A catástrofe como oportunidade
“Se um acidente envolvendo um reator nuclear acontecer em Takaimura ou em Fukushima, os prejuízos que deverão ser suportados pela sociedade japonesa serão pesados demais”, escrevia em 1993 o romancista Ikezawa Natsuki. No texto inédito a seguir, ele tira algumas lições da catástrofeIkezawa Natsuki
(Uma semana após o tsunami, trabalhadores do resgaste fazem busca em torno de centro budista)
Em 11 de março de 2011, às 14h46, o Japão sofreu um tremor de terra que atingiu essencialmente a região noroeste, Tohoku.
É difícil transmitir aos que não tiveram a experiência o quanto isso é assustador: casas sacudidas nas quais os móveis caem, lojas onde os produtos se espalham pelo chão, rodovias que ondulam, prédios que afundam, estradas de ferro que se entortam, pontes que desmoronam.
Na França, por exemplo, a terra constitui uma base sólida sobre a qual se apoiam os seres vivos. Imobilidade: a própria definição do chão. Mas existem no mundo lugares em que, às vezes, o chão se agita. O Japão é um deles.
Na vida cotidiana, quando sentimos de repente um tremor, paramos de trabalhar, suspendemos por um instante nossa conversa, nos concentramos em nossas sensações e tentamos avaliar a importância do terremoto. A expressão francesa “Passou um anjo” convém a essa situação. Geralmente não acontece mais nada e o tremor para rapidamente. Mas pode acontecer de ele se ampliar e então nos sentimos em perigo. Em casa, podemos ser esmagados pelos móveis que caem, ou ficarmos presos num incêndio porque não tivemos tempo de apagar o fogo na cozinha; no carro, podemos ser lançados para debaixo de uma ponte ou enterrados num desabamento de terra.
No dia 11 de março, o terremoto provocou um maremoto enorme. Tente se imaginar num litoral onde o mar está dez metros acima de você. Você se encontra protegido por uma barragem de vidro sólido atrás da qual você vê uma imensa parede de água, como a de um grande aquário. De repente a barragem desaparece. A água se precipita sobre você, frontalmente. A quantidade que cai é quase infinita; progredindo sempre para a frente, ela destrói todas as construções humanas no seu caminho, escala colinas, sobe o curso dos rios e penetra por dezenas de quilômetros no interior.
Nós vivemos esse tipo de fenômeno apocalíptico que se produz num intervalo de muitos anos. E outros mais: furacões, erupções vulcânicas. Mas não temos o menor desejo de trocar essa terra por uma outra. O clima é geralmente clemente, sol e chuva em abundância suficiente. Geopoliticamente, o arquipélago está situado a uma distância ideal do continente. A rica cultura da China vizinha chegou até nós, mas a travessia se revelou mais difícil para forças armadas de envergadura. Assim, até 1945, o país não conheceu dominação de outros povos em seu território. Ele também pode evitar a propagação de doenças como a peste que devastou a Europa.
Uma catástrofe natural se parece com uma guerra. O que vem logo depois corresponde ao que se passa no momento em que as confrontações se encerram: corpos empilhados, montanhas de escombros, falta de alimento, sobrevivência nos abrigos, profunda falta de coragem. Mesmo sem querer, me vem à memória o poema de Wisława Szymborska,1 “Koniec i poczatek” (Fim e início):
“Cada vez que uma guerra se encerra
É preciso que alguém se encarregue de colocar tudo em ordem
Pois as coisas
Não voltam para o lugar sozinhas
Alguém deve empurrar os escombros
Para a beira do caminho
Abrindo uma passagem
Aos carros carregados de cadáveres.”
Foi exatamente o que fizemos em Tohoku. Multiplicando os equívocos, fizemos sofrer as vítimas que tinham frio e fome ao demorar para prestar-lhes socorro. O governo se agitou muito, mas com pouca eficiência. As administrações desmanteladas estavam inoperantes, as rotas de circulação e redes de comunicação, cortadas. Nos vimos diante da nossa falta de preparo.
E, no entanto, os japoneses se ativaram. Pessoalmente, eu acho que, no geral, eles reagiram bem. Se os escombros foram retirados por profissionais equipados com grandes máquinas, em cada casa foram os voluntários vindos para prestar ajuda que limparam a lama trazida pela onda. Eles também percorreram os abrigos para verificar o que faltava e adaptar o abastecimento. Eles ouviram as vítimas do desastre e fizeram que soubessem que não estavam abandonadas. Eles brincaram com as crianças, montaram salas de aula onde não havia mais escolas, recolheram as fotos de família espalhadas fora das casas destruídas, as limparam e depois expuseram para tentar encontrar seus donos.
Há muito tempo, Tohoku é conhecida como sendo uma região pobre, mais fria que as outras partes bem temperadas do Japão. A economia que se desenvolve em torno do arroz prejudicou as regiões onde as colheitas variam muito de um ano para o outro.2 Por causa dessa pobreza, as pessoas de Tohoku foram objeto de discriminações; seu dialeto era zombado. Criou-se a imagem de uma região atrasada. Agora, um amigo que foi vítima do desastre me fez notar que foi todo o país que, pela primeira vez, veio em seu socorro. Dizem com frequência que o povo de Tohoku é muito resistente. Eles não guardariam rancor nem da falta de sorte, nem das pessoas menos sofridas que eles; eles suportariam em silêncio, depois continuariam avançando. Eu pensava que se tratava de uma representação imaginária, mas ao ver o seu comportamento eu não posso me impedir de pensar que decerto que é verdade. Mais tarde, esse desastre mostrará sua grandeza.
O desmoronamento da central nuclear de Fukushima-Daiichi e as emanações de materiais radioativos transformaram, por muito tempo ainda, diversas cidades e vilarejos em zonas inabitáveis e, principalmente, farão que as pessoas vivam com medo dos efeitos nocivos a sua saúde por dezenas de anos, talvez diversas gerações.
Essas emissões radioativas no ar e no mar são um ato criminoso em escala internacional. A empresa Tokyo Denryoku (Tepco), que administra a central, assim como o governo que deu a autorização de explorá-la e os dirigentes das grandes indústrias que utilizam a eletricidade produzida clamam que o acidente se deve a uma catástrofe natural imprevisível. Mas quem ignora que o Japão é um país onde terremotos, maremotos e erupções vulcânicas são frequentes?
Como os grandes rios com volume estável são raros, as centrais nucleares, que necessitam de uma grande quantidade de água para seu resfriamento, só poderiam ser construídas perto do mar. O risco de maremoto era, então, conhecido desde o começo. A única desculpa apresentada pela Tepco é a amplitude desse tsunami, que teria ultrapassado todas as previsões.
No entanto, há oito séculos a região conheceu um outro de igual importância. Em se tratando de uma tal catástrofe, oitocentos anos não é bem um tempo que possa ser ignorado. Segundo algumas hipóteses, antes mesmo da chegada do maremoto seria o próprio tremor que teria danificado o reator nuclear. Esta central tem tudo de uma pobre gambiarra.
Mas o mais lamentável é o comportamento dos responsáveis incompetentes, reagindo essencialmente para se protegerem a si mesmos. Há 46 anos, quando construíram a primeira central, eles declararam que esta fonte de energia era absolutamente segura. Essas pretensões aparecem de repente como uma longa fabulação: os pesquisadores que manifestavam reticências foram banidos; as simulações de acidente, porque poderiam macular o mito, não foram efetuadas…
As razões? O nuclear era beneficiado por favoritismos. Propiciando lucros consideráveis divididos entre as companhias exploradoras, o partido no governo e a burocracia, ele gozava de um direito oculto transmitido secretamente de geração em geração. As tarifas de eletricidade foram, assim, fixadas com base em contas de exploração falsificadas que não integravam o custo do tratamento do lixo radioativo ou da desativação dos reatores. Todos os que lucraram com isso até hoje continuam a fazer um complô para colocar de volta em serviço as centrais que foram obrigadas a suspender a exploração por um tempo.
Estes responsáveis se mostram sem escrúpulos para com as vítimas. Para as famílias que perderam suas casas, os fazendeiros que foram forçados a deixar seu gado morrer de fome, os agricultores que foram obrigados a renunciar ao cultivo das terras que mantinham há diversas gerações. E, a muitos outros, eles propuseram indenizações cujo mísero valor era apenas um reflexo de sua falta de pudor.
O terremoto e o maremoto nos fizeram descobrir quatro coisas.
A primeira é que a natureza não existe para os seres humanos. Ela também não deseja prejudicá-los. É apenas indiferente. Só podemos nos resignar a esses eventos provocados pelo destino, por mais trágicos que sejam.
A segunda é que os seres humanos têm a capacidade de recomeçar. Mesmo os que gritam de dor após a perda de seus entes queridos ou seus bens. Chega um dia em que eles veem suas mãos se mexerem novamente para começar a limpar os escombros. Eles podem contar com sua própria força interior, mas também com a solidariedade “horizontal” de seus pares.
A terceira é que não se deve confiar nem no Estado, nem nos industriais, nem nos especialistas. Pois eles podem mentir – seja deliberadamente, seja sem se dar conta. No mundo atual, qualquer confiança “vertical” é desaconselhada. Também é preciso desconfiar da tecnologia, da qual a nossa sociedade é tão dependente. A confiança em si do indivíduo moderno, baseada em uma tecnologia que submete a natureza, era apenas ilusão. Não que não se possa confiar na ciência; mas suas aplicações podem ser errôneas.
A quarta é que uma catástrofe pode também ser uma oportunidade de mudança. Violentamente chacoalhada e ferida, a sociedade, quando se levanta, toma uma nova direção. Em vinte anos, talvez falemos disso que acaba de acontecer como um ponto de inflexão. Quero acreditar nisso.
Sapporo, dezembro de 2011.
Ikezawa Natsuki é Romancista japonês, autor de La Vie Immobile (A vida móvel) que recebeu o prestigioso prêmio literário japonês Akutagawa.