteis acabados (tecidos de algodão e de seda indianos e chineses) – setor que se tornaria mais tarde a indústria de ponta, globalizada, da revolução industrial européia.
Sempre segundo as estimativas de Bairoch, a China tinha, em 1750, níveis de produtividade superiores à média européia, considerando-se as populações respectivas da época: o Produto Nacional Bruto por habitante na China chegava a 228 dólares9, contra o montante de 150 a 200 dólares, nos países na Europa. Com 66% da população mundial, a Ásia em sentido amplo representava, ainda em 1750, perto de 80% das riquezas produzidas (PNB) do planeta. Cinqüenta anos mais tarde, o PNB por habitante da China e o da Europa convergiam, sendo que a Inglaterra e a França eram os únicos países europeus que tinham níveis de industrialização (produção manufatureira por habitante) ligeiramente superiores ao da China.
A era da desindustrialização
Com a expansão colonial, a dominação global européia se traduziria pela desindustrialização da Ásia
Em resumo, “a China e a Índia eram as duas grandes regiões mais ?centrais? na economia mundial”, como escreve André Gunder Frank. A posição competitiva da Índia explicava-se por sua “produtividade relativa e absoluta” no setor dos têxteis, por seu “domínio do mercado mundial dos tecidos de algodão”; a da China decorria de sua “produtividade ainda maior nos setores industriais, agrícolas, no transporte (fluvial) e no comércio10“. Quando se dirige o interesse para países menores, mas prósperos, como o Sião (a atual Tailândia), percebe-se que o fenômeno se estendia muito além das fronteiras dos dois gigantes asiáticos. Nesse contexto geral, a Europa e as Américas desempenhavam “um papel de pequena importância11” antes de 1800, essencialmente centralizado no comércio triangular atlântico12.
Esse conjunto de elementos questiona a idéia ainda amplamente aceita de que a era ocidental teria começado em 1500, com a “descoberta” e a colonização das Américas. A fratura fundamental do mundo só ocorreria mais tarde, no século XIX, com a aceleração da revolução industrial e a expansão colonial, quando a dominação global européia se traduziria pela desindustrialização da Ásia. É necessário entender isso como o desaparecimento quase completo, no caso da Índia, e parcial, no caso da China, de suas manufaturas artesanais no decorrer do século XIX.
A referida desindustrialização resultava de um duplo mecanismo. Decorria, em primeiro lugar, do avanço europeu então conquistado no plano técnico. O maquinário permitia importantes aumentos e, portanto, um crescimento explosivo das manufaturas, cujo custo de produção baixava cada vez mais. Em seguida, essa desindustrialização era conseqüência dos termos desiguais de comércio e de troca impostos de forma coercitiva pelas metrópoles coloniais. A concorrência das manufaturas européias nos mercados indianos e chineses se dava num contexto de “livre comércio” que era tudo, menos livre: as colônias tinham a obrigação de abrir unilateralmente suas fronteiras aos produtos europeus, sem contrapartida.
Colonização devastadora
As colônias tinham a obrigação de abrir unilateralmente suas fronteiras aos produtos europeus, sem contrapartida
É por isso que a Índia, principal manufatureira de tecidos de algodão antes de 1800, viu sua indústria têxtil ser devastada rapidamente. Ela iria tornar-se um nítido exportador de algodão bruto e acabar, por volta do fim do século XIX, por importar a quase totalidade de suas necessidades em produtos têxteis. Entre as trágicas conseqüências humanas da transformação do país em exportador de bens primários, devem ser lembrados os períodos de fome devastadora devidos à substituição do algodão pelas culturas de gêneros alimentícios13, sem falar do recuo geral do nível de vida da população. Quanto à China, à qual a Grã-Bretanha e depois a França impuseram, através de duas guerras do ópio (1839-1842 e 1856-1858), o consumo do ópio produzido na Índia (leia, nesta edição, o artigo de Alain Roux), ela teve que aceitar tratados desiguais e passou por uma desindustrialização parcial da indústria siderúrgica.
Disso decorrem a criação dos terceiros-mundos e a divergência sempre crescente, ao longo do século, entre países colonizados e países colonizadores. Enquanto representavam 53% da produção manufatureira mundial em 1800, a China e a Índia não asseguravam mais que 7,9% em 1900. E se, no início do século XIX, o PNB por habitante na Europa e na Ásia era mais ou menos equivalente (198 dólares14 em média para a Europa, 188 dólares para os futuros terceiros-mundos), com uma ratio, pois, de 1 por 1, depois de 1860 essa ratio passou a 2 por 1, e até a 3 por 1 no caso da Grã-Bretanha (575 dólares contra 174 dólares nos “terceiros-mundos”). Na realidade, como indicam esses últimos números, “extraordinários e aterradores” conforme expressão de Paul Kennedy15, o recuo em relação à Europa não foi apenas relativo, foi absoluto: em 1860, o nível de vida nos países colonizados havia caído, em relação a 1800, por causa do expansionismo europeu.
Apenas o Japão e o reino de Sião escaparam da colonização. Graças à restauração Meiji de 1868 e à criação de um Estado diretivo forte, o Japão seria o único país não ocidental a ter êxito em seu esforço de industrialização e de modernização no século XIX. As raízes do sucesso nipônico na segunda metade do século XX, a despeito da catástrofe da II Guerra Mundial, encontram-se aí. Se a descontinuidade histórica é mais longa, a trajetória ascendente empreendida pela China nas duas últimas décadas está igualmente ancorada na longa história desse país. Habituado durante muito tempo a ser o sujeito pensante da história dos outros, o Ocidente deverá, agora, repensar sua própria história não mais como exceção e, sim, como um momento circunscrito na história universal.
(Trad.: Iraci D. Poleti)
1 – Ted C. Fishman, “The Chinese Century”, New York Times Magazine, 4 de julho de 2004.
2 – Ver os trabalhos de Andre Gunder Frank, especialmente Re-Orient, Global Economy in the Asian Age, University of California Press, 1998.
3 – Citado por Andre G. Frank, Re-Orient, op.cit.
4 – Descrição geográfica, histórica, cronológica política e física do império da China, 1735, Lemercier, Paris, BNF.
5 – Ler, de Jack Goody, L’Orient en Occident, Seuil, Paris, 1996.
6 – Ernest Renan, La Réforme intellectuelle et morale, Paris, 1871.
7 – Citado por Andre G. Frank, op. Cit. O termo “arras” evoca o direito das viúvas de tomarem posse dos bens de seus defuntos maridos. Aqui, trata-se, antes, de cobrar algo devido, em sentido amplo.
8 – Paul Bairoch, Victoires et déboires, Histoire économique et sociale du monde du XVIè siècle à nos jours, Gallimard, col. “Folio” Paris, 1997. Todas as estatísticas aqui publicadas foram retiradas dessa obra.
9 – Esses dados estão expressos em dólares de 1960.
10 – André Gunder Frank, op. cit.
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