A organização do trabalho, assim como o sistema de aposentadoria e os gastos com saúde seriam – dizem-nos – problemas tão importantes que não poderiam ser objeto de escolha entre várias políticas: haveria apenas uma “reforma” possível. E é na Europa Ocidental do início do século XXI, depois de mais de cinqüenta anos de paz e de crescimento que esse discurso é atualmente dominante. No entanto, na França devastada do pós-guerra, essas perguntas foram feitas e em grande parte respondidas aplicando o programa do Conselho Nacional da Resistência (CNR), elaborado na clandestinidade e adotado em 15 de março de 1944. O progresso rumo a mais justiça social valeria apenas em tempo de penúria, enquanto que a abundância da produção justificaria a extensão da desigualdade a todos os domínios da sociedade.
A história do CNR, reunido pela primeira vez em maio de 1943 no 48 da rua du Four em Paris, nas barbas do ocupante nazista, e seu programa, adotado pouco menos de um ano mais tarde, merecem mais do que uma simples saudação retórica. As escolhas econômicas e sociais são de fato inseparáveis dos momentos históricos. Na noite da Ocupação, durante muitos meses, os resistentes se reuniram arriscando suas vidas, trocaram documentos visando redigir um programa destinado a definir a política da França para depois de sua libertação, pois tinham presente no espírito os acontecimentos que haviam determinado a política de seu país por uma década.
O CNR, que reúne os movimentos de resistência, os sindicatos (CGT1 e CFTC2 ) e também os partidos e tendências políticas (Partido Radical, Partido Socialista, Partido Comunista, Democratas Populares, Aliança Democrática e Federação Republicana) em luta contra o regime de Vichy e o ocupante alemão, traduz a tomada de consciência da necessária unidade do combate democrático. Apóia-se na memória das vitórias, mas também das desilusões e do esquecimento dos compromissos que haviam acompanhado os combates antifascistas por uma década.
Amplitude e diversidade
A Frente Popular foi uma resposta gloriosa à crise social, econômica, moral e cultural da França no começo dos anos 1930
Desse ponto de vista, a Frente Popular foi uma resposta gloriosa à crise social, econômica e também moral e cultural da França no começo dos anos 1930. A unidade de ação dos Partidos Comunista e Socialista e depois a ampliação com o Partido Radical, a reunificação sindical, mas também a aliança com o mundo das associações, de 1935 a 1938, permitiram modificar o rumo da evolução política e social começada pelas forças da direita. Em resposta à discriminação contra os estrangeiros expulsos, contra as mulheres deixadas de lado, à marginalização econômica e cultural das classes populares, a Frente Popular foi a oportunidade, para o mundo operário especialmente, de irromper no cenário público, de nele reivindicar seu lugar. Em 1936, o engajamento maciço dos assalariados da indústria e dos serviços nas greves, bem como nas manifestações testemunhavam uma forte politização associando antifascismo e reivindicação social.
Mas a democratização iniciada naquele ano pela ação conjunta de um movimento popular e do governo foi muito depressa derrubada; muitas reformas prometidas e esperadas foram abandonadas, com o espectro da guerra dividindo aqueles que, até então, haviam denunciado o militarismo. A política em relação à Espanha Republicana, de 1936 a 1938 provocou as primeiras fendas que o pacto germano-soviético, em agosto de 1939, iria aumentar profundamente. A dinâmica da divisão dos componentes da Frente Popular acompanhou o questionamento das instituições republicanas por forças conservadoras para as quais o inimigo se situava agora dentro do país. A derrota militar de 1940 diante do exército alemão foi também a derrota de uma República que depois de ter repudiado os entusiasmos de 1936, deu lugar a um regime de retaliação social e de reação.
O Estado francês que pretendia, desde julho de 1940, sob a autoridade do marechal Pétain, estabelecer uma Revolução Nacional associada à colaboração com o ocupante, operou uma política a serviço dos grandes interesses econômicos, relegando de novo o meio assalariado a um papel subalterno. Com suas conquistas sociais questionadas, a Frente Popular foi também, nessa condição, considerada responsável pela derrota. O processo de Riom, em fevereiro de 1942, que deveria popularizar esta tese graças à acusação pública feita aos ex-ministros da República, foi um fiasco e teve de ser interrompido. De todo modo, as divisões das forças da Frente Popular e o fim da República marcaram fortemente os começos da Resistência. O caminho que, de 1940 a 1943 levou de sua diversidade à sua unificação foi difícil e complexo. Sublinhar alguns de seus aspectos esclarece o teor do programa adotado em março de 1944.
Dificuldades da ResistÊncia
O processo de unificação será impulsionado pela ação de Jean Moulin, que recebe a missão explícita de De Gaulle
A Resistência francesa, no amanhecer de 1943, inseria sua ação em um contexto internacional e nacional em rápida evolução. No fim do ano de 1942 o desembarque anglo-americano na África do Norte, a entrada das tropas alemãs na zona sul da França, a contra-ofensiva do exército soviético em Stalingrado traduzem uma modificação da correlação de forças em favor das nações unidas contra as potências fascistas. O lugar e o futuro papel das resistências nacionais, particularmente na França, foram mais ainda questionados na medida em que britânicos e americanos dão uma importância mínima à resistência interna e negam a De Gaulle a qualidade de único representante legítimo da França.
Os acontecimentos da África do Norte, marcados por negociações e compromissos com os militares e a administração de Vichy, dão, no início de 1943, uma grande agudeza a esta questão. Do lado da Resistência interna, as dificuldades eram outras: vinham da heterogeneidade das organizações e da diversidade de seus objetivos. Uns, como os movimentos, nutriam fortes prevenções contra os partidos políticos considerados responsáveis pelo fracasso da República. As forças políticas se encontravam em situações muito contrastantes: se o Partido Comunista podia prevalecer-se de uma organização e de uma atividade inegáveis forjadas há muito tempo na ação clandestina, o mesmo não ocorria com os outros partidos, a começar pelo Partido Socialista, cuja reconstituição era recente e do qual muitos antigos militantes tinham preferido integrar diversos movimentos e redes. O sindicalismo, que o regime de Vichy tinha tentado integrar às estruturas oficiais, estava ainda marcado pelas divisões internas avivadas pelo pacto germano-soviético.
Estas prevenções entre organizações traduziam ao mesmo tempo desacordos táticos e heranças culturais e políticas diferentes. Da mesma forma, as incompreensões entre a Resistência interna e a França livre em torno de De Gaulle refletiam divergências sobre o papel e o lugar dos civis na perspectiva da libertação do país. O processo de unificação será impulsionado pela ação de Jean Moulin, que recebe a missão explícita de De Gaulle. Os contatos diretos estabelecidos em Londres entre o Partido Comunista e De Gaulle criam uma situação favorável, assim como a aceitação, pelos aliados, da criação em Alger, de um Comitê Francês de Libertação Nacional, presidido por De Gaulle e embrião de um verdadeiro governo da Resistência.
Objetivos comuns
A afirmação unânime dos fundamentos democráticos da vida política atestava uma vontade comum de reatar laços com a República
Esse contexto esclarece a formação do CNR em 23 de maio de 1943, assim como sua composição. Finalmente, o organismo reúne oito representantes dos movimentos de resistência, seis dos partidos ou tendências políticas, dois dos sindicatos. Estas forças não tinham os mesmos títulos a fazer valer em termos de ação prática e antigüidade no combate. A presença de partidos políticos como os radicais (Marc Rucart) e principalmente a Aliança Democrática (Joseph Laniel) ou a Federação Republicana (Jacques Debu-Bridel), claramente situadas à direita, exprimia a vontade de abrir a Resistência a forças políticas que contrabalançassem a influência comunista. Esta última se apoiava na ação de seu partido e de seus militantes, especialmente no terreno da luta armada, entre franco-atiradores e partisans3 , que por sua vez dependiam da Frente Nacional pela Independência da França, movimento representado no CNR por Pierre Villon. Ao lado do representante da CGT (Louis Saillant), que se reunifica no mesmo momento, figura pela primeira vez o representante da CFTC (Gaston Tessier), o que traduz o engajamento do sindicalismo cristão na Resistência, no momento em que a maior parte da hierarquia católica continua a levar seu apoio à política de colaboração do regime de Vichy.
Essa presença do catolicismo social é confirmada pela participação dos Democratas Populares como partido político. É, aliás, seu representante, Georges Bidault, que depois da prisão de Jean Moulin, toma a direção do CNR. É no inverno de 1943-1944 que a redação de um projeto de texto comum é posta na ordem do dia. Trata-se de responder às preocupações de vários partidos e movimentos, em ressonância com as discussões que se desenrolavam em Alger, especialmente na Assembléia Consultiva, sobre a política a pôr em prática na França depois da libertação. A elaboração do documento foi lenta e laboriosa. O texto adotado foi o fruto de discussões e debates retardados pelo combates e a clandestinidade. As tensões e as diferenças de apreciação refletiam a diversidade das organizações membros do CNR: os partidos políticos de centro-direita eram reticentes em relação a medidas econômicas e sociais radicais, mas seu peso na ação resistente era fraco e todos concordavam com a necessidade de reformas profundas para reconstruir o país e a democracia. A afirmação unânime dos fundamentos democráticos da vida política atestava uma vontade comum de reatar laços com a República, apesar da crise de 1940. Na verdade, a divergência principal era sobre o equilíbrio a manter entre, de um lado, a ação imediata e o papel da Resistência interna nos combates visando a libertação e de outro o programa de reformas, tanto sociais e econômicas quanto políticas, a definir para a França do pós-guerra. Os socialistas acentuavam as reformas da estrutura enquanto os comunistas insistiam mais na luta armada, na mobilização de massa contra o ocupante e o papel dos comitês de base. Para tanto, com o apoio dos sindicatos e dos movimentos, chegou-se à definição de grandes objetivos comuns e de reformas.
Esse programa comum, que se inseria numa tradição política francesa marcada há longo tempo pelos prazos eleitorais, tinha, no contexto da Resistência, um caráter muito inovador, associando a ação com um projeto essencialmente centrado nas questões econômicas e sociais decisivas para o mundo trabalhista, mas também para a reconstrução do país. O realismo das proposições originava-se também do fato de estarem ancoradas às reivindicações e às experiências das lutas empreendidas desde a Frente Popular.
A conivência dos meios econômicos com o ocupante, os sofrimentos dos assalariados da indústria e dos trabalhadores agrícolas, sua participação na ação resistente davam sua legitimidade a um programa acentuando os direitos sociais e a igualdade dos cidadãos, o primado do i