A cada dez anos, um passo
A batalha para aprovar a Lei da Ficha Limpa, que assegura que o registro de candidaturas leve em conta o comportamento ético dos candidatos, será árdua. Para muitos deputados, ser favorável a essa iniciativa popular pode significar decidir sobre sua própria exclusão das próximas eleições
As constituintes de 1986 inovaram, na história das instituições políticas do Brasil, quando estabeleceram, no parágrafo primeiro do primeiro artigo da Constituição de 1988, que o poder que “emana do povo” – melhor teria sido se tivessem dito o poder que pertence ao povo – será exercido tanto por seus representantes eleitos como diretamente, através do referendo, do plebiscito e da iniciativa popular de lei. Ou, em outras palavras, que nossa democracia não seria unicamente representativa.
Essa Constituição previu diferentes formas de participação popular na gestão pública, como os conselhos em várias áreas governamentais. Mas a possibilidade da participação no processo legislativo foi um salto qualitativo. Traduziu mais diretamente a aceitação, pelo sistema político brasileiro, da contribuição popular nas decisões que conformam a estrutura jurídica e a atividade dos cidadãos e do governo.
O entusiasmo inicial
Entre as intensas mobilizações sociais que marcaram a elaboração da Constituição de 1988 – levando-a ser batizada como Constituição Cidadã – teve relevo aquela estimulada pelos Plenários Pró-Participação Popular na Constituinte. Depois de perderem uma primeira batalha por uma Constituinte exclusiva, em vez da Congressual – adotada já dentro da lógica da legislação em causa própria… – eles se centraram no processo de elaboração da Constituição, com um slogan significativo: “Constituinte sem povo não cria nada de novo”.
Neste embate, com melhores resultados, obtiveram que o Regimento Interno da Constituinte previsse a possibilidade de “emendas populares” ao projeto de Constituição1. Foi no entanto estabelecido – para evitar surpresas – uma condição que parecia difícil: cada emenda, apresentada por três entidades da sociedade civil, teria que ter o apoio de pelo menos 30 mil eleitores?
Ora, essa oportunidade de participar foi plenamente assumida pela sociedade, no clima de entusiasmo com a abertura democrática do país: 122 Emendas recolheram um total de 12 milhões de assinaturas2.
Essas emendas não tiveram todas a mesma sorte, na dependência do acompanhamento que lhes foi dado. Mas três delas, entre outras, foram bem-sucedidas. Tendo recebido juntas mais de 400 mil subscrições, elas propunham especificamente a introdução de um instrumento como as Emendas Populares no corpo da Constituição – bem como o referendo e o plebiscito. E deram origem ao parágrafo primeiro do artigo primeiro acima citado.
As limitações impostas
Foi tudo somente um jogo de cena, como usual em democracias unicamente representativas? Tendo constatado a capacidade de mobilização social para as Emendas Populares, os constituintes limitaram o uso dos novos instrumentos. A competência para autorizar e convocar plebiscitos e referendos ficou exclusivamente para o Congresso; e as exigências para Iniciativas Populares de lei as tornaram quase inviáveis: as assinaturas, acompanhadas do número dos títulos de eleitores, teriam que corresponder a pelo menos um por cento do eleitorado nacional, e estar distribuídas em pelo menos cinco Estados – bem mais portanto do que as 30 mil das Emendas Populares…
Por isso mesmo muitos hoje se empenham em regulamentar o uso desses instrumentos diminuindo suas limitações, para colocá-los efetivamente ao alcance da sociedade3. Mas, apesar das dificuldades, a sociedade organizada e os cidadãos com motivações pessoais começaram logo a fazer valer esse direito.
As primeiras iniciativas populares de lei
A primeira Iniciativa Popular de Lei, pela criação de um Fundo Nacional de Habitação Popular, chegou ao Congresso já em 1991, por iniciativa de movimentos de moradia. Nessa ocasião já se constatou que ela só poderia tramitar como Iniciativa Parlamentar: como verificar em tempo hábil o número e a autenticidade das assinaturas? Um Deputado a encaminhou, mas o resultado foi pouco animador: o projeto levou 13 anos para se transformar em lei…4
Nos anos 90 chegaram ao Congresso dois outros projetos subscritos por cidadãos, por iniciativa de pessoas motivadas por crimes cometidos contra seus familiares. O primeiro foi apresentado em 1993 pela conhecida escritora de novelas Gloria Perez, após o assassinato de sua filha Daniela. Propondo que o homicídio qualificado entrasse no rol da Lei dos Crimes Hediondos5, seu projeto foi assumido pelo Executivo e alterou em 1994 a lei vigente. Com a mesma motivação, os pais de Ives Ota, menino de oito anos assassinado em 1997 em São Paulo, percorreram o Brasil coletando assinaturas – e difundindo uma mensagem de paz e perdão6, – para a criação da prisão perpétua agrícola. Em 1999 entregaram esse projeto ao Congresso, com mais de dois milhões de assinaturas, mas ele ainda nele tramita7.
A iniciativa popular contra a corrupção eleitoral
Em 1999, quase dez anos depois da primeira Iniciativa Popular, um segundo Projeto de Lei vindo da sociedade organizada foi apresentado ao Congresso. Ele enfrentava o problema da corrupção eleitoral: a oferta de bens e favores aos eleitores e o uso eleitoral da máquina administrativa. A compra de votos já era considerada um crime na lei eleitoral vigente8. No entanto, a lentidão do processo penal, a ser seguido por se tratar de crime, fazia praticamente que ninguém fosse condenado, menos ainda antes do fim do mandato assim obtido.
Esse problema tinha sido levantado na Campanha da Fraternidade de 1996, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, como umas das piores distorções de nossa democracia representativa, que deslegitimava o processo eleitoral. Ele foi então objeto de uma pesquisa, por iniciativa da Comissão Brasileira de Justiça e Paz – CBJP, da CNBB, que mostrou como em todo o país era usual aproveitar-se das carências dos eleitores para captar seus sufrágios.
Diante disso, a CBJP solicitou a um grupo de juristas que estudasse como coibir com mais eficácia essa prática9. O Projeto de Lei que elaboraram modificava a Lei Eleitoral 9504/97, dando ao crime da compra de votos também a condição de infração eleitoral, o que permitiria uma punição imediata pela Justiça Eleitoral. E estabeleceram que essa punição – assim como a do uso eleitoral da máquina administrativa – fosse a cassação do registro do candidato, sem prejuízo da ação criminal a que estaria sujeito. Sabendo que a Iniciativa Popular de Lei – como as Emendas Populares da Constituinte – tinha uma importante função pedagógica10, como detalharei mais adiante, a CBJP propôs o uso desse instrumento para encaminhar o projeto ao Congresso.
Com o apoio da CNBB, decidido em sua Assembleia-Geral de 1997, assim como o da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, e, em seguida, de mais de sessenta organizações da sociedade civil, lançou-se a coleta do milhão de assinaturas necessárias. O processo levou ano e meio para se completar, ajudado, a partir de certo momento, pelos grandes meios de comunicação de massa. Uma vez entregue o projeto ao Congresso, as entidades promotoras estavam obrigadas a transformá-lo em iniciativa parlamentar, para começar imediatamente a tramitação. Obtiveram então, com base na experiência da primeira iniciativa, que ainda nele tramitava, que ela fosse assumida não por um único mas por um conjunto de parlamentares, cada um de partido diferente, com seus nomes em ordem alfabética – para evitar disputas descabidas.
Com esses cuidados e um acompanhamento mais cerrado da tramitação – e o peso político do milhão de assinaturas e das entidades que o apoiavam – obtiveram sua aprovação nesse mesmo ano11, no prazo recorde de sete semanas12. Um resultado nesse prazo era essencial para que a nova lei já pudesse vigorar nas eleições do ano 200013.
A função pedagógica e organizativa da iniciativa popular
A dificuldade para coletar tantas assinaturas tinha uma contrapartida positiva: seu tema era amplamente discutido em todo o país14, antes do projeto chegar ao Congresso. A começar pelos que coletavam as assinaturas, que tinham de saber explicar o que estavam propondo. Por sua vez o slogan “Voto não tem preço, tem consequências”, adotado nessa Campanha, valorizava o voto e desvendava as distorções da democracia representativa no Brasil. Assim, embora esse trabalho exigisse uma enorme persistência, sua função pedagógica era inegável.
Além desse efeito pedagógico havia o efeito organizativo, na medida em que o trabalho de coleta de assinaturas reunia as pessoas num processo que se estendia capilarmente pelo país afora. Isso ficou evidente quando, uma vez aprovada a lei, os participantes da coleta constituíram os chamados “Comitês 9840” – referência ao número recebido pela lei – para fiscalizar sua plena aplicação15.
O controle da aplicação da lei
O efetivo cumprimento da Lei 9840/99 de fato exigia o acompanhamento das eleições. Ninguém tinha mais interesse nisso do que os próprios cidadãos que haviam assinado o Projeto de Lei. Os Comitês 9840 começaram então a cumprir esse papel, até porque nem Juízes nem Promotores Eleitorais tomaram imediatamente consciência do poder que lhes fora atribuído para assegurar a lisura do processo eleitoral.
Abriu-se assim uma segunda etapa na pedagogia de educação política iniciada com a coleta de assinaturas: era necessário entender as exigências da produção de provas e o funcionamento da Justiça, em particular o da Justiça Eleitoral. Os Comitês 9840 transformaram-se assim em instrumento de diálogo dos cidadãos com o Poder Judiciário. Nesse processo viveram, nas eleições do ano 2000, muitas incompreensões e frustrações. Mas nos anos seguintes o controle da aplicação da lei se fortaleceu, especialmente a partir do empenho explícito do Tribunal Superior Eleitoral – TSE, ao qual começaram a chegar os recursos dos prejudicados16.
Atualmente os próprios candidatos também se fiscalizam mutuamente, o que altera o comportamento de cada um, como o dos próprios eleitores. Depois de cinco eleições, com a aplicação da nova lei, ocorreram mais de setecentas cassações de registros de candidatos e de diplomas de eleitos, nos Poderes Legislativos e Executivos municipais, estaduais e federal17. E já se tornou usual dizer que a Justiça Eleitoral ganhou tanta eficácia com a nova lei que sua atuação conheceu duas fases: a antes da Lei 9840 e a depois da Lei 9840…
O movimento de combate à corrupção eleitoral – MCCE
O trabalho dos Comitês 9840 foi apoiado por roteiros, cartilhas e outros materiais produzidos pelas entidades promotoras da Iniciativa Popular. Em Agosto de 2001 elas realizaram um primeiro Seminário Nacional de Juízes e Promotores Eleitorais, para colher experiências da aplicação da lei na eleição de 2000 e preparar a atuação em 2002. Com a abertura do Seminário pelo então Presidente do TSE, Ministro Nelson Jobim, ficou demonstrado a importância dada à lei por esse Tribunal. Outros Seminários foram realizados em 2004, 2006 e 2008, já com a participação também de Advogados Eleitorais.
Nesse processo foi criado o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral – MCCE, que reúne hoje 43 entidades nacionais, com uma pequena estrutura administrativa sediada em sala oferecida pelo Conselho Federal da OAB em Brasília. Seguiu-se a criação da Associação Brasileira de Magistrados, Procuradores e Promotores Eleitorais – ABRAMPPE, voltada para a plena aplicação da legislação eleitoral, com especial ênfase na Lei 9840.
Em 2008 o MCCE, frente ao sucesso da Iniciativa Popular contra a corrupção eleitoral, decidiu, com o apoio da ABRAMPPE, propor uma nova iniciativa popular18, dessa vez voltada para a Lei das Inelegibilidades19. O que se pretendia era assegurar que o registro de candidaturas levasse em conta o comportamento ético dos candidatos: dispor de uma “ficha limpa” teria que ser condição para o exercício de um mandato eletivo. Aliás, não era outro o objetivo de emenda à Constituição feita em 1994, ao determinar, no parágrafo 9º , do artigo 14, que a lei complementar das inelegibilidades deveria considerar a “vida pregressa do candidato”, para proteger “a probidade administrativa e a moralidade para o exercício do mandato”.
Nas eleições de 2008 o Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro já tinha recusado, com base nessa emenda constitucional, o registro de 25 candidatos a vereador, mas por recurso apresentado ao TSE foi anulada essa decisão. Dúvidas como essa tornavam clara a necessidade de regulamentação da questão.
A CNBB, uma das principais animadoras da iniciativa que resultara na Lei 9840, levou a proposta à consideração de sua Assembleia-Geral de 2008, que a apoiou por unanimidade. A OAB20, a CNBB e os demais membros do MCCE empenharam-se na nova batalha, já agora rumo não a um milhão, mas ao milhão e trezentas mil assinaturas correspondentes ao 1% constitucional.
A campanha da ficha limpa
Lançada a Campanha da Ficha Limpa, esta ganhou rapidamente muita adesão. A receptividade popular denotava o descrédito dos políticos eleitos. No entanto, a iniciativa de um dos membros do MCCE, a Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB, criou de início um mal-entendido. Com a mesma preocupação com a vida pregressa dos candidatos, essa entidade tornou pública, quando se lançava a campanha, uma relação de políticos brasileiros com processo na Justiça, que foi chamada de lista da “ficha suja”. Como a abertura de processo contra o opositor é uma prática corrente na atividade política, grande número de eleitos se viram incluídos nessa lista e se colocaram contra a iniciativa popular, por considerá-la injusta. Muitos eleitores, por outro lado, concluíram que a lei proposta impediria as candidaturas de muitos bons políticos que estão sendo processados, ou até de lideranças populares vítimas de perseguição21. Passou a ser então necessário dissipar esse mal-entendido, já que o projeto proposto considerava as condenações e não os processos.
Outras propostas do projeto levantaram resistências ainda mais difíceis, em especial duas delas, que se combinavam. A primeira dizia que o projeto desrespeitava o princípio constitucional básico da presunção de inocência, segundo o qual todo acusado não pode ser considerado culpado até o julgamento de seu último recurso contra a sentença condenatória (o chamado “trânsito em julgado”). Essa dúvida, que já provocou muita discussão entre juristas22, durante a coleta de assinaturas23, seria resolvida se fosse considerado que o princípio da presunção de inocência se aplica ao direito penal, mas não a outras áreas do direito como a do direito eleitoral. A segunda dúvida surgia com a superação da primeira: a inelegibilidade por condenação somente em primeira instância, como estabelecia o projeto, poderia dar margem a injustiças. Melhor seria considerar uma condenação por órgão colegiado.
Mas, apesar de todos esses percalços, chegou-se ao número de assinaturas necessárias, também depois de um ano e meio de coleta. O projeto foi levado ao Congresso em 29 de setembro de 2009, exatamente no dia em que se comemorava, em sessões no Senado, pela manhã e à noite no TSE, o décimo aniversário da promulgação da primeira Lei de Iniciativa popular aprovada pelo Congresso.
A novidade dessa vez foi a rapidez com o início da tramitação do projeto. Quase imediatamente depois do ato-festa em que o Presidente da Câmara dos Deputados24 recebeu as pilhas de assinaturas, 33 deputados o subscreveram25 – sempre em ordem alfabética, como na iniciativa anterior – e o protocolaram na Mesa no final da tarde, recebendo o número 518/2009.
Sem dúvida a batalha pela aprovação desse projeto será mais difícil. Não há data limite, já que a própria Lei Complementar 64/90, que ele modifica, passou a vigorar logo que aprovada, sem o ano de anterioridade exigido para a legislação que incide sobre o processo eleitoral. Mas, para os maus políticos, essa lei é mais perigosa que a lei contra a compra de votos. Ela criava uma dificuldade futura, e recusar-se a aprová-la correspondia a uma declaração explícita de que se tinha a intenção de comprar votos. Aprovar a Lei da Ficha Limpa para muitos deputados pode corresponder a decidir sobre sua própria exclusão das próximas eleições.
O que terá acontecido na data em que esse artigo for publicado? Todos os que discutiram esse projeto pelo Brasil afora, colhendo o milhão e trezentas mil assinaturas, estão agora empenhados em fazer que o Congresso Nacional dê ouvidos ao anseio da sociedade brasileira, pela dignidade da representação política, de que esse projeto é portador. Resta saber se a Câmara e o Senado terão a coragem e a consciência cívica necessárias para demonstrar ao país, com a urgência necessária dada ao seu atual descrédito, que são capazes de evitar, em benefício da “probidade administrativa” e da “moralidade para o exercício do mandato”, candidaturas não merecedoras do voto popular.
*Chico Whitaker é Secretário Executivo da Comissão Brasileira Justiça e Paz, da CNBB, e membro do Comitê de Organização do Fórum Social Mundial.