A batalha pelos dados eletrônicos
Cada usuário da internet é um importador-exportador de dados que, em geral, ele ignora. Segundo quais regras essas preciosas informações circulam através das fronteiras? As potências ocidentais, que consideram os dados pessoais como uma mercadoria comum, adorariam regulamentar a questão com toda a discrição no seio da OMC
Davos, 25 de janeiro de 2019. À margem do Fórum Econômico Mundial, 76 Estados assinam uma declaração conjunta referente ao comércio eletrônico, na qual reafirmam sua intenção de “entabular negociações no quadro da OMC [Organização Mundial do Comércio] sobre os aspectos comerciais ligados ao comércio eletrônico”. Em dezembro de 2017, setenta deles já haviam se pronunciado nesse sentido ao final da 11ª Conferência Ministerial da OMC, em Buenos Aires. Entre os signatários, encontramos as principais potências do planeta (Estados Unidos, Japão, União Europeia, Rússia, China), mas observamos também alguns ausentes de porte, a começar pela Índia e por quase todos os países africanos. Sinal de que o assunto está longe do consenso.
“O comércio eletrônico, ou digital, é o desafio mais recente e de maior amplitude do século XXI em matéria de negócios comerciais internacionais”, explica a professora Jane Kelsey, da Universidade de Auckland. “As ‘disciplinas’ em fase de elaboração ultrapassam em muito toda noção legítima de comércio. Pretendem impor regras globais ao controle do universo digital – talvez o tema mais complexo, mais multidimensional e, portanto, mais controverso com que se defrontam os Estados e as sociedades no curso deste século, ao lado da mudança climática.”1
Uma chance para o Sul?
O termo “comércio eletrônico” já é, em si, enganador. Em 1998, a OMC o definiu como “a produção, promoção, venda e distribuição de produtos pelas redes de telecomunicações”. Essa descrição vaga, que na origem correspondia à compra e venda de bens ou serviços pela internet, aplica-se agora à circulação mundial de dados, esse novo ouro do século XXI. Para muitos observadores, é aí que se situa o verdadeiro desafio dessas negociações. “Dentro desse cavalo de Troia do ‘comércio eletrônico’, encontramos a propriedade dos dados, que nada tem a ver com ele”, explica Alberto Robles, do Instituto do Mundo do Trabalho Julio-Godio, em Buenos Aires. “Falam-nos do comércio eletrônico, dizem-nos que é preciso aderir à modernidade, que todos os países vão se beneficiar dele etc. Mas a pergunta é: quem controla esses dados? Por ora, apenas as grandes empresas.”2
Com efeito, Google, Amazon, Facebook, Microsoft e outras gigantes do universo digital se aproveitaram largamente do vazio regulamentar para criar um oligopólio. Visando perpetuar essa situação, elas investiram desde o início dos anos 2010 em um intenso trabalho de lobby junto aos arquitetos da política econômica e comercial dos Estados Unidos. Seu objetivo: a defesa de princípios como a livre circulação de dados e a recusa a todo dever de liberar informações pessoais armazenadas (por exemplo, implantando na Europa servidores que abrigam os dados dos europeus) para limitar a intervenção do Estado em suas atividades. Como resume Deborah James, da rede altermundialista Our World Is Not For Sale (Owinfs), “querem a liberdade de capturar os bilhões de dados que nós, enquanto seres humanos conectados, produzimos diariamente, de transferi-los para onde desejem e de armazená-los em servidores onde bem entendam, isto é, principalmente nos Estados Unidos”.3
Para Kelsey, “as grandes realizações, hoje, são os acordos de comércio e investimento megarregionais de nova geração”,4 acordos que os Estados Unidos procuraram multiplicar desde o início dos anos 2010, tanto para contornar os bloqueios que persistiam no seio da OMC quanto para montar um quadro mundial alinhado conforme seus interesses estratégicos no âmbito da “nova economia”.
Entre esses tratados, o Acordo de Parceria Transpacífica (TPP, na sigla inglesa), assinado em fevereiro de 2016, marca uma primeira vitória decisiva para a indústria digital. Seu capítulo sobre o comércio eletrônico retoma quase literalmente as principais reivindicações formuladas por lobbies como a Internet Association e a Computer and Communications Industry Association, que reúnem os pesos-pesados do setor. Na sequência, o escritório do representante norte-americano do Comércio – então dirigido por Robert Holleyman, ex-dirigente de outro lobby da área digital, a Business Software Alliance – resumiu o conteúdo em um documento intitulado “Digital 2 Dozen”, que passou a servir de referência para futuras negociações. Entre os 24 princípios retomados, encontramos: “Permitir a circulação além-fronteiras de dados” (princípio 4), “Evitar os obstáculos ligados à localização” (princípio 5), “Proibir as transferências forçadas de tecnologias” (princípio 6) e “Proteger os códigos-fonte” (princípio 7).
Em 2017, a retirada dos Estados Unidos do acordo antes mesmo de sua entrada em vigor abalou a indústria. Mas, a partir de 2018, os outros países-membros concluíram um novo acordo, que reproduzia o conjunto das cláusulas do TPP sobre o comércio eletrônico. Paralelamente, a renegociação do Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (Nafta) entre os Estados Unidos, o México e o Canadá produziu um texto que acentuava ainda mais essa tendência, notadamente em matéria de proteção dos códigos-fonte e dos algoritmos.
Todavia, a multiplicação dessas cláusulas em uma profusão de acordos se revelou uma estratégia pouco frutífera. De fato, os principais tratados se arrastam ou são abandonados (Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento, Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços…). E a reorientação da política comercial impulsionada por Donald Trump afasta a perspectiva de novos avanços. Por isso, a opção por uma passagem pela OMC parece de novo atraente.
A partir de meados de 2016, a coalizão Estados Unidos-Japão-União Europeia procurou trazer o assunto à baila na mesa da 11ª Conferência Ministerial de Buenos Aires. Três campos se delinearam então, “segundo uma lógica Norte-Sul, como é tradicionalmente o caso na OMC, mas também, o que é interessante, segundo uma lógica Sul-Sul”, observou Parminder Jeet Singh, da associação indiana IT for Change.5 O primeiro agrupou os países favoráveis a uma economia digital quase inteiramente desregulamentada, como Estados Unidos, Japão e União Europeia (com algumas nuances). O segundo reuniu a Índia e numerosos países africanos, para os quais a OMC devia resolver outros problemas antes de tratar do comércio eletrônico (por exemplo, o fracasso do ciclo de Doha sobre desenvolvimento ou o bloqueio do órgão de apelação, promovido pelos Estados Unidos sob a presidência de Barack Obama). Eles acham que, de qualquer maneira, ainda é muito cedo para “adotar regras internacionais em um setor difícil de regulamentar até no plano nacional”, como resumiu Léopold Ismaël Samba, embaixador da República Centro-Africana e coordenador dos países menos desenvolvidos acreditados junto à OMC.6 Enfim, o terceiro campo agrupou países em desenvolvimento, como Malásia, Tailândia, Nigéria e Bangladesh, interessados no comércio eletrônico, mas contrários à visão desregulamentadora defendida pelo Norte.
Para convencer os reticentes, os promotores dessa iniciativa acenaram com promessas de desenvolvimento associadas ao comércio eletrônico, notadamente para as pequenas e médias empresas do Sul. Uma “quimera”, na opinião de Singh: “A indústria digital nascente desses países não sairá fortalecida das discussões, negociações ou acordos em escala mundial. O medo de um prejuízo considerável parece bem mais realista”.7 O militante indiano defende uma forma de soberania digital que permita a esses Estados adquirir seu próprio setor nacional antes de concordar com negociações multilaterais. Ele defende também a criação de espaços de reflexão próprios do Sul – por exemplo, no seio da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (Cnuced): “Instâncias de controle comercial como a OMC são lugares de negociação difíceis. Os países em desenvolvimento devem primeiro aperfeiçoar sua compreensão do comércio digital, de sua geoeconomia e dos diversos quadros de governança possíveis em outros fóruns antes de chegar, bem preparados, à OMC”.8
Outros polos de resistência vão surgindo. Em 1º de abril último, por iniciativa da rede Owinfs, 315 empresas de mais de noventa países assinaram uma carta aberta “contra as regras impostas ao comércio eletrônico na OMC”.9 A seu ver, essas regras são “uma grave ameaça ao desenvolvimento, aos direitos humanos, aos trabalhadores e à prosperidade de todos”. Conclamam então os membros da OMC a “deixar de pressionar por negociações em torno do comércio eletrônico e a se concentrar urgentemente na transformação das regras do comércio internacional”.
A rivalidade China-EUA
Contudo, um fantasma assombra os bastidores dessas negociações: a luta entre a China e os Estados Unidos. Único país com gigantes capazes de ombrear em escala internacional com os do Vale do Silício, a China ultrapassa os Estados Unidos em diversos setores-chave, entre os quais a tecnologia 5G. Ora, ela deve esses resultados a políticas que contrariam diretamente os princípios da “internet livre e aberta” (entenda-se: de livre-comércio), defendidos oficialmente pela indústria digital do Ocidente. “No curso das últimas décadas”, indignava-se há pouco o New York Times, “a China construiu e reforçou a grande muralha digital que impede sites como YouTube, Facebook, Google e o New York Times de chegar a mais de 700 milhões de internautas chineses. Por trás dessas barreiras, empresas chinesas como Alibaba, Baidu e Tencent prosperaram, aprimorando serviços de ponta que, sob diversos aspectos, deixaram para trás seus concorrentes ocidentais”.
Não bastasse isso, as empresas estrangeiras que operam no Império do Meio têm a obrigação de estocar aí seus dados e associar-se com companhias chinesas. “A China descreve suas restrições em matéria de dados como uma necessidade de segurança nacional”, prossegue o jornal, mas numerosos atores acham que “essas regras visam antes ajudar Pequim a dominar as indústrias de grande volume de dados”.10 Essas barreiras não vão desaparecer logo. Como bem lembrou um funcionário chinês, “mesmo nas negociações bilaterais em curso com os Estados Unidos, a China deixou claro que domínios como os fluxos transnacionais de dados, a suspensão de interdições de armazenamento sobre os servidores locais [nos países-sede das empresas] e a informática em nuvem não eram negociáveis”.11
De seu lado, Estados Unidos, Japão e União Europeia publicaram três propostas quase idênticas para defender um programa de negociações na OMC, incluindo os temas espinhosos que contrariam as intenções da China.12 Os meses que nos separam da próxima Conferência Ministerial da OMC – em Astana (Cazaquistão), em junho de 2020 – serão, portanto, cruciais.
Cédric Leterme é doutor em Ciências Políticas e Sociais, responsável de pesquisa no Centre Tricontinental (Cetri) (www.cetri.be) e autor de L’Avenir du travail vu du Sud. Critique de la “quatrième révolution industrielle” [O futuro do trabalho visto do Sul. Crítica da “quarta revolução industrial”], Syllepse, Paris, 2019.
1 Jane Kelsey, “A sleeping giant: The scope and implications of New Zealand’s obligations on electronic commerce and digital services” [Um gigante adormecido: o âmbito e as implicações das obrigações da Nova Zelândia na esfera do comércio eletrônico e dos serviços digitais], JusTrade, mar. 2019. Disponível em: <https://justrade.nz/altdigital>.
2 Alberto Robles, painel “Cuarta revolución industrial y los trabajadores” [Quarta revolução industrial e os trabalhadores], organizado pela Escuela Nacional Sindical (Colômbia), abr. 2018.
3 Deborah James, “Le commerce électronique au cœur des discussions de la 11e ministérielle de l’OMC” [O comércio eletrônico no seio das discussões da 11ª Ministerial da OMC], Réseau Québecois sur l’Intégration Continentale [RQIC], 25 nov. 2017. Disponível em: <https://rqic.quebec>.
4 Jane Kelsey, “E-commerce: The development implications of future proofing global trade rules for GAFA” [Comércio eletrônico: as implicações de desenvolvimento da aplicação das futuras regras de comércio global para Gafa], Our World Is Not For Sale, 13 dez. 2017. Disponível em: <www.ourworldisnotforsale.net>.
5 Parminder Jeet Singh, “MC11 e-commerce battle lines drawn across three camps” [Linhas de batalha do comércio eletrônico traçadas na MC11 entre três campos], Third World Economics, n.651-652, Penang, out.-nov. 2017.
6 Citado por Parfait Siki, “Échanges. L’Afrique hesite sur le commerce électronique” [Comércio. A África hesita em relação ao comércio eletrônico], Afrique Expansion Magazine, Québec, 30 jan. 2018.
7 Parminder Jeet Singh, op. cit.
8 Ibidem.
9 “Lettre de la société civile contre les règles sur le commerce électronique à l’Organisation Mondiale du Commerce (OMC)” [Carta da sociedade civil contra as regras para o comércio eletrônico na Organização Mundial do Comércio (OMC)], Our World Is Not For Sale, 1º abr. 2019. Disponível em: <www.ourwordisnotforsale.net>.
10 Ana Swanson, “As trade talks continue, China is unlikely to yield on control of data” [Enquanto as negociações comerciais continuam, é improvável que a China ceda na questão do controle de dados], The New York Times, 30 abr. 2019.
11 Ravi Kanth, “China to push back on e-com demands by US and allies in pluri-talks” [Resposta da China às exigências sobre comércio eletrônico feitas pelos Estados Unidos e aliados em conversas multilaterais], SUNS, n.8896, 29 abr. 2019. Disponível em: <www.twn.my>.
12 Ravi Kanth, “‘Digital trade’ war underway in e-com pluri-talks at WTO” [Guerra do “comércio digital” em curso nas conversas multilaterais em torno do comércio eletrônico na OMC], SUNS, n.8897, 30 abr. 2019. Disponível em: <www.twn.my>.