A batalha de Londres
Uma enfermeira perguntou ao primeiro-ministro como pretendia modernizar os serviços públicos de saúde, transporte e educação. O sorriso estudado de Blair transformou-se num esgar e, mal contendo sua raiva, replicou que as palavras “desta senhora” eram apenas “tolices”Philippe Marlière
Numa obra publicada pouco antes das eleições de maio de 1997, Anthony Blair insistia na necessidade de descentralizar os poderes do Parlamento em diferentes regiões do reino: “Nosso país encontra-se à beira de uma grande mudança. Não podemos continuar com esse sistema de governo hiper-centralizado, secreto e desacreditado que temos atualmente. Devemos mudar isso e acreditar naqueles que devem assumir a responsabilidade de seus destinos.” [1]
Mudança de cenário. No dia 19 de janeiro de 2000, Blair convida milhares de londrinos, militantes de base de seu partido, para uma sessão de perguntas e respostas. A campanha para a escolha do candidato trabalhista à Prefeitura de Londres estava no auge. Foi acolhido com frieza: o que deveria ter sido uma “reunião em família” transformou-se num enfrentamento desde a primeira pergunta.
“Obcecado pelo controle”
Uma enfermeira, não suportando mais ver o governo aplicar os dogmas neoliberais dos conservadores, perguntou ao primeiro-ministro como pretendia modernizar os serviços públicos de saúde, transporte e educação, em plena desintegração. O sorriso estudado de Blair transformou-se num esgar. Mal contendo sua raiva, replicou que as palavras “desta senhora” eram apenas “tolices”. Mais tarde, a virulência de seus ataques contra Kenneth Livingstone — recentemente eleito prefeito de Londres — acabou por deixar consternado o auditório, que em sua maioria apoiava Livingstone. A intervenção de Blair exortando os militantes a não votarem num candidato “extremista” foi entrecortada por vaias e assobios.
Em todo o país, a base trabalhista deplora a ausência de pluralismo num partido que, autoritariamente, foi renomeado “New” Labour pelos amigos de Blair. Esse revés foi tão criticado que Blair, a partir daí, é apresentado pela imprensa como um “obcecado pelo controle”. Por ocasião do processo de descentralização, o comportamento antidemocrático dos partidários de Blair chocou a base militante. Por três vezes consecutivas Blair foi acusado de truncar os resultados e de impor candidatos: na eleição do Parlamento escocês, na escolha do representante trabalhista para a Assembléia do País de Gales e, mais recentemente, quando da designação do candidato trabalhista para a Prefeitura de Londres. Em cada um desses casos, os membros do Partido Trabalhista deram uma lição de democracia ao “New” Labour.
Um teórico e praticante do neoliberalismo
Durante o ano que se seguiu à chegada do Partido Trabalhista ao poder, o governo de Blair tinha posto em prática quatro projetos de descentralização (devolution). A Escócia se viu dotada de um parlamento, [2]a Irlanda do Norte e o País de Gales passaram a ter uma Assembléia. E foi elaborado um projeto para permitir que os londrinos, assim como os habitantes de outras grandes cidades, elegessem seu prefeito pela primeira vez. Teórico e praticante da desregulamentação econômica, Blair optou assim por fazer acompanhar seu neoliberalismo por uma liberalização política das relações entre um centro hipertrofiado e regiões sem representação real. Tratava-se de “aproximar as pessoas do poder”. [3] Esta orientação foi tida como uma das raras medidas de esquerda de seu governo.
Dois anos mais tarde, se a liberalização econômica segue faceiramente o seu curso, o liberalismo político de Blair deixa a desejar. O movimento de descentralização é bem bolado, mas não se processa da forma imaginada pelos seus beneficiários. Em vez de delegar o poder de decisão às regiões, Blair se esforça em colocar — para não dizer impor — pessoas próximas a si nos postos-chaves. Na Escócia, cada candidato teve que passar por um exame diante de um júri composto de fiéis do primeiro-ministro — que faziam perguntas destinadas a testar seu grau de proximidade com a política do poder central. Dennis Canavan, deputado de Falkirk West, foi considerado inapto a disputar as eleições, quando tinha sido reeleito, com ampla votação, desde 1974. Tachado de “Old” Labour pelos “modernizadores” do partido, Canavan parecia muito ligado à defesa de uma política econômica social-democrata, e conseqüentemente distante do “centralismo radical” do primeiro-ministro. Apesar de tudo, Canavan apresentou-se à eleição como candidato independente. E foi triunfalmente reeleito contra o candidato do “New” Labour.
O “voto em bloco” dos sindicatos
No País de Gales, o controle da eleição tomou contornos ainda mais supreendentes. Alun Michael, um tecnocrata grotesco, foi “eleito” para encabeçar a lista trabalhista contra Rhodri Morgan, um social-democrata de posições bem definidas, estranho ao “modernismo” do “New” Labour. Apesar de Morgan ter recebido um total superior de votos dos militantes, Michael venceu graças ao voto “em bloco” de alguns dirigentes sindicais que, após se terem recusado a consultar seus filiados, colocaram a totalidade de votos de seus sindicatos em favor do candidato preferido do primeiro-ministro.
A eleição de maio de 1999 no País de Gales demonstrou o nível de irritação que suscitaram tais métodos. O partido trabalhista afundou, só conseguindo atingir uma maioria relativa na nova Assembléia. Uma parte importante do eleitorado de esquerda se absteve de votar ou se decidiu por candidatos independentes. Aquele que os galeses denominaram o “marionete de Blair”, só sobreviveu por alguns meses a essa desconfortável situação. Ameaçado por um voto de repúdio, Michael demitiu-se em fevereiro de 2000. E, para substituí-lo, o “New” Labour foi obrigado a aceitar Morgan. Recebendo recentemente, em Downing Street, o novo dirigente galês, Blair teve que admitir que errara ao se imiscuir naquela eleição. E reconheceu também, implicitamente, que suas intervenções tinham prejudicado a causa do Partido Trabalhista. [4]
O “partido que frauda eleições”
Em fevereiro do ano 2000, o partido celebrou seu centésimo aniversário. Na ocasião, a revista do partido retratou a história do movimento trabalhista. Num artigo intitulado “O partido trabalhista ganha a confiança das pessoas”, rendia-se homenagem ao já falecido líder John Smith, a quem se deve a “adoção do princípio ’um filiado, um voto’, acabando com a estrutura de ferro exercida sobre as decisões do partido pelo voto ’em bloco’ (dos sindicatos), e abrindo a via para as mudanças realizadas por Tony Blair” [5] Cruel ironia: naquele mesmo instante ocorria, em Londres, a convenção que escolhia o candidato trabalhista ao cargo de prefeito — e o voto “em bloco” dos sindicatos fez pender a balança em favor do candidato apoiado pelo primeiro-ministro…
Essa convenção levou a perplexidade às fileiras trabalhistas. O “New” Labour foi então rebatizado como o “partido que frauda eleições” [6] Depois de ter passado, em condições rocambolescas, o teste da entrevista na sede do partido, Livingstone, um social-democrata de esquerda, a veterana atriz Glenda Jackson e Frank Dobson, o candidato de Blair, deveriam chegar ao desempate pelos votos dos militantes, organizados num colégio eleitoral complexo que abrange três seções: uma composta por representantes na Câmara dos Comuns e deputados europeus londrinos; outra, por sindicalistas afiliados ao partido; e, por último, os filiados diretos. Este colégio foi concebido de maneira a supervalorizar os deputados: seu voto tinha um peso 450 vezes superior ao de um militante de base. Por outro lado, as direções sindicais podiam ignorar seus filiados e encaminhar integralmente seus votos para um candidato tirado em conchavo.
Uma “derrota” com 50 mil votos na frente
Vigiado de perto pelo gabinete do primeiro-ministro, o colégio dos deputados votou maciçamente, é claro, em Dobson. Os sindicatos que consultaram seus filiados votaram amplamente em Livingstone (74,6% contra 14,1 % de Dobson). Mas quando apelaram para o esquema do voto “em bloco”, Dobson passou a contar com 80% dos votos. Os filiados diretos, eles votaram em Livingstone (60% contra 40%). Se o princípio de “um filiado, um voto” tivesse sido levado em conta, Livingstone teria facilmente ganho a convenção, pois recebeu cerca de 70.000 votos contra apenas 20 000 votos dados a Dobson.
Vergonhosamente roubado, Livingstone anunciou pouco depois que se apresentaria como candidato independente na eleição de 4 de maio. Foi praticamente excluído na mesma hora do partido em que militava há trinta e um anos. E o “New” Labour chegou a ameaçar, num primeiro momento, a exclusão de todos os filiados que viessem a fazer campanha para Livingstone — posteriormente, reconsideraram a posição: teriam que expurgar mais de um terço dos trabalhistas londrinos.
Política social e orientações progressistas
Blair explica que Livingstone faria o Partido Trabalhista retornar ao “período mais sombrio” do militantismo de esquerda da década de 80. Cognominado “Ken, o vermelho” pela imprensa do magnata Rupert Murdoch, desqualificado como “lixo vermelho” num panfleto de campanha de Dobson, Livingstone, no entanto, não tem nada de um perigoso agitador. Seu tipo de socialismo permitiria facilmente que transitasse no governo de Lionel Jospin.
Livingstone foi o último líder do Greater London Council (GLC) , uma espécie de conselho metropolitano, entre 1981 e 1986. Pôs em prática uma política social e defendeu as orientações progressistas nas cláusulas sociais. Conseguiu, por exemplo, reduzir os preços dos transportes públicos (ônibus e metrô), contribuindo para reduzir o congestionamento dos automóveis e a poluição; estabeleceu os primeiros contatos com o Sinn Fein, braço político do IRA (exército republicano irlandês); defendeu o princípio da igualdade dos sexos e foi um dos primeiros a defender, no partido, os direitos dos homossexuais. Também criou normas que permitissem o acesso de deficientes físicos aos transportes públicos, subvencionou as artes e incentivou relações mais diretas entre a polícias e os londrinos.
Um senso de humor admirável
Mas Livingstone também foi um feroz opositor político de Margaret Thatcher, que, nada podendo fazer para o vencer politicamente, limitou-se a extinguir o GLC em 1986. Atualmente, a prioridade de Livingstone é a modernização do metrô londrino — o mais caro e ineficaz do mundo — e defende o financiamento desse projeto através da emissão de títulos vendidos ao público. Blair opõe-se radicalmente, preferindo uma privatização parcial, apesar do fracasso da privatização do transporte ferroviário e de um estudo independente que indica que o projeto governamental custaria um bilhão de libras mais caro do que a proposta feita por Livingstone. [7]
Igualitarista no plano social, liberal em matéria de costumes, Kenneth Livingstone não poderia deixar de contrariar o liberal-paternalismo do “New” Labour. Com um admirável senso de humor, ele seduz os londrinos pois seu estilo esbarra na retórica impessoal e superficial do “New” Labour. Este modernizador de esquerda — que critica o conservadorismo dos dirigentes sindicais e o tecnocratismo neo-liberal do primeiro-ministro —, goza de grande popularidade nos meios sindicais, artísticos e intelectuais. [