A biodiversidade transformada em mercadoria
Quinze grandes empresas, 13 delas norte-americanas, controlam as pesquisas em biotecnologia agrícola. O mercado genético promete lucros de 110 bilhões de dólares dentro de cinco anos. O patenteamento de seres vivos parece ser o “ouro verde” do século 21. Um patrimônio natural e cultural formado por milhões de anos de evolução biológica e práticas agrícolas milenares é submetido a uma gestão agressiva em relação à biosferaJean-Paul Marechal
O empobrecimento da biodiversidade constitui um dos aspectos mais preocupantes da crise ecológica mundial. Estima-se que entre 50 a 300 espécies vegetais e animais desaparecem todos os dias [1], enquanto a União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN) afirma, na sua “lista vermelha” de 1997, que 11% dos pássaros, 20% dos répteis, 25% dos anfíbios, 25% dos mamíferos e 34% dos peixes estão atualmente em perigo, em todo o mundo.
Por mais impressionantes que sejam, tais números apenas refletem, de forma bastante imperfeita, o impacto qualitativo da degradação do ecossistema terrestre sob o efeito da extensão da esfera produtiva. É que o conceito de biodiversidade está longe de se reduzir a um simples indicador quantitativo.
Formulado por Walter G. Rosen em 1985, aplica-se ao conjunto constituído por três diversidades — genética (genes no seio de uma espécie), específica (espécies) e ecológica —, bem como às interações existentes entre estas três diversidades. Como sublinha Robert Barbault em Biodiversité (Paris: Hachette, 1997), tal noção extravasa o campo das ciências naturais para se abrir às do homem, que então se descobre predador, fator de enfraquecimento da biosfera e, ao mesmo tempo, contador da riqueza do mundo vivo que o rodeia.
Ora, além do seu empobrecimento em curso, o ecossistema deve fazer face à instalação, cada vez mais maciça, de um novo sistema tecno-econômico baseado no reforço mútuo de um mercado daqui em diante planetário e livre de qualquer entrave, e de um conjunto tecnológico no seio do qual interagem a informática, a robótica, as telecomunicações e as biotecnologias.
O século das biotecnologias
Jeremy Rifkin, em O Século da Biotecnologia (São Paulo: Makron Books, 1999), vê no advento das biotecnologias a segunda grande revolução industrial da história e analisa a mutação contemporânea como a emergência de um poderoso complexo científico, tecnológico e econômico resultando da convergência entre a revolução genética e a eletrônica. Essa convergência precipitaria a nossa entrada numa nova era: o “século das biotecnologias”, caracterizado por uma capacidade inédita de moldar a natureza e criar uma fauna e uma flora “bioindustriais”.
As biotecnologias — “conjunto de técnicas que visa a exploração industrial dos microorganismos, das células animais, vegetais e dos seus constituintes [2]” — estão presentes do setor agro-alimentar à saúde e dizem respeito a um conjunto de ramos produtivos que vão da agricultura à farmácia, passando pela química. É que, como a informática, não constituem um “setor” ou um “ramo”, no sentido econômico do termo, mas um feixe de técnicas “fluidas”, isto é, capazes de agir sobre o conjunto do sistema técnico e a ser objeto de aplicações diversificadas em múltiplos domínios.
A produção de plantas e de animais transgênicos, a de medicamentos, vacinas, testes-diagnósticos médicos, é apenas um frágil esboço do que está por vir. Uma parte da pesquisa concentra-se, doravante, no pharming — neologismo que designa a fusão de atividades agro-pecuárias e farmacêuticas —, ou seja na transformação de animais domésticos em unidades produtoras de medicamentos e de substâncias nutritivas. Além disso, a clonagem e as manipulações genéticas permitirão, brevemente, obter animais estritamente padronizados, correspondendo a normas bioindustriais precisas. Esses animais serão concebidos quer para consumo, quer como produtores de órgãos destinados a transplantes. Mas as biotecnologias encontram igualmente aplicações onde, a priori, menos se espera: na descontaminação do ambiente, na fabricação de matérias plásticas ou mesmo na extração de minério.
Os benefícios esperados de uma tal escalada de inovações são consideráveis. Os lucros tirados do mercado genético, que se estima andarem entre os 20 e os 30 bilhões de dólares, deverão atingir 110 bilhões de dólares em 2005. Nesse ano, o mercado norte-americano de plantas transgênicas chegará, segundo a firma Monsanto, aos 6 bilhões de dólares. Não nos admiramos, nessas condições, de ver gigantes industriais como Monsanto, Novartis, Rhône-Poulenc, Pioneer-Dupont ou Lafarge-Coppée interessarem-se de perto por estas novas saídas. A recomposição das empresas efetua-se em proveito da química, enquanto a concentração, pesada tendência da história do capitalismo, se manifesta com particular vigor e se realiza sob a batuta norte-americana. A pesquisa em biotecnologia agrícola é controlada por 15 grandes empresas privadas, 13 das quais são norte-americanas e duas européias.
Patentear também a vida?
Os genes aparecem como o “ouro verde” do século 21, um ouro verde que as empresas do complexo genético-industrial se empenham em controlar, como sempre o fizeram as multinacionais. Mas já não se trata de ter nas mãos a extração de minério ou o funcionamento dos circuitos comerciais, mas, sim, o próprio patrimônio genético. O que pode aparecer como uma pretensão louca é doravante realizável, com a extensão do domínio das patentes ao mundo vivo.
Em 1980, a Suprema Corte dos Estados Unidos reconheceu, pela primeira vez, a validade de uma patente protegendo uma bactéria geneticamente modificada. Em 1987, o Patents and Trademark Office (PTO) decretou que todos os organismos vivos multicelulares, incluindo os animais, eram potencialmente patenteáveis. Um ano mais tarde, o mesmo PTO concedia uma patente a um mamífero (um rato com um gene humano predispondo-o ao câncer). Desde então, outros animais foram patenteados.
Catherine Aubertin e Franck-Dominique Vivien, explicam, em Les Enjeux da la biodiversité (Paris: Economica, 1998), que a generalização do sistema de patentes, consagrada pelas negociações finais do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT, hoje OMC), permite patentear “não apenas o organismo modificado ou o procedimento que permitiu obtê-lo mas também a informação genética que contém e todas as aplicações autorizadas”.
Tal situação criou uma dupla linha de oposições. A primeira confronta as multinacionais do Norte aos países do Sul. As empresas do complexo genético-industrial argumentam que a proteção através de patentes constitui uma premissa indispensável ao investimento na pesquisa-desenvolvimento, enquanto os segundos — que detêm a maior parte da diversidade biológica do planeta — defendem que a riqueza variável que interessa tanto às firmas ocidentais é freqüentemente obra de vários séculos de agricultura tradicional. Mas, embora se oponham quanto à apropriação das conseqüências da revolução biotecnológica, Norte e Sul estão de acordo num ponto: o patrimônio genético mundial é comparável a uma mercadoria. Esta posição é rechaçada por um número crescente de organizações não-governamentais (ONG) e por certos Estados, segundo os quais — e é aqui que passa a segunda linha de fratura — o patrimônio genético deve continuar (ou voltar a ser) patrimônio comum da humanidade.
A Convenção Internacional sobre Biodiversidade
O único texto internacional dedicado à biodiversidade enquanto tal é a Convenção Internacional sobre a Diversidade Biológica, assinada em Junho de 1992, durante a Cúpula da Terra do Rio de Janeiro, que entrou em vigor em 24 de dezembro do ano seguinte. Nos termos do artigo primeiro, seus objetivos “são: a conservação da diversidade biológica, a utilização duradoura dos seus elementos e a partilha justa e equitativa das vantagens resultantes da exploração de recursos genéticos, principalmente graças a um acesso satisfatório aos recursos genéticos e a uma transferência apropriada de técnicas pertinentes, tendo em conta todos os direitos sobre estes recursos e técnicas, e graças a um financiamento adequado”.
Quem não subscreveria um programa aparentemente tão razoável? Provavelmente, todos aqueles que não levarem a curiosidade até à leitura do artigo 3, que estipula que “os Estados têm o direito soberano de explorar os seus próprios recursos segundo a sua política de ambiente”, ou, ainda, o artigo 15, alínea 1, que determina que “o poder de determinar o acesso aos recursos genéticos pertence aos governos e é regido pela legislação nacional”.
Através destas disposições, a convenção de 1992 recusa claramente aplicar aos recursos genéticos o estatuto de patrimônio comum da humanidade. Prevê, aliás, no seu artigo 15, alínea 7, um princípio de compensação.
Certamente, pode-se ver nesta convenção um “compromisso de valor legal para acabar com a destruição (da biodiversidade) e assegurar a conservação e utilização duradoura da diversidade biológica “, como afirmam os peritos da Genetic Resources Action International (GRAIN) e da Fondation Gaia (Commerce mondial et biodiversité en conflit, n.º 1, Abril de 1998). Eles opõem, aliás, o Convenção, ao Acordo sobre os Direitos de Propriedade Intelectual no Comércio (ADPIC) da OMC. Perfeitamente conscientes de um possível desvio mercantil, os redatores do relatório da GRAIN e da Fondation Gaia não afastam, de maneira nenhuma, o risco do documento assinado no Rio degenerar “numa simples carta legal reguladora da transferência dos genes do Sul para o Norte no âmbito dos contratos de acordo mútuo”. Dito de outra maneira, que oficialize a corrida à apropriação do ser vivo.
Quem controla a natureza?
Infelizmente, tudo leva a crer que há mais seguidismo que antagonismo entre o ADPIC da OMC e a Convenção de 1992, que autoriza, em certa medida, a tratar a biodiversidade como uma simples questão de recursos genéticos, retirando deles os maiores lucros possíveis.
Como sublinham Catherine Aubertin e Franck-Dominique Vivien, “assinando a Convenção e obtendo o poder de vender os seus recursos, os países do Sul reconheceram, de fato, os direitos de propriedade intelectual sobre o ser vivo definidos pelo Norte… A patente é a condição das rendas. Os recursos genéticos estão, assim, ligados ao regime de outras matérias-primas e são tratados como produtos comerciais”. Para avaliar bem a desigualdade que o sistema de patentes encarna, lembre-se que, segundo a Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), o setor privado e as empresas de países industrializados detinham, em meados dos anos 90, em todos os domínios, 95% das patentes de África, praticamente 85% das da América Latina e 70% das da Ásia.
Assim, um patrimônio natural e cultural moldado por milhões de anos de evolução biológica e práticas agrícolas milenares está agora submetido à apropriação priv