A atuação de Jacinda Ardern na gestão contra a Covid-19
Este trabalho faz parte da segunda fase da série de artigos produzidos pelo Grupo de Pesquisa “Discurso, Redes Sociais e Identidades Sócio-Políticas (DISCURSO)” publicados na série Populismo e Crise. Nesta segunda fase, nos detemos na análise dos principais porta-vozes nacionais e internacionais dos discursos negacionista e científico. Neste artigo em particular caracterizamos uma das principais porta-vozes internacionais do discurso científico, a primeira-ministra de Nova Zelândia, Jacinta Ardern
O projeto de pesquisa “Discurso, redes sociais e disputa de narrativas relativas à pandemia do Covid19” que originou esta análise busca reconstruir a disputa política discursiva sobre a pandemia da Covid-19 de acordo com as principais performances discursivas do campo “negacionista” e do campo “científico”. Observa-se que estes dois campos fazem parte de uma disputa de polos temáticos diferentes em seus discursos: a sustentabilidade da economia e a sustentabilidade da vida.
A pesquisa revela a relação de poderes dominantes no acontecimento presente da pandemia de Covid-19. Este fato abre uma disputa política dos discursos, que pode vir a reelaborar as formações hegemônicas vigentes pré-pandemia. Essas disputas são reverberadas em diversas escalas, que vão desde a política local, até órgãos e/ou agentes internacionais.
Com base no exposto, este artigo tem o objetivo de caracterizar uma das principais porta-vozes internacionais do discurso científico: Jacinda Ardern, a primeira-ministra da Nova Zelândia.
Jacinda Ardern: a “presidenta do mundo”
Jacinda Kate Laurell Ardern é a terceira mulher eleita como primeira-ministra na Nova Zelândia. Em 2017, com apenas 37 anos, representando o Partido Trabalhista (Labour Party), passando a ser uma das lideranças mais jovens a comandar o país. Jacinda é proveniente de uma família de mórmons, no entanto declara-se atualmente como agnóstica. Possui uma atuação na política desde jovem, tornando-se ativa no Partido Trabalhista (Labour Party) aos 17 anos. Em sua eleição como primeira-ministra, necessitou fazer uma coalizão com o Partido Verde (Green Party) e com o New Zealand First (um partido nacionalista de centro).
Tornou-se uma liderança popular mundial em razão do nascimento de sua filha durante seu mandato e por ter a levado na cúpula da Assembleia Geral da ONU. Atuante em diversas questões progressistas, Jacinda é uma peça fundamental na campanha contra a xenofobia à povos islâmicos em seu país e no mundo. Destaca-se, também, na luta pela questão ambiental e no combate aos efeitos que aceleram as mudanças climáticas. Com um projeto inovador, sua gestão no governo neozelandês aprovou pacotes de medidas sociais voltadas ao tratamento de doenças psicopatológicas como a ansiedade. É uma líder declaradamente feminista e atua no combate à violência contra as mulheres. Políticas de pacotes financeiros para combater à pobreza infantil, atendimento médico gratuito às crianças mais carentes, distribuição de produtos de higiene menstrual nas escolas, aumento do salário-mínimo e aumento do salário dos professores, foram algumas de suas políticas implementadas em sua gestão.
Possui um posicionamento que se opõe às bases conservadoras. Jacinda discorda em criminalizar o uso da maconha. Desvinculou-se da igreja porque suas opiniões pessoais eram contrárias aos dogmas impostos pela religião, principalmente em relação ao seu apoio aos direitos homoafetivos. Além de ter criado um estreito diálogo com os povos originários na ilha, participando das festividades, traçando políticas e reconhecendo os valores Maoris, população autóctone que totaliza 15% da população do país.
O massacre ocorrido nas duas mesquitas em Christchurch simbolizava um dos principais desafios de seu governo, antes da chegada do novo coronavírus. Neste atentado arquitetado por terroristas com ideais da extrema-direita e anti-imigração, resultou na morte de 51 pessoas. Jacinda destacou-se pela empatia e apoio à comunidade muçulmana em seu país. Sua reação foi condecorada por membros das comunidades islâmicas, mas também por lideranças internacionais. Atuou no fortalecimento mais rigoroso sobre posse de armas de fogo, além de ter viajado para a cidade e prestado condolências pessoalmente aos familiares das vítimas. Ainda neste fato, obteve notoriedade ao responder a um questionamento do presidente Donald Trump após ser perguntada por ele se os Estados Unidos poderiam ajudar em algo. Na oportunidade, ela respondeu ao Trump pedindo simpatia e amor por todas as comunidades muçulmanas.[1]
Atualmente destaca-se como a líder mundial que combateu fortemente a Covid-19 em seu país, através de medidas sugeridas por órgãos científicos internacionais, implementando planos de ações rígidos de isolamento social. As fronteiras foram fechadas com antecedência. Destaca-se que no dia 19 de março, mesmo sem números confirmados de morte, impedia-se a entrada de viajantes estrangeiros. Quatro dias depois, os negócios não essenciais foram fechados. O bloqueio aplicado na Nova Zelândia foi considerado o mais rigoroso do mundo. A conscientização da população foi uma estratégia muito importante, a própria primeira-ministra dava o exemplo em suas redes sociais. Ela apontava as orientações, criando um significado para aquele novo viver, estabelecendo uma troca mútua no quesito empatia e convencendo que todos agissem em prol de uma meta coletiva.
Sua figura recebe mais destaque a cada dia que passa, principalmente quando é relacionada ao combate da Covid-19. Atuante em suas redes sociais, Jacinda tornou-se símbolo de modelo de gestão e como um ícone político da atualidade sua imagem também passou a ser mercantilizada. Além de memes que rondam a internet rasgando elogios as suas medidas tomadas, seu rosto tornou-se estampa de camisas, canecas, grafites e artes espalhadas em todo o mundo. Declarações de diversos cidadãos de diversos países demonstram que atualmente a Nova Zelândia se tornou o destino mais cobiçado no mundo afetado pela pandemia da Covid-19. Ademais, comentários em suas redes sociais demonstram o apelo popular em torno de sua figura, como até mesmo o fato de sugerirem que ela deva ser a “presidenta do mundo”. Assim, Jacinda reforça, perante a comunidade neozelandesa e internacional, seu papel de gestora mulher, mãe e feminista, provando para o mundo que é capaz administrar os problemas com empatia e ciência.
Enfrentando a pandemia com empatia e ciência
No atual contexto global, a pandemia da Covid-19 revela não somente as mazelas das desigualdades nos/entre países, mas também constrói, através da gestão de cada local, políticas de combate ou de negação da existência ou da propagação do vírus. Dessa forma, os discursos políticos revelam as ideologias através de suas estratégias utilizadas. Assim, o discurso de Jacinda Ardern demonstra o caráter populista presente nas suas abordagens.
O populismo tratado aqui tem o significado adotado por Ernesto Laclau (2013)[2]. A abordagem neste artigo não será baseada no sentido comum de populismo que é atrelada a regimes políticos, mas sim como um modo de se fazer política. A construção ideológica dos governos em relação a Covid-19 perpassa pelas estratégias da disputa hegemônica do discurso.
Para Laclau é através da oposição em que se organiza uma fronteira no discurso político, estruturando assim um “nós” e um “eles/outros” e uma cadeia de equivalências entre diferentes demandas. Além, é claro, da subjetividade popular. O discurso perpassa, também, pela questão emocional. Assim sendo, os atores políticos que constroem as demandas no período de pandemia constroem diversos componentes afetivos em seus discursos.
Dessa forma, as análises feitas têm o objetivo de compreender os artifícios utilizados por Jacinda Ardern ao comandar a Nova Zelândia no período atual. Assim, iremos trazer elementos do seu discurso enfatizando três aspectos relevantes que articulam entre si: a empatia, a economia e a ciência. Assim, procuraremos compreender no discurso de Jacinda, a demarcação da fronteira do “nós” e do “outro”.
Nesta análise foram feitos levantamentos de postagens, vídeos, lives e coletivas de imprensa noticiados em suas redes sociais, mas também em canais de seu partido, Labour Party.
Empatia e confiança: “aja como se estivesse com Covid-19”
Se existe um marco forte que caracteriza o governo de Jacinda Ardern, é a empatia. Sua trajetória política é marcada por sua capacidade de se colocar no lugar do outro. Jacinda traça diálogos buscando sempre o exercício da compreensão dos sentimentos e das emoções que certas pessoas ou grupos possam sentir em determinadas situações.
Assim, sua estratégia principal no combate a Covid-19 foi trazer a população neozelandesa junto consigo e cativar a todos no exercício maior de uma coletividade. Jacinda trabalha fortemente com os artifícios de uma comunicação que a aproxima do cidadão. Busca que todos compreendam que cada ato individual é importante dentro da comunidade em geral. Para isso, frisa em suas falas que todos devam caminhar juntos de acordo com as medidas científicas.
Uma de suas principais mensagens é stay strong, stay home and be kind (seja forte, fique em casa e seja gentil). Com essa mensagem desde o princípio, a primeira-ministra reforça a dificuldade do período que iriam enfrentar, passando uma imagem da realidade, mas também demonstra a necessidade de se manterem firmes e fortes para encarar a pandemia.
Além disso, intensifica o imaginário guerreiro do povo neozelandês, relembrando episódios de suas histórias e reforçando o papel dos seus antepassados, como ocorreu em sua fala em uma coletiva de imprensa do dia 20 de abril décadas atrás, eles se uniram nas mais difíceis circunstâncias e ajudaram a forjar quem somos hoje. Foi uma batalha muito, muito diferente da que estamos agora, mas o caráter de quem somos como país permanece exatamente o mesmo.
Em seus anúncios oficiais sempre é comum o reforço do papel do coletivo, principalmente no que tange aspectos de ajuda ao próximo. Em uma coletiva de imprensa do dia 23 de março obteve um bom momento para enfatizar tais aspectos de apoio mútuo precisamos de você para apoiar os outros. Vá para casa hoje à noite e verifique seus vizinhos. A construção de seu discurso em prol de um engajamento comunitário, colocou a população também como responsável para evitar danos causados pelas medidas rígidas de combate ao vírus planeje como manterá contato com outro. Nós vamos superar isso juntos, mas somente se continuarmos juntos. Então, por favor, seja forte e gentil.
O mesmo ocorre quando o discurso é direcionado aos estrangeiros que vivem ou estão de passagem pelo país. Caso queiram permanecer por lá neste período devem se enquadrar nas mesmas regras. Caso contrário não são bem-vindos. E se por acaso desobedecerem às regras, serão deportados. No entanto, Jacinda reforça o espírito neozelandês agregador, mas destaca a necessidade de compreensão e de reciprocidade, somos um país que leva muito a sério nossos papéis e responsabilidades de sermos hospitaleiros, mas, em troca, solicitamos que os visitantes sejam recíprocos. Nós cuidaremos de você se você cuidar de nós. Se você vier aqui e não tiver a intenção de seguir nossos requisitos para se auto-isolar francamente, não é bem-vindo e deve sair antes de ser deportado.
O discurso da empatia como prática teve uma importante performance simbólica. O momento em que ela anuncia um corte de 20% em seu salário e também em salários dos ministros e executivos de serviço público. Essa medida foi estabelecida durante 6 meses. A principal justificativa de Ardern, seria um ato de solidariedade àqueles que tiveram suas rendas diminuídas ou interrompidas. De acordo com a ela, os exemplos de bondade no país são muitos, como vizinhos cuidando uns dos outros, o congelamento de aluguéis, o cumprimento do isolamento social em suas casas para salvar vidas, o trabalho do Exército Estudantil na entrega de mantimentos para pessoas acima de 65 anos, entre outros. Neste tocante, a exemplo contrário de alguns líderes mundiais que acirram as disputas internas, ela relembra que talvez seja nos tempos atuais de adversidades, o momento de estreitar laços entre pessoas e grupos de posições diferentes.
No dia 25 de março, em uma de suas falas públicas sugeriu que caso alguém tivesse dúvidas de como agir em certas circunstâncias durante esse período, que aplicasse um princípio simples, aja como se estivesse com Covid-19. Dessa forma, cria-se a consciência e a vigilância. Cada movimento individual pode se tornar um risco para outra pessoa. Assim, de acordo com Jacinda Ardern devemos todos pensar coletivamente agora (…) to be calm, be kind, stay at home (fique calmo, seja gentil e fique em casa).
Na Nova Zelândia a política econômica não é antagônica à política da saúde
O discurso de Jacinda não coloca em antagonismos Saúde versus Economia. A primeira-ministra desde os primeiros relatos sobre a condição do vírus deixa evidente que a situação desencadeará em um desequilíbrio econômico. Assim, desde o início, ressalta a concentração de esforços em pacotes de recuperação econômica que possam garantir os empregos. No discurso de 16 de março, ela afirma que estão apoiando empresas a manterem as pessoas empregadas.
O alinhamento das estratégias de preservação da saúde através do rígido isolamento social, implicou em estagnação ou prejuízos econômicos em todo mundo. Na Nova Zelândia não foi diferente. Porém a estratégia adota por Jacinda foi de quanto mais rápido e rígido for a intervenção, mais cedo se recuperarão, e assim poderão retornar seguros para as atividades econômicas no país.
Uma das alternativas pensadas para suprir os déficits econômicos, foi a criação de uma possível zona livre de coronavírus. O turismo tem um papel econômico importante para a economia neozelandesa, sendo os viajantes australianos 40% dos estrangeiros a visitar o país. A sugestão criada seria uma bolha de viagem entre o Mar da Tasmânia, na qual viajantes da Austrália e da Nova Zelândia podiam transitar nessa área e impulsionar a economia dos dois países. Mas para isso, a Austrália precisa erradicar a circulação do vírus por lá. Caso seja implementada, a ideia seria estender a países declarados livres do vírus. Alguns países como Taiwan e Hong Kong, já almejam essa possibilidade. O que para os neozelandeses é excelente, tendo em vista a aproximação da temporada de esqui na Nova Zelândia.
O anúncio no dia 25 de junho da FIFA sobre a realização da Copa Feminina de Futebol no país, ocorreu como um processo importante que foi influenciado por causa da zona mais combativa à Covid-19 com melhores resultados no mundo. Esse anúncio estimula a economia do local e foi comemorado pela Jacinda em suas redes sociais. Este evento acontecerá em 2023, além desse, o país sediará também a Copa do Mundo de Cricket Feminina e a Copa do Mundo de Rugby Feminino ambos no ano de 2021.
Jacinda aposta em um viés econômico diferente. Atrela o desenvolvimento da economia aos bons índices da saúde humana, mas também à saúde do planeta. A primeira ministra da Nova Zelândia é uma líder que luta contra as emissões de gases poluentes na atmosfera, alertando para as possíveis mudanças climáticas. O foco do seu governo, desde antes da pandemia, traça um orçamento centrado em melhorar o “bem-estar” do cidadão. Assim, o bojo dos comandos econômicos não teria como rumo a produtividade em prol do crescimento do PIB (Produto Interno Bruto). Isso ocorre como pano de fundo quando perguntada sobre a recuperação econômica do país pós-pandemia, Jacinda diz que não há manual para a recuperação que estamos prestes a iniciar (…) Mas nem precisamos de um.
O combate à Covid-19 baseado na confiança na ciência
Sem sombra de dúvidas Jacinda Ardern apostou todas as suas fichas na ciência. Seus bons desempenhos no combate ao novo coronavírus ocorrem justamente por obedecer a risco a cartilha estabelecida pelos órgãos internacionais e nacionais de saúde. A própria primeira-ministra aparecia explicando as estatísticas de contágio. O papel fundamental para o combate foi a aproximação entre a liderança e a população. As estimativas de contágio e de óbitos guiaram as explanações públicas. Assim de acordo com Jacinda, nós podemos, e devemos continuar a romper a cadeia de transmissão (…) fizemos um bom começo. E as decisões que tomamos até hoje fizeram a diferença.
As estratégias foram traçadas de acordo com quatro níveis de restrições. Suas ações foram divulgadas de acordo com indicadores. Ao chegar no nível mais rígido ela afirmou que estava fazendo isso com mais dureza para poderem sair o mais rápido possível dessa situação. Assim, Jacinda disse que todas as ações que tomamos até o momento são para minimizar a quantidade de tempo que ficaremos no nível 4 para eliminar o vírus. Nossas ações pelo restante do período serão dobradas para garantir os ganhos obtidos no o primeiro tempo, para não desperdiçá-los no segundo.
Dessa forma seu governo investiu massivamente em testes de vigilância. Assim o rastreamento do vírus se tornava mais preciso e mais eficaz, o que gerava fortes aplicações de regras de bloqueio e de controle de fronteiras. As regras eram explicitadas e todos deveriam contribuir. Por consequência, agregava a população o dever conjunto de serem responsáveis para enfrentar o vírus. Segundo Jacinda agora não é o momento de relaxar, mas tempo para que todos nós nos concentremos ainda mais na missão que temos.
Em 2018 a revista Vogue a nomeou de líder “anti-Trump”. De fato, esse antagonismo não ocorreu somente antes da pandemia, mas suas medidas foram completamente contrárias às medidas tomadas por líderes de países como os EUA e o Brasil. Um de seus principais bordões no início do combate à Covid-19 era “Hit hard. Hit early”, no sentido de uma intervenção rápida, o mais cedo possível para combater a proliferação do vírus. Assim, de acordo com ela, nossa estratégia de intervenção dura e precoce, compensa.
No dia 08 de junho Jacinda veio a público dizendo que o país estava sem nenhum caso registrado de Covid-19. A notícia alimentou não só a Nova Zelândia de esperança, mas o mundo inteiro. Jacinda na coletiva de imprensa não conseguia esconder sua felicidade, mas alertou que as medidas seriam concebidas com cautela nós eliminamos a transmissão do vírus por enquanto (…) embora o trabalho não esteja concluído, este é um marco. Este fato, efetivamente foi uma conquista de uma gestão baseada na ciência, privilegiando o cuidado à saúde e a sustentabilidade da vida.
Novos casos apareceram depois desta data. No entanto, as medidas continuaram com o mesmo teor pautado na ciência e no bom exemplo dos governantes. O ministro da saúde de seu governo renunciou no início de julho devido às pressões de ter violado as próprias redes de bloqueio. Ele infringiu duas vezes, inicialmente levando a família na praia e na segunda vez praticando “mountain biking”. Esse exemplo demonstra o rigor e a seriedade que a pandemia foi tratada no país.
No discurso de Jacinda Ardern, observa-se que suas ações são direcionadas a todos os neozelandeses. Não se percebe uma distinção de público. O foco principal é a mensagem de prevenção a ser dada a todos. Como líder superior de seu país, na crise pandêmica, Jacinda exemplifica que governa em prol da saúde de todos os neozelandeses, independente da sua vertente política.
A análise do discurso de Jacinda Ardern
A partir das descrições, será utilizada a metodologia de frame analysis de Galván (2012)[3] para analisar os marcos do discurso de Jacinda Ardern durante o combate à Covid-19. Com base nos aportes do modelo de Snow (1988)[4], Galván estabelece os marcos a serem considerados no discurso, são eles: o marco do diagnóstico, que constitui na identificação do problema; o marco do prognóstico, no qual busca uma solução para o problema; e o marco da motivação, que provê os símbolos, os estímulos e as expectativas que movimentam a mobilização.
Ao traçar os marcos no discurso de Jacinda Ardern podemos compreender a busca de marcar sua posição política na disputa pela hegemonia. Assim, no marco do diagnóstico, identificamos a dimensão apresentada no discurso que marca o problema que deve ser combatido, no caso específico, que o vírus da Covid-19 não contamine a população da Nova Zelândia. Além disso, que comportamentos individualistas não atrapalham as medidas de contenção da doença estabelecida pelo governo.
Já no marco do prognóstico a proposta de solução dos problemas identificados é elucidada com a implementação de medidas que sejam de acordo com o viés científico. A partir daí identificamos a fronteira que se estabelece. A dimensão escolhida pela Jacinda compõe elementos que concentram os sentimentos de empatia, gentileza e gratidão. Seu antagonismo é estabelecido por atitudes individualistas, egoístas ou negacionistas. Dessa forma suas falas emblemáticas nesse período marcam bem sua posição quando pede para a população “ser forte, ficar em casa e ser gentil”.
Para finalizar, é estabelecido no marco da motivação o estímulo para a adesão das medidas estabelecidas pelo governo. Aqueles que aderem são pessoas, segundo Jacinda, preocupadas com a comunidade em que vivem, pessoas que recuperaram a força e a garra dos seus ancestrais, pessoas que são gentis. Este marco de acordo com Galvan (2012), é o marco no discurso que tem como objetivo o empoderamento. O que de fato Jacinda traz, coloca todos os neozelandeses como atores no combate à doença, assim como os torna vitoriosos com os excelentes resultados de combate.
A orientação sugerida pela metodologia de Laclau afirma que o discurso populista é construído a partir da construção do “eles”, ou seja do inimigo a ser combatido. No entanto, no discurso de Jacinda percebemos ao contrário. Primeiro ela constrói o “nós”, o “quem somos”. Assim, iremos nos referir aqui inicialmente pelo “nós”.
Jacinda Ardern ao construir o “nós”, obtém o ponto nodal de seu discurso a empatia, caracterizando principalmente a atuação do conjunto majoritário da própria população neozelandesa, que junto com o governo obteve bons resultados. Assim configura-se uma cadeia de equivalências que articula valores como o companheirismo, ao defender que ninguém deve ser abandonado, em conjunto com a responsabilidade, a gentileza e a gratidão em relação às pessoas que respeitam os parâmetros científicos e aos trabalhadores de serviços essenciais. Articula também atos como o ficamos em casa para salvar vidas e o evitamos o contato uns com os outros.
Além disso o “nós” é construído também por aqueles que seguiram as determinações científicas, sejam dos conselhos de saúde, sejam das estatísticas com a finalidade de achatar a curva e evitar novas transmissões. Jacinda não opõe o diálogo da saúde com as questões econômicas, coloca seu governo preocupado em manter os empregos e ajudar as empresas, estabelecendo que o foco na saúde se torna, também, uma estratégia para a economia.
No discurso político de Jacinda Ardern a construção do “eles” não aparece a todo momento de forma explícita. Até mesmo a oposição política ao seu governo não é contrária às medidas tomadas pela alternativa científica. Vale destacar que sua gestão procura ser baseada sempre na empatia e em prol de uma coletividade maior. No entanto, no discurso da primeira-ministra podemos observar alguns momentos em que se estabelecem a fronteira do “outro”. O ponto nodal que articula o discurso é estabelecido pelo valor da individualidade.
Dessa forma é organizada uma cadeia de equivalência através deste ponto. Ela atribui a esse valor: aquelas pessoas que vão trabalhar em serviços não essenciais e acabam colocando a vida dos trabalhadores essenciais em risco; aquelas que não obedecem às restrições de isolamento social e aqueles estrangeiros que não seguem as determinações do governo neozelandês, sendo ameaçados de serem deportados. No tocante, seriam os negligentes, os individualistas e os egoístas. Obviamente, se resume a todas aquelas pessoas que não seguem a cartilha do governo embasada na ciência.
Assim, podemos dizer que a agenda discursiva de Jacinda disputa com os discursos contrários à ciência. A hegemonia que Jacinda busca é pautada na ordem social com base em significados científicos e de uma vida em comunidade com empatia pelo outro em antagonismo ao significado de um mundo cada vez mais competitivo e individualista. Seu discurso além de seguir um tom científico é acompanhado por um forte apelo emocional. Seu discurso é de fácil compreensão, simples e pautado no bom senso.
A primeira-ministra utiliza suas redes sociais em prol do combate à Covid-19. Além de aparições diárias emitindo boletins e informando novos passos de abertura e/ou fechamento de setores no país. A comunicação diária sobre os rumos do país após a pandemia se tornou constante. A própria primeira-ministra aparecia nas redes oficiais, mas também em suas redes sociais, dando as informações sempre pautada em decisões científicas.
O Facebook de Jacinda configurou-se como uma das principais ferramentas de divulgação de ações. Ela aparecia sempre com sorriso no rosto tirando dúvidas da população. Demonstrou-se sempre muito próxima e aberta ao diálogo. Em uma de suas lives apareceu na própria residência vestida de moletom, em um aspecto bem à vontade. Desde antes da pandemia a primeira-ministra utiliza as redes e descreve esse recurso como um fazer político com um pouco de coração. Uma estratégia de aproximação do público com suas determinações.
A popularidade de Jacinda de acordo com as pesquisas e as eleições de outubro na Nova Zelândia
As medidas coordenadas pela Jacinda tiveram uma repercussão mundial. Seu governo já tinha ganhado certa notoriedade na escala internacional devido a diversas inovações e atuações da primeira ministra neozelandesa. No entanto quando o assunto é combate à Covid-19, Jacinda Ardern é elogiada por todos que acreditam em um combate sério baseado na ciência. Até mesmo os líderes da OMS tecem grandiosos elogios.
O núcleo duro de seus apoiadores, desde a eleição, é composto principalmente pelas mulheres e por jovens. Jacinda representa esse público por se encaixar nas duas categorias. No entanto, representa também a classe trabalhadora através do seu partido. Dia 17 de outubro deste ano, terá eleições na Nova Zelândia[5] e a competência de Jacinda será colocada em prova devido a esses resultados durante a pandemia.
As pesquisas, incialmente, demonstravam vitória de Jacinda com uma ampla diferença de seus adversários. Com isso, o principal partido de oposição a seu governo mudou suas estratégias diversas vezes. Simon Bridges, líder da oposição e até maio escolhido para disputar a presidência pelo New Zealand National Party (Partido Nacional da Nova Zelândia) – com posições de direita e de ideologias conservadoras e liberais – era o principal candidato opositor à Jacinda Ardern. No entanto, Bridges foi substituído após as prévias iniciais que calculavam as intenções de voto da população. As pesquisas indicavam que apenas 5% dos eleitores neozelandeses apoiavam Bridges. Em contraponto Ardern já aparecia com 63% do eleitorado.
O escolhido para enfrentar Ardern pelo New Zealand National Party foi Todd Muller. Desconhecido para muitos, mas com amplo apoio das categorias agrícolas, importante setor econômico do país. Com a crise causada pelo novo coronavírus e supostamente com as medidas rígidas adotadas por Ardern, seus opositores a atacam com base no discurso econômico para poderem vencer as eleições. Porém, o que vale destacar que o próprio adversário político admitia as excelentes medidas enfrentadas por Ardern durante a pandemia. Assim, deixava evidente que para tentar vencer as eleições teria que jogar com um discurso semelhante e favorável à Ardern, mas apelando para o foco econômico.
Neste momento as pesquisas indicavam que o eleitorado apontava Jacinda como a melhor opção tanto para combater a Covid-19, como para estabelecer um plano de recuperação econômica. De acordo com a HorizonPool, nesta etapa da disputa a eleitoral apontava Jacinda com 53% do eleitorado, contra 24% de Todd Muller, o restante totalizava 23%.
No entanto em meados de julho deste ano, Muller renunciou sua candidatura, alegando razões de saúde, mas muitos indicam pressões internas dentro de seu próprio partido e falta de estratégia para vencer Jacinda. Dessa forma o New Zealand National Party escolheu outra mulher para disputar o cargo mais alto do país com Jacinda, a parlamentar e advogada Judith Collins. Conhecida por ser conservadora e linha dura, Judith se autodenomina Margareth Tatcher, figura política na qual ela reverencia e tem admiração por sua história. Segundo Judith Collins, Thatcher merecia sua admiração por ter colocado a Grã-Bretanha de volta com destaque econômico mundial, após décadas de declínio. Sua escolha é tida como uma aposta da oposição em polarizar o máximo possível a disputa e tentar enfraquecer Jacinda Ardern. Neste tom a candidata aposta em jargões polêmicos como estou cansada de ser demonizada por ser branca. Assim, o New Zealand National Party aposta em conseguir votos tencionando o terreno das narrativas ideológicas que permeiam o país.
Assim como Muller, Collins tece os elogios à Jacinda. No entanto, esses elogios são sempre postergados com uma pressão. De acordo com ela, Jacinda merece receber os créditos devidos na gestão contra a pandemia, no entanto Collins não tranquiliza seu tom, dizendo que não deixará escapar impune qualquer deslize de Jacinda.
As prévias demonstram o resultado do trabalho de Jacinda relativo a pandemia. Pesquisas durante este período já revelaram a primeira-ministra com uma aprovação de 84% em relação a suas medidas dentre todos os neozelandeses. Além de ter sido indicada como a principal liderança a governar o país no último século.
Tudo indica que será reeleita e com grande aprovação da maioria da população. Na pesquisa realizada pela Colmar Brunton e divulgada uma hora antes do debate da terça-feira, dia 22 de setembro, revela o Partido Trabalhista (Labour Party) de Ardern com 48% das intenções de voto, enquanto o New Zealand National Party de Collins com 31%.
Nova Zelândia: ciência acima de tudo, empatia acima de todos!
As características mais marcantes no discurso de Jacinda Ardern é o apelo que ela faz para outras formas de se fazer política. A empatia determinada por ela, demonstra o ponto central do seu discurso como prática. Suas performances marcam uma política que contrapõe grande parte da linha conservadora e liberal que ronda o mundo atualmente.
A pandemia trouxe à tona um mundo com diversos atores políticos que negam a ciência, negam os valores fundamentais da vida e supervalorizam uma economia pautada na competitividade e na produtividade do sistema capitalista. O exemplo de Ardern freia a percepção de um mundo que só seria possível se fosse pautado inicialmente pelas determinações econômicas.
A primeira-ministra da Nova Zelândia atua com forte emoção no apelo a valores básicos da humanidade, mas pautada sempre pela razão científica. A pandemia da Covid-19 demonstrou que a gestão de Jacinda se destacou devido marcadores de empatia, gentileza, gratidão e ciência. Dessa forma, simboliza um exemplo de um possível futuro pós-pandemia não somente em seu país, mas como referência para todo o planeta.
A maneira como a pandemia foi administrada, desencadeou em uma grande popularidade da Jacinda entre os neozelandeses. O fato veio a calhar no momento oportuno em que o país se prepara para eleições parlamentares. A situação desenha-se tão favorável para Jacinda Ardern, que até mesmo seus opositores são cautelosos em criticar alguma de suas medidas tomadas na gestão da doença.
Países comandados por mulheres têm se saído muito melhor no combate à Covid-19 do que os demais. Fato importante a ser destacado. As lideranças políticas mundiais, em sua esmagadora maioria, repercutem o papel do comando atrelado a uma suposta vocação masculina. A trajetória de Ardern, assim como de outras líderes mundiais, derrubam essa suposta vocação e constroem seus países como locais de referência no combate à doença e em outras questões que assolam os tempos atuais da humanidade.
Daniel Macedo Lopes Vasques Monteiro, Jorge O. Romano, Thais Ponciano Bittencourt, Liza Uema, Paulo Augusto André Balthazar, Annagesse de Carvalho Feitosa, Eduardo Britto Santos, Daniel S.S. Borges, Juanita Cuellar Benavídez, Renan Alfenas de Mattos, Ricardo Dias, Ana Carolina Aguiar Simões Castilho, Caroline Boletta de Oliveira Aguiar, Érika Toth Souza, Juana dos Santos Pereira, Larissa Rodrigues Ferreira, Myriam Martinez dos Santos, Pamella Silvestre de Assumpção e Vanessa Barroso Barreto são pesquisadoras e pesquisadores do grupo de pesquisa “Discurso, Redes Sociais e Identidades Sócio-Políticas (DISCURSO)” vinculado ao Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento Agricultura e Sociedade e ao Curso de Relações Internacionais do DDAS/ICHS da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, registrado no CNPq e com apoio de ActionAid Brasil
[1] Metodologicamente, ao longo do texto, colocamos em itálico palavras ou significados tanto expressos nas práticas discursivas dos atores como aquelas que achamos adequadas, em termos de significado, pelo trabalho analítico e que gostaríamos de destacar.
[2] Laclau, E. A Razão Populista Ed. Três Estrelas, São Paulo, 2013
[3] Galván, I. E.: La lucha por la hegemonía durante el primer gobierno del MAS en Bolivia (2006-2009): un análisis discursivo. Madrid: Universidad Complutense, tesis de doctorado, 2012.
[4] Snow, D. e Benford, R. “Ideology, Frame Resonance and Participant Mobilization” in B. Klandermans, H. Kriesi y S. Tarrow (eds.) From Structure to Action: Comparing Social Movement Research across Cultures. Greenwich: JAI Press, 1988.
[5] Juntamente com as eleições parlamentares, a Nova Zelândia irá às urnas para votar em dois plebiscitos, o primeiro em relação ao uso recreativo da cannabis e o segundo em relação a lei da eutanásia.