A canícula, sintoma de um sistema doente
O impressionante número de mortes provocadas por uma canícula, já prevista pelos meteorologistas, expôs as deficiências do sistema de saúde francês e a aflição e o abandono das pessoas idosas, especialmente as que vivem na região de ParisNira Reyes Morales
A canícula1 do mês de agosto trouxe à luz as carências da França, não só em matéria de política sanitária, mas também em vários outros campos: a coleta de dados epidemiológicos, a comunicação institucional e a inserção social de pessoas idosas.
Sejam eles “naturais” (terremotos, enchentes) ou provocados pelo homem (incêndios em florestas, maré negra), os acontecimentos catastróficos não são novidade na França. Bem ou mal, voluntários limpam as praias com vasilhas de óleo e os bombeiros acabam controlando o fogo. Porém, quando uma “catástrofe” não faz parte do repertório anual, a sociedade francesa parece completamente desarmada.
No entanto, não é impossível estar preparado para uma catástrofe, ainda que esta seja de grandes proporções. Se um terremoto pode provocar dezenas de milhares de mortos na Turquia, um país como o Japão está preparado para que um abalo das mesmas proporções não faça mais do que um punhado de vítimas. Assim como as enchentes, os terremotos são acontecimentos muito súbitos e muito violentos, difíceis de prever: daí a necessidade de estar preparado quando ocorrem.
Problemas estruturais
Uma canícula, em compensação, nada tem de imprevisível, mesmo num clima “temperado” como é o da Europa ocidental. Os meteorologistas a haviam antecipado há vários meses. Além do mais, as conseqüências de temperaturas elevadas sobre a saúde são bastante conhecidas, assim como as medidas preventivas. Em 1995, uma onda de calor se abateu sobre Chicago, provocando várias centenas de vítimas2. Algumas semanas depois, quando a canícula voltou, todo mundo estava preparado.
A França já enfrentou duas canículas semelhantes. Estamos longe de sermos um país desguarnecido. Não dizia a Organização Mundial da Saúde (OMS) que o sistema de assistência médica francês era “o melhor do mundo”? Por isso é que é difícil compreender por que vários milhares de pessoas morreram, neste mês de agosto de 2003, devido a 10 dias de canícula. Este dramático balanço expõe vários problemas estruturais.
Faltou um plano de longo prazo
Estruturas de atendimento a domicílio corretamente financiadas e adaptadas poderiam evitar o congestionamento crônico dos serviços de emergência
Desde a década de 70, o sistema de assistência médica francês progride, de maneira lenta, mas irreversível, rumo à falência total. Partindo do princípio de que a saúde custa caro – e que os principais responsáveis pelo aumento das despesas são os próprios usuários -, os governos vêm, sucessivamente, se contentando com economias de curto prazo: um controle estrito, a cada ano, sobre o número de atendentes (e, portanto, de responsáveis por receitas) “no mercado” e economias drásticas nas despesas vinculadas ao pessoal que trabalha em hospitais.
Conscientes do envelhecimento da população e do aumento, inevitável, do número de pessoas dependentes, os poderes públicos deveriam ter elaborado um plano de desenvolvimento, de longo prazo, de assistência local, ou de bairro, assim como generalizar as campanhas de informação sanitária, com o objetivo de limitar o consumo excessivo (e inútil) de remédios e dar assistência a um número cada vez maior de pessoas em suas moradias, para evitar o recurso à internação num hospital. Corretamente financiadas e adaptadas às situações locais, as estruturas de atendimento a domicílio poderiam ter contribuído para evitar o congestionamento crônico dos serviços de emergência.
Faltou um plano de longo prazo
Estruturas de atendimento a domicílio corretamente financiadas e adaptadas poderiam evitar o congestionamento crônico dos serviços de emergência
Desde a década de 70, o sistema de assistência médica francês progride, de maneira lenta, mas irreversível, rumo à falência total. Partindo do princípio de que a saúde custa caro – e que os principais responsáveis pelo aumento das despesas são os próprios usuários -, os governos vêm, sucessivamente, se contentando com economias de curto prazo: um controle estrito, a cada ano, sobre o número de atendentes (e, portanto, de responsáveis por receitas) “no mercado” e economias drásticas nas despesas vinculadas ao pessoal que trabalha em hospitais.
Conscientes do envelhecimento da população e do aumento, inevitável, do número de pessoas dependentes, os poderes públicos deveriam ter elaborado um plano de desenvolvimento, de longo prazo, de assistência local, ou de bairro, assim como generalizar as campanhas de informação sanitária, com o objetivo de limitar o consumo excessivo (e inútil) de remédios e dar assistência a um número cada vez maior de pessoas em suas moradias, para evitar o recurso à internação num hospital. Corretamente financiadas e adaptadas às situações locais, as estruturas de atendimento a domicílio poderiam ter contribuído para evitar o congestionamento crônico dos serviços de emergência.
Férias perigosas
Entretanto, a ausência de uma política neste setor, a insuficiência da formação de médicos qualificados e, nos últimos dez anos, o excesso de trabalho que estes enfrentam por falta de um relaxamento do numerus clausus que se instalou na década de 70 levam, invitavelmente, um número crescente de usuários a procurarem os serviços de urgência. Paralelamente, a eliminação de um número crescente de leitos de hospital e o hábito desastroso de não contratar substitutos para o pessoal durante o período julho-agosto transformam o verão num período cercado de riscos. Embora os hospitais venham denunciando, há vários anos, a sobrecarga de trabalho decorrente da hospitalização de pessoas idosas durante o verão, os poderes públicos parecem pensar que, entre o dia 1º de junho e o dia 31 de agosto, nenhum problema sanitário poderá ocorrer.
Ocorre que o verão, do ponto de vista sanitário, nada tem de um período de férias. Muitas patologias (ligadas ao clima, mas também às viagens da população) aumentam – dos acidentes, tanto de trânsito quanto por afogamento, passando por intoxicações alimentares, às insolações e aos inúmeros problemas provocados por um aumento brutal da população, de vários milhares, em localidades pequenas.
Solidão e calor
Nos hospitais, insiste-se em não substituir os agentes de saúde que adotaram a carga horária de 35 horas, principalmente nas férias de verão
No que se refere às pessoas idosas, que não saem de casa, qualquer médico sabe que, durante o verão (e também durante o inverno), elas ficam isoladas devido à dificuldade de transporte e às viagens de férias de seus vizinhos. Um velho, por mais que seja autônomo, está sempre ameaçado pela solidão: se fraturar um membro, ou se tomar, por engano, uma dose dupla de seu remédio, ou ainda se diminuir progressivamente sua alimentação por falta de companhia durante as refeições, tem seu equilíbrio, que pode ser precário, rapidamente – e, às vezes, de forma irremediável – comprometido.
Nos hospitais, num momento em que o desemprego continua sério, insiste-se em não substituir os agentes de saúde de todas as categorias que adotaram a carga horária de 35 horas durante o ano, principalmente durante as férias de verão. Sabendo-se que em determinados serviços de “longa permanência (de noite), se conta apenas com uma auxiliar e uma enfermeira para várias dezenas de leitos, é difícil imaginar como teria sido possível manter os pacientes idosos hidratados em quartos mal isolados e com uma temperatura que chegava a 40 graus.
“Obstáculos” insitucionais
A canícula aumentou consideravelmente, num período exíguo de tempo, o número de internações (e óbitos) de pessoas idosas na França. Seria ingênuo acreditar que estas internações fossem raras nos anos anteriores. As estatísticas epidemiológicas confirmariam o que já se constatou em outros lugares: a mortalidade de pessoas com mais de 75 anos aumenta nitidamente, todo ano, durante o verão.
Seria necessário que as estatísticas epidemiológicas fossem disponíveis e confiáveis. Nesta área, no entanto, a França é reconhecidamente insuficiente
Seria necessário, entretanto, que essas estatísticas fossem disponíveis e confiáveis. Nesta área, a França é reconhecidamente insuficiente. Não porque os epidemiologistas não façam seu trabalho, repita-se, mas porque este trabalho de beneditino não faz parte de nossa “cultura sanitária”. Se a epidemiologia tem por objetivo examinar ocorrências de natureza sanitária numa população para, a partir daí, tirar conclusões preventivas, esse precioso instrumento está fadado ao fracasso, no nosso país, por um conjunto de “obstáculos” institucionais. Citemos, sem uma ordem de prioridades: a crônica falta de recursos dos serviços de epidemiologia; a ausência da formação de médicos para tais eventualidades e a recusa, por parte dos poderes públicos e da seguridade social, de remunerar sua participação neste campo; a ausência de uma coleta sistemática de dados elementares (declaração das doenças, descrição dos efeitos secundários dos medicamentos); a ausência de formação do pessoal hospitalar ou de arquivos, com dados, num terminal de computador; a dificuldade de acesso aos bancos de dados existentes, ou a incompatibilidade entre os que existem nos hospitais, de uma região para outra etc.
Confiabilidade dos dados
No entanto, é indispensável uma coleta cuidadosa de dados epidemiológicos para que se possa elaborar um mapa com as necessidades e lacunas sanitárias para, em seguida, se poderem adotar medidas destinadas a preenchê-las – ainda que se trate de uma simples canícula. Um exemplo: a análise comparada entre o número e a causa dos óbitos de uma região para outra pode expor as falhas no sistema de assistência; se o número de pessoas a serem hospitalizadas devido à desidratação, no mês de agosto, for maior em Paris do que em Marselha (e parece que foi este o caso), então é quase certo que devem haver motivos que o justifiquem…
Mas o exame das causas de óbitos (ou de internações) só interessa o poder em períodos de crise ou de eleições. Quando Jean-François Mattei (ministro da Saúde) manifesta sua “profunda ira” por não conseguir obter dados “confiáveis” em relação ao número de mortos devido à canícula, passa-se a conjeturas: no cargo há mais de um ano, o ministro deveria ter verificado, desde sua nomeação, a confiabilidade das fontes de dados em que se apóia sua administração… e tentar melhorá-la.
Autonomia regional necessária
Sem análise constante de dados epidemiológicos, a França carece da visão de conjunto indispensável para ter uma política de saúde de país desenvolvido
A inexistência de uma vontade de coleta e análise constante de dados epidemiológicos priva a França de uma visão de conjunto indispensável para pôr em prática uma política de saúde digna de um país desenvolvido. É bom ressaltar que tais medidas iriam expor outras sérias lacunas do sistema – desde a atribuição excessiva de remédios a uma parte da população (em especial às pessoas idosas, a quem se prescrevem medicamentos demais e assistência e cuidados de menos), até o abuso de receitas óbvias, nas regiões em que os médicos existem em número excessivo. Se fosse dada atenção a esta situação, os dados obrigariam os principais interessados (a seguridade social, os médicos e a indústria farmacêutica) a assumirem suas responsabilidades e forçariam o(s) governo(s) a adotar medidas apropriadas…
A outra vantagem de uma coleta de dados adaptada seria a de permitir que em qualquer região se pudessem enfrentar lacunas sanitárias específicas – desde que a região fosse realmente autônoma, o que está longe de ser o caso, considerando a centralização existente na França. Como ser autônoma, se uma região não tem qualquer controle sobre suas necessidades? Como ser autônoma, se os hospitais estão sujeitos a um orçamento global? Como ser autônoma, se o sistema previdenciário local não pode trabalhar em colaboração (por obstáculos regimentais, ou simplesmente porque se recusa) com os médicos, enfermeiras autônomas ou os centros de assistência de seu setor?
Bom senso clínico
Como se fosse um médico-chefe indicando pacientes que devem receber atenção especial, um ministro da Saúde deveria dispor dos mesmos reflexos
A partir de 5 de agosto de 2003, o aumento de óbitos foi perceptível nos hospitais de Paris (80 mortos, contra 40, em 2002, e depois 130, entre 7 e 10 de agosto, e 250, no dia 12). No dia 8 de agosto, a Assistência Pública de Paris – cujos computadores sabem fazer contas – aumentou o número de leitos disponíveis. Entretanto, somente no dia 13, à noite, é que Jean-Pierre Raffarin (primeiro-ministro) solicitou aos subprefeitos da região parisiense que fosse posto em ação o “plano branco3“, de forma a “mobilizar todos os recursos hospitalares disponíveis” e apenas no dia 14 orientou as autoridades dos outros departamentos a tomar as medidas apropriadas.
Também as recriminações feitas por Mattei à Direção Geral da Saúde (DGS) parecem particularmente inoportunas. Salvo erro, o ministro é médico. Diante de três dias de uma canícula que se previa ser longa, qualquer médico se preocuparia com as pessoas que poderiam vir a sofrer. Por que não procurou ele se informar, de imediato, junto aos serviços envolvidos? Não cabia a ele ter insistido, junto à DGS, para que fosse feito um acompanhamento das conseqüências da canícula? Em qualquer serviço hospitalar, espera-se do médico-chefe que ele dirija uma equipe e que indique quais os pacientes que devem receber uma atenção especial. Presume-se que um ministro da Saúde, ainda mais por ser médico, disponha dos mesmos reflexos. Teria Mattei perdido seu bom senso clínico ao assumir seu cargo?
Sociedade que nega a morte
Esta hecatombe é o sintoma de uma sociedade que vive da negação do envelhecimento e da morte, em que falta um ambiente social e familiar
O mínimo que se pode dizer é que o governo se comunicou muito mal com seus interlocutores – e em especial com a população. É verdade que essa comunicação deficiente não é novidade, mas neste caso tornou-se flagrante, pois se passaram vários dias até que o primeiro-ministro e o presidente da República se pronunciassem sobre o assunto. Num país como a França, é dificilmente compreensível que as principais autoridades continuem de férias (tanto no sentido figurado, quanto literal) enquanto os cidadãos morrem.
Para coroar a lista de fiascos, a divulgação, no final do mês de agosto, de que centenas de corpos ainda estavam abarrotando os necrotérios improvisados da região parisiense sem serem reclamados, só pode ser interpretada de uma maneira: todas essas pessoas, tenham elas morrido em casa, na rua ou numa instituição, eram “invisíveis”, sem “inserção” no mundo, abandonadas à própria sorte pela sociedade – e mesmo por seus parentes.
O que nos dizem esses mortos? Que envelhecer na região de Paris, a principal do país, significa morrer sozinho, na mais completa indiferença. Que nenhuma instituição de assistência, por melhor equipada que seja, pode substituir um ambiente social e familiar, quando se trata de cuidar de uma pessoa idosa. Pode-se enxergar nesta hecatombe – pela qual, provavelmente, a canícula não é a única responsável, mas que, com certeza, agravou – o sintoma de uma sociedade que vive da negação do envelhecimento e da morte, negação que decorre de uma angústia que os tranqüilizantes, as férias remuneradas, o êxodo de verão e a idade média de seus governantes não conseguem acalmar.
(Trad.: Jô Amado)
1 – N.T.: Período