A busca por um messias e nossas raízes autoritárias
A síndrome personalista do Brasil em tempos de fragilização da democracia e de crise institucional
Louco, sim, louco, porque quis grandeza
Qual a Sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza;
Por isso onde o areal está
Ficou meu ser que houve, não o que há.
D. Sebastião, rei de Portugal
No excerto do poema D. Sebastião, Rei de Portugal, do poeta português Fernando Pessoa, o eu – lírico busca uma caracterização mítica do monarca português que foi morto na Batalha de Alcácer-Quibir, no fim do século XVI. Por sua morte não ter sido comprovada, devido à ausência de seu corpo, muitas teorias iriam surgir sobre o Rei ter sobrevivido e que voltaria ao seu reino, libertando-o de todos os males ocorridos após seu desaparecimento. Esse episódio acabou levando ao surgimento do movimento profético que ficou conhecido como Sebastianismo, o qual se perdurou com o passar dos séculos, se manifestando, inclusive, no Brasil Império e nos primeiros anos da República Velha.
O Sebastianismo perdurou durante mais de trezentos anos na história portuguesa pelo fato de ter se vinculado não só ao mito profético de um passado idealizado, mas, sobretudo, a uma base nacionalista com uma relação divina e salvadora para com o estado nacional português.
Em um contexto contemporâneo ao mito de D. Sebastião, um conceito importante para o entendimento de um Estado foi inaugurado. A concepção da legitimidade divina passou a ter uma construção teórica profunda nas obras de Jean Bodin, um jurista leal à monarquia francesa que visava à necessidade de uma consolidação doutrinária do Regime Absolutista para a manutenção de sua autoridade. Nesse sentido, ao desenvolver um conceito político e sobretudo jurídico de Soberania, o teórico francês desenhou um soberano detentor de um poder uno, absoluto e perpétuo, emanado da vontade de Deus.
Os fundamentos de Bodin são caracterizados por traços notoriamente religiosos haja vista que, para o autor, a fonte divina da soberania do rei é tão evidente que sua teoria se estrutura mediante um postulado, logo, as afirmações são pré-concebidas como verdadeiras. O que, de certa forma, impede uma reflexão profunda e um debate técnico apurado acerca do tema em questão. Dessa forma, a teoria bodiniana, à medida que reinventava a organização política e jurídica da época, fortalecia o ideário sólido, mas autoritário, de um soberano que detinha a capacidade divina para reger a nação.
Trazendo essas concepções e noções para a atualidade, com as devidas contextualizações, tanto a legitimidade divina quanto a necessidade de salvação por uma ideia personificada pode incorporar um sentimento autoritário no meio social e até mesmo de cunho fascista. Em seu livro Como Funciona o Fascismo, o professor Jason Stanley aborda o mito do líder da nação enquanto um provedor e detentor de um poder que seria a fonte de sua autoridade. Em suas palavras,
“(…) O líder é o pai da nação, e sua força e poder são a fonte de sua autoridade legal, assim como a força e o poder do pai da família no patriarcado supostamente são a fonte de sua suprema autoridade moral sobre seus filhos e esposa. O líder provê a nação, assim como na família tradicional o pai é o provedor.” (STANLEY, 2018).
Nesse sentido, além vincular a concepção a uma noção de gênero, o professor estadunidense demonstra essa relação de dependência e de dominância entre o líder e aqueles que o seguem. Essa relação de submissão é claramente incompatível com um Estado estabelecido por uma Constituição e alicerçado sobre princípios e valores democráticos, os quais ensejam o aperfeiçoamento das instituições para um prosseguimento saudável de suas funcionalidades e da sociedade civil que está sob sua proteção. Paralelamente, o conceito de soberania inaugurado por Jean Bodin, se empregado atualmente sem que se faça a devida contextualização histórica e a análise do desenvolvimento do elemento em si, torna-se não só anacrônico como retrógrado.
Em uma sociedade civilizada, dotada de uma Magna Carta garantista, assegurando direitos fundamentais individuais, sociais, políticos e coletivos, a legitimidade da soberania tem sua fonte na vontade do povo, como assim dispõe explicitamente nossa Constituição. A tentativa de reverter essa fonte de legitimidade, que se manifesta na atual conjuntura política e social do Brasil, remete à construção de um autoritarismo que perpassa por toda nossa história colonial, imperial e republicana. Como brilhantemente trazido pela antropóloga Lilia Schwarcz em sua obra mais recente, Sobre o Autoritarismo Brasileiro (2019),
“(…) Não existe uma continuidade mecânica entre nosso passado e o presente, mas a raiz autoritária de nossa política corre o perigo de prolongar-se, a despeito dos novos estilos de governabilidade. Mais uma vez, igualdade e diversidade, sentimentos e valores próprios da expansão dos direitos democráticos, correm perigo quando não se rompe com a figura mítica do pai político (…), do herói destacado e excepcional, do líder idealizado” (SCHWARCZ, 2019).
A política brasileira contemporânea, além de nutrir uma raiz autoritária – como demonstrado pela antropóloga –, perpetua práticas que advém de nosso passado colonial, tendo em vista a construção de dinâmicas baseadas em práticas patrimonialistas, culminando em uma máquina pública regida por relações pessoais de poder que visam majoritariamente fins particulares. Com a gênese de um Estado Brasileiro independente, o poder local das elites agrárias e os interesses da população passaram a conflitar com as ações dos donos do poder no que concerne ao uso patrimonialista da máquina estatal.
Essa lógica se perdurou, ainda, após a Proclamação da República, em 1889. Com o golpe militar republicano, a manipulação da burocracia construía uma democracia extremamente frágil à medida que um líder paternalista regional contradiz a ideia de soberania popular, uma vez que a tutela do poder transfere-se do povo para caudilhos com relações informais de poder, esfacelando o Estado e suas instituições. Essa lógica se perpetuou por todas as fases da República, tendo diversas formas de manifestar essa apropriação da coisa pública e a tutela de um poder que deveria residir na vontade geral e pertencer ao povo.
O atual cenário político-social do Brasil, por conseguinte, sofre com as mazelas do passado, que, vivenciando a formação cívica de cidadãos avessos à burocracia e introduzidos em uma cultura de desapreço pela organização política e pela coisa pública, passam a ser facilmente manipulados pelos interesses de seus líderes. Esses, por sua vez, sem a vigilância da população e o controle das instituições, ampliam seu poder ao se apossar gradativamente da máquina pública.
Após mais de 30 anos de firmamento do regime democrático através da promulgação da Constituição Federal, a soberania popular não é efetiva e está longe de ser efetivada. Uma democracia constitucionalmente estabelecida necessita de instituições que façam com que o jogo democrático seja jogado conforme as regras pactuadas. Essas instituições têm de possuir um funcionamento delimitado e objetivo, evitando que suas atribuições sejam esvaziadas conceitualmente, o que implicaria (e implica claramente) um constante conflito de competências entre elas mesmas. Em suma, as instituições devem garantir que a democracia se prossiga e seu alicerce, a vontade popular, seja cada vez mais solidificado e perceptível a olho nu.
Em tempo, não é o que se configura na atual realidade brasileira. Em momentos de polarização política, soluções simplistas e até mesmo raciocínios ilógicos se apoderam do debate público e assumem um tom reducionista. Feitas tais observações, sustenta-se que acreditar na existência de um personagem dotado de um poder que advém de uma vontade divina faz subverter toda a construção do Estado Democrático de Direito no Brasil. Para além da noção da laicidade do Estado (o que é demasiadamente importante para uma democracia plena), crer que um personagem histórico vem a ser esse novo Messias, salvador e onipotente, legitimado por Deus, é extremamente temerário e resgata uma lógica do Século XVI extremamente ultrapassada, a qual não condiz em absoluto com a realidade política, jurídica e social hoje configurada.
A criação de mitos intocáveis como provedores que garantiriam a prosperidade da nação surge de um fator e provoca outro. Essa criação, por muitas vezes, surge de um sentimento legítimo, mas desesperado de um setor social que não está incluído no debate público, em decorrência de sua constante marginalização na sociedade. Esse setor social, até mesmo por desconhecimento, vê em tal personagem (ou nas ideias que personifica) a única salvação para as mazelas que persistem em corroer a realidade brasileira; mas, por outro lado, alguns setores reacionários e sectários tentam impulsionar esse sentimento visando causar o reducionismo desse mesmo debate para, então, conquistar espaço.
Paralelamente, o outro fator que a criação de mitos intocáveis provoca é um postulado elaborado por seus criadores, em que, semelhante ao inaugurado por Bodin, o mito não pode ser criticado e nem mesmo questionado por seus atos, por mais estapafúrdios que sejam, além de buscar o isolamento do debate daqueles que ousam contestá-lo. Essa consequência, ciclicamente, ocasiona o mesmo reducionismo do debate público, impossibilitando que uma deliberação e um diálogo qualificados, essenciais à democracia, sejam realizados para que se busque a melhoria da prática de políticas públicas pelo Estado.
Em um país onde o paternalismo e o patrimonialismo estão imersos na cultura popular e institucional, há de se questionar se tudo que precisamos é de um messias ou de um Sebastião à Brasileira. Notadamente, a resposta para a pergunta é não, definitivamente não. Nesses momentos de crise institucional e de abalo do Estado Brasileiro pela polarização política e pelo reducionismo do debate público, o que se busca é uma democracia plena e efetiva, promovida por deliberações e diálogos, garantida pelas instituições que nela habitam e coexistem. Assim, portanto, andamos precisados de menos líderes carismáticos e de mais cidadania consciente e ativa (SCHWARCZ, 2019).
Gabriel Mattos da Silva e Mariana Rocha Pecly de Oliveira são estudantes de Direito na UFRJ e pesquisam sobre autoritarismo na Ordem Constitucional Brasileira e Teoria do Estado e Filosofia Contratualista (respectivamente).