A casta que manda na França
Especialistas em burguesia e oligarquia francesas, os sociólogos Michel Pinçon e Monique Pinçon-Charlot publicam uma crônica social da França de Emmanuel Macron. Sua síntese dá vertigem. Ela explicita o desprezo elitista de um presidente recém-eleito e o apego ao poder de uma casta de ultrarricos – dois detonadores do levante francês
Entre o resultado de Emmanuel Macron no primeiro turno da eleição presidencial, em 7 de maio de 2017, e o resultado do movimento La République en Marche (LRM) no primeiro turno das eleições legislativas, em 11 de junho do ano seguinte, houve uma erosão de mais de 2 milhões de votos.
Além dessa mudança de tendência, a abstenção bateu recordes no segundo turno das eleições legislativas: mais de 20 milhões de eleitores, ou seja, mais da metade dos inscritos, preferiram, nesse dia, ir pescar. O LRM conseguiu a proeza de obter, com dificuldade, 7.826.432 votos, 308 cadeiras na Assembleia – ou seja, uma maioria absoluta que permite que Macron consiga aprovar seu programa neoliberal.
Em julho de 2017, François Ruffin, novo parlamentar do movimento La France Insoumise, divulgou um gráfico que mostrava a composição socioprofissional da nova Assembleia Nacional. Esta pende claramente para o lado dos executivos e das profissões intelectuais superiores, que representam 76% dos deputados, enquanto essa mesma categoria socioprofissional só dizia respeito, em 2017, a 18% da população ativa, segundo o Instituto Nacional de Estatísticas e de Estudos Econômicos (Insee).
Sem surpresas, na outra ponta da escala social é o inverso. Os 20,8% de operários da sociedade francesa têm apenas 0,2% de representação. Mesma constatação para os trabalhadores assalariados, com respectivamente 27,2% na população ativa e 4,58% dos deputados; e, para as profissões intermediárias, 25,7% dos ativos e 6,3% da Assembleia.
Um “governo de ricos”
Em 2017, Macron se cercou, logo de início, de um primeiro “governo de ricos”, com quinze de 32 ministros ou secretários de Estado milionários.1
Muriel Pénicaud, ministra do Trabalho, declarou o patrimônio mais alto, com mais de 7,5 milhões de euros. Ela é proprietária de uma casa na região Hauts-de-Seine estimada em 1,3 milhão de euros e de uma residência secundária de 340 mil euros na região da Somme. Mas, como é de costume nas grandes fortunas, a maior parte do seu patrimônio, 5,9 milhões de euros, é constituída de valores mobiliários: ações, obrigações, contratos de seguro de vida… Apostamos que aquela que desconstruiu o direito do trabalho desfavorecendo os trabalhadores deve ter apreciado a supressão do imposto de solidariedade sobre a fortuna sobre esse tipo de patrimônio – uma das primeiras medidas de Macron, cujo custo, é bom lembrar, é estimado em 4,6 bilhões de euros por ano para as finanças públicas.
Ministro da Transição Ecológica e Solidária, Nicolas Hulot ocupava o segundo lugar no ranking, com um patrimônio de 7,2 milhões de euros, composto de uma casa de 300 metros quadrados na Córsega, avaliada em 1 milhão de euros, e de diversos bens imobiliários nas regiões de Savoie e Côtes-d’Armor, por um valor de 1,9 milhão de euros. Os valores mobiliários representam 1,2 milhão, e a empresa Éole, que recebe seus direitos autorais e os dos produtos derivados Ushuaia, foi estimada em 3,1 milhões de euros. Sua declaração também indica seis carros, um barco, uma moto e uma scooter elétrica.
Ministra da Cultura no governo de Édouard Philippe (nomeado primeiro-ministro por Macron em maio de 2017) e proprietária da editora Actes Sud, Françoise Nysse mencionava mais de 600 mil euros em bens imobiliários e 4 milhões de euros por sua empresa. Agnès Buzyn, ministra da Saúde, encabeça um patrimônio de pouco mais de 3 milhões de euros. Florence Parly, ministra do Exército, reivindica um patrimônio de mais de 2 milhões de euros, com um apartamento parisiense de 200 metros quadrados e uma residência secundária na região de Loiret.
Ainda que esses cinco ministros formassem o primeiro pelotão desse primeiro governo, seus colegas estavam longe de se encontrar na miséria. Alguns exemplos: Nathalie Loiseau, ministra encarregada das relações europeias, declarou um patrimônio de cerca de 1,9 milhão de euros. Philippe é também milionário, com um patrimônio estimado em 1,7 milhão de euros, composto de um apartamento em Paris (1,25 milhão de euros) e outro na região da Seine-Maritime avaliado em 400 mil euros. Os valores mobiliários de seu patrimônio são de cerca de 56 mil euros. Bruno Le Maire, ministro da Economia, declarou partes de uma empresa, avaliadas em 1,5 milhão de euros, e cerca de 168 mil euros em aplicações financeiras. Vinham em seguida Christophe Castaner, então porta-voz do governo (1,34 milhão de euros), Sophie Cluzel, secretária de Estado, encarregada das pessoas com deficiência (1,33 milhão de euros), Mounir Mahjoubi, secretário de Estado encarregado das novas tecnologias (1,26 milhão de euros), Jacqueline Gourault, ministra junto ao ministro do Interior (1,27 milhão de euros), Elisabeth Borne, ministra encarregada dos transportes (1,22 milhão de euros), Jacques Mézard, ministro da Coesão dos Territórios (1,14 milhão de euros), e Jean-Baptiste Lemoyne, secretário de Estado junto ao ministro da Europa e das Relações Exteriores (1 milhão de euros).
O pertencimento de classe não se define apenas pela riqueza econômica. Além dos bens, existem as relações. As mulheres e os homens que hoje dispõem do poder político, mesmo que distantes da antiga figura dos “servidores do Estado”, mantêm relações estreitas com uma miríade de interesses privados com os quais eles frequentemente têm obrigações a cumprir.
Antes de se tornar primeiro-ministro, Philippe foi, de 2007 a 2010, diretor de negócios públicos – em outras palavras, responsável pelo lobby – do gigante nuclear Areva. Benjamin Griveaux, porta-voz do governo, exerceu funções de lobista na Unibail-Rodamco. A secretária de Estado para a Transição Ecológica, Brune Poirson, é uma antiga executiva de alta responsabilidade da Veolia. Pénicaud, ministra do Trabalho, exercia antes as funções de diretora de recursos humanos da Danone. Já seu diretor de gabinete encarregado do social, Antoine Fouchet, trabalhava antes como diretor-geral adjunto do Movimento das Empresas da França (Medef).
Conselheiros próximos de Macron também são oriundos do mundo das empresas e do setor privado. Cédric O., conselheiro sobre as participações públicas, exercia antes um cargo a serviço do grupo aeronáutico Safran; Claudia Ferrazzi, conselheira da Cultura, começou sua carreira na Cap Gemini e no Boston Consulting Group. A conselheira de Agricultura, Audrey Bourolleau, trabalhou a serviço de um importante organismo de influência no mundo vinícola, Vin et Société. Entre os 298 colaboradores ministeriais, 43 trabalharam com lobby em algum momento de sua carreira.2
Entre função pública e administração privada, as interconexões desse pessoal tecnocrático são tão densas que os conflitos de interesses são a regra, ao invés de serem a exceção. Quando se tornam flagrantes demais, pequenos escândalos explodem na imprensa, mas a árvore oculta a floresta. Quando de sua entrada no governo, Buzyn renunciou à tutela do Instituto Nacional da Saúde e da Pesquisa Médica (Inserm) porque esta era realizada por seu marido, Yves Lévy. Da mesma forma, depois de 10 de julho de 2018, Myssen, coproprietária da editora Actes Sud, criada por seu pai e dirigida por muito tempo por ela, recebeu ordens de não cuidar mais do setor do livro, por pedido da Alta Autoridade para a Transparência da Vida Pública (HATVP).
O “caso Kohler”
Superdiplomado – pela Escola Nacional de Administração (ENA), pela Escola Superior de Ciências Econômicas e Sociais (Essec) e pela Escola de Ciências Políticas (Science Po) – e filho de um antigo alto funcionário europeu, Alexis Kohler ocupa a função de secretário-geral no Élysée. Ele foi objeto de uma queixa, em 1º de junho de 2018, junto ao tribunal nacional financeiro por “utilização ilegal de interesses” e “tráfico de influências” por parte da associação de luta contra a corrupção Anticor, coordenada pelo advogado William Bourdon.
Em maio de 2018, o Mediapart revelou as ligações que uniam, por parte de sua mãe, Kohler à família italiana Aponte, proprietária da Mediterranean Shipping Company (MSC), número dois mundial do transporte de mercadorias por navios de tráfego de contêineres. Essa empresa é um dos clientes mais importantes dos estaleiros de Saint-Nazaire e do porto de Havre. Kohler, que tinha a responsabilidade dos transportes em 2010 na Agência das Participações do Estado (APE), trabalhava a esse título no conselho de vigilância do porto de Havre (ao mesmo tempo que Philippe, então prefeito da cidade). Sem declarar suas relações familiares com o armador, ele pôde influenciar as decisões que tiveram impacto sobre os interesses.
Tendo se tornado depois diretor adjunto do gabinete do ministro da Economia e das Finanças, à época Pierre Moscovici (2012-2014), seguido por Macron (agosto de 2014 a agosto de 2016), Kohler ocupou um cargo-chave em Bercy, no mesmo momento em que o futuro dos estaleiros de Saint-Nazaire e do porto de Havre eram regularmente discutidos ali. Isso não o impediu de ir, em setembro de 2016, à sede social da MSC em Genebra como diretor financeiro desse grupo italiano ligado ao direito suíço, cujo valor de negócios ultrapassa os 20 bilhões de euros. Ao mesmo tempo, ele se implicava ativamente na campanha de Macron.
O novelo é complexo e ilustra bem o estreito emaranhamento das ligações multidirecionais que tece o poder oligárquico. As múltiplas funções do personagem fazem que ele seja ao mesmo tempo antigo alto funcionário de Bercy, antigo diretor financeiro de um grupo familiar que tem interesses nos estaleiros e um dos mais próximos colaboradores do presidente da República. Nessas condições, o tribunal nacional financeiro vai dar uma continuidade judiciária à queixa deposta pela Anticor? Em todo caso, só podemos, por enquanto, lamentar a exclusão dos altos funcionários da lei de moralização da vida política votada em 2017.
Como comer em todos os pratos
Eleito pelo La République en Marche da região Hauts-de-Seine, Thierry Solère foi preso no dia 17 de julho de 2018 pela polícia judiciária de Nanterre. Desde setembro de 2016, ele é alvo de uma investigação por suspeitas de fraude fiscal, tráfico de influência, corrupção, abuso de bens sociais, financiamento ilícito de despesas eleitorais e desrespeito às declarações junto à Alta Autoridade para a Transparência da Vida Pública (HATVP). Esse deputado, um dos mais ricos da Assembleia Nacional, é suspeito de ter se servido de sua posição para favorecer empresas para as quais ele trabalhava por fora. Um emprego como assistente parlamentar da esposa de um de seus antigos empregadores poderia ser considerado fictício.
Antes de se vincular ao movimento de Macron, Solère era membro dos Republicanos e porta-voz do ex-primeiro-ministro François Fillon. Isso não impediu o então ministro da Justiça socialista, Jean-Jacques Urvoas, de lhe fazer um pequeno favor entre os dois turnos da eleição presidencial de 2017, pedindo para a Direção de Casos Criminais e Perdões (DACG) a ficha da ação penal da apuração preliminar aberta a seu respeito. Por precaução, os dois homens se comunicavam pelo aplicativo de mensagens criptografadas Telegram.3
Em 19 de junho de 2018, Urvoas foi investigado por “violação de segredo profissional” pela comissão de instrução da Corte de Justiça da República. Se um ministro da Justiça correu tais riscos (esse delito sendo passível de um ano de prisão e 15 mil euros de multa), talvez seja porque ele esperava um agradecimento em retorno por parte daquele que aparecia então como a estrela em ascensão da “Macrônia”. Em 17 de dezembro de 2018, o tribunal geral junto à Corte de Cassação demitiu Urvoas diante da comissão de instrução da Corte de Justiça da República.
Um ministro da cultura corporativa
Nomeado ministro da Cultura e da Comunicação em 16 de outubro de 2018, Franck Riester, ex-deputado da União por um Movimento Popular (UMP) da região Seine-et-Marne, é diplomado pelo Instituto Superior de Gestão (ISG) e titular de um mestrado de Gestão das Coletividades Territoriais pelo Essec. Sua carreira atesta essa coexistência constante entre negócios e política. Ele foi vereador de Coulommiers ao mesmo tempo que era consultor no escritório Arthur Andersen, depois diretor da Riester SA (concessões Peugeot) ao mesmo tempo que era prefeito, deputado e membro do escritório político dos Republicanos. Escolher um ministro da Cultura diplomado na área de gestão, que se reivindica no who’s who empresário e “ao mesmo tempo” figura política, é um sinal forte por parte de Macron e diz muito sobre sua nova concepção da criação, das artes e das letras.
*Michel Pinçon e Monique Pinçon-Charlot, sociólogos, são ex-diretores de pesquisa do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS). Este texto é um trecho de seu livro Le Président des ultrariches. Chronique du mépris de classe dans la politique d’Emmanuel Macron [O presidente dos ultrarricos. Crônica do desprezo elitista na política de Emmanuel Macron], que será publicado em 31 de janeiro de 2019 pelas edições Zones, Paris.